Por Redação Jornal do Brasil
Em uma decisão inédita na história do país, um presidente da República será exumado para que sejam confirmadas, ou não, as suspeitas de um crime. A Comissão Nacional da Verdade decidiu exumar, com autorização da família, o corpo do ex-presidente João Goulart — morto em 1976 durante exílio na Argentina. A exumação ocorrerá com o auxílio do Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul. Jango está enterrado no cemitério de São Borja, no interior do Estado, onde também jaz o ex-presidente Getúlio Vargas.
Na audiência da Comissão, realizada em Porto Alegre em 18 de março último, a família do ex-presidente entregou uma petição requerendo a exumação dos restos mortais com o objetivo de apurar se ele foi envenenado, denúncia feita por Mário Neira Barreiro, ex-agente do serviço de inteligência uruguaio, preso no Brasil. Na audiência, Rosa Cardoso, uma das integrantes da Comissão da Verdade, afirmou que a petição dos Goulart possui “elementos concludentes” de que ele foi vítima da Operação Condor (ação conjunta das ditaduras da América do Sul).
O documento é assinado, entre outros familiares, pelo filho dele, João Vicente Goulart, e pelo neto Christopher Goulart. O ex-presidente foi deposto em março de 1964 pelos militares, no início de uma ditadura de mais de duas décadas no país. Após ser deposto pelo golpe militar em 1964, o ex-presidente João Goulart, o Jango, exilou-se com a família no Uruguai e, depois, na Argentina. No entanto, mesmo depois de retirado da Presidência da República, continuou sendo alvo do regime militar.
Para Christopher Goulart, o avô sabia que era vigiado, porém isso não o incomodava.
– Ele não se importava muito, não era uma coisa que o incomodava – disse.
Um documento do Serviço Nacional de Informação (SNI) mostra que as correspondências do ex-presidente eram constantemente lidas e analisadas pelos militares. No próprio documento, datado de 1966, um agente militar revelou que as cartas de Jango eram obtidas de forma clandestina. Em outro documento, o Centro de Informações do Exterior (Ciex) traz informações sobre uma viagem de Jango para a Argentina. A partir dos detalhes da viagem, os militares classificaram que Jango estava se preparando para retornar ao Brasil.
Para o historiador e coordenador do curso de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Enrique Padrós, João Goulart foi vítima da Operação Condor, ação conjunta de seis países sul-americanos, inclusive o Brasil, para reprimir opositores às ditaduras militares da região. A operação foi criada oficialmente em 1975, mas começou antes cinco anos antes da criação oficial. “Ele foi sistematicamente vigiado, foi sistematicamente atingido, com essa coisa de infiltrarem pessoas ou, talvez, infiltrarem mecanismos para obter informações”, completou.
Em 6 de dezembro de 1976, Jango morreu na cidade argentina de Mercedes, onde também viveu durante o exílio. A certidão de óbito diz que o ex-presidente foi vítima de um ataque cardíaco. A família, no entanto, suspeita das circunstâncias da morte de Jango, pelo fato de que o ex-presidente estava se organizando para voltar ao Brasil com o intuito de atuar contra o regime militar. “É claro que é muito suspeita [a morte de Jango]. É óbvio que é muito suspeita e, enquanto for suspeita, tem que se investigar”, defendeu Christopher Goulart.
Depoimentos do ex-espião do serviço de inteligência da polícia uruguaia Mário Neira alimentam a teoria de assassinato. Preso em Porto Alegre há mais de dez anos por crimes como contrabando de armas, Neira disse que uma operação foi montada para envenenar Jango. A decisão, segundo ele, foi tomada em uma reunião com representantes do governo uruguaio, do Serviço de Inteligência Americano (CIA) e o delegado Sérgio Fleury, então chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo. “Foi uma operação muito prolongada e a gente não sabia que teria como objetivo a morte do presidente João Goulart”, relatou.
Segundo Neira, os remédios de Goulart, que sofria de problemas do coração, foram trocados por comprimidos com uma substância que acelerava os batimentos cardíacos e provocava uma parada cardíaca. “Os remédios vieram da França e foram recebidos na gerência do Hotel Liberty. Foi um araponga que foi colocado neste hotel, porque os remédios ficavam em uma caixa-forte, uma caixinha mesmo de segurança. Em cada frasco, foi colocado um comprimido, apenas um comprimido com o composto que tinha uma ação que provocaria uma parada cardíaca. Acho que ele tomou coincidentemente naquela noite (o veneno), porque todo o relato da dona Maria Tereza [mulher de Jango] fala dos sintomas que encaixam com o que acontece quando a pressão sobe, baixa constrição dos vasos”.
Com base no depoimento de Neira, a família de João Goulart pediu uma investigação ao Ministério Público Federal (MPF). Mas o processo foi arquivado pela Justiça sob o argumento de que o crime prescreveu.
Com a impossibilidade de investigação no Brasil, o procurador federal Ivan Marx recorreu à Justiça argentina. “Fui até Paso de Los Libres [próxima à cidade de Mercedes], na Justiça Federal argentina competente, e solicitei uma investigação sobre a morte do João Goulart. Existe a Lei de Anistia e todo esse problema que hoje estamos tentando processar no Brasil, mas, diante de todas as dificuldades, achei importante provocar a Justiça argentina, pois o fato ocorreu lá. Eles têm uma competência territorial para investigar os fatos”, explicou.
O historiador Enrique Padrós defendeu esclarecimentos sobre a morte de Jango.
– É muito grave um país como o Brasil, até hoje, não ter certeza de como faleceu o único presidente que morreu fora, exilado – concluiu.
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Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.