“Se continuássemos sem depósitos de água limpa, a tragédia social dessa longa estiagem teria se repetido”, declara o coordenador da Articulação no Semiárido Brasileiro – ASA
IHU On-Line – Após completar dez anos, o Programa 1 Milhão de Cisternas mudou a perspectiva de vida e convivência com o semiárido, diz Roberto Malvezzi à IHU On-Line. “Com ele deixamos de focar nas grandes obras e dirigimos o olhar para cada casa, cada caso, como uma rendeira tece sua peça ponto a ponto”. Com quase 500 mil cisternas que beneficiam 2,5 milhões de pessoas, “o programa tornou possível que grande parte das famílias tenha água no pé da casa, ao contrário de buscar lama a quilômetros de distância, ainda que nesse momento muitas cisternas tenham que ser abastecidas por pipas”, destacou Malvezzi em entrevista concedida por e-mail.
Apesar das mudanças positivas em relação à distribuição da água, Malvezzi salienta que a política do governo federal em relação ao semiárido é “cheia de contradições. Ao mesmo tempo em que apoia a ASA, permitiu o contrato das cisternas de polietileno. Ao mesmo tempo em que faz algumas adutoras pela seca, continua jogando bilhões num ralo chamado transposição. O governo não tem uma política definida. Segue a reboque das pressões que sofre”, lamenta.
Roberto Malvezzi é graduado em Estudos Sociais e em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia Ciências e Letras de Lorena, em São Paulo. Também é graduado em Teologia pelo Instituto Teológico de São Paulo. Atualmente atua na Comissão Pastoral da Terra – CPT. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o Programa 1 Milhão de Cisternas ainda não conseguiu atingir sua meta dez anos depois de ser implementado?
Roberto Malvezzi – O programa é uma revolução no semiárido. Com ele deixamos de focar nas grandes obras e dirigimos o olhar para cada casa, cada caso, como uma rendeira tece sua peça ponto a ponto. Já estamos com quase 500 mil cisternas, beneficiando aproximadamente 2,5 milhões de pessoas. Essa é a diferença da seca de trinta anos atrás para a de hoje. O programa tornou possível que grande parte das famílias tenha água no pé da casa, ao contrário de buscar lama a quilômetros de distância, ainda que nesse momento muitas cisternas tenham que ser abastecidas por pipas. Mas não são todas. Muitas regiões tiveram chuva e elas estão abastecidas normalmente por suas águas. A região mais crítica, sertão de Pernambuco, teve chuva nesses dias.
O problema é que não basta fazer a cisterna. Para a sociedade civil articulada na ASA, há a questão educativa junto com a obra. É feito o trabalho de debater a região, seu clima, seu regime de chuvas, sua biodiversidade. Não é um trabalho mecânico, como entendeu o governo Dilma, ao permitir a instalação de cisternas de polietileno por empresas. O resultado é que a maior parte estraga: das 300 mil contratadas apenas 50 mil chegaram ao destino, muitas vezes abandonadas ao pé das casas sem ninguém para orientar a população.
Além do mais, o fluxo do dinheiro governamental é muitas vezes interrompido por meses, o que também acaba prejudicando o andamento das construções. Finalmente, vamos a lugares onde ninguém anda, de difícil acesso, o que exige tempo e muita dedicação. Enfim, é um conjunto de fatores que faz com que o trabalho seja mais lento que o esperado.
IHU On-Line – Quais foram as principais dificuldades enfrentadas ao longo desses 10 anos? Quais os erros e acertos do Programa?
Roberto Malvezzi – Francamente, não consigo ver erros, a não ser esse do tempo demandado. Esse caminho não estava feito, ele teve que ser inventado. A costura da própria ASA é uma dificuldade em si mesma. São centenas de entidades que tiveram que se afinar para levar o projeto à frente, mesmo sendo muito diferentes entre si. Não se constrói uma articulação como essa todos os dias. Aliás, ela é única na história do semiárido com tanta abrangência, com foco, com continuidade, com uma nova lógica, que é a da convivência com o semiárido.
Os acertos são fáceis de citar: não há mais mortalidade infantil por água potável, diminuiu o sofrimento feminino de buscar água a longas distâncias, melhorou a saúde da família, com isso elevou o IDH de toda a população. Claro que outras políticas governamentais, como a distribuição de renda e a conquista da aposentadoria rural pelos trabalhadores, têm forte influência nesses índices positivos. Mas, se continuássemos sem depósitos de água limpa, a tragédia social dessa longa estiagem teria se repetido.
IHU On-Line – De acordo com notícias da imprensa, alguns moradores e prefeituras estão recusando a entrega de cisternas de polietileno. O que é feito nesses casos? Como o governo federal tem reagido diante dessas críticas?
Roberto Malvezzi – A recusa vem por parte de famílias, sindicatos, prefeituras e até mesmo de governos de estado. A responsabilidade desse contrato com cisternas de polietileno é da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – Codevasf, subordinada ao Ministério da Integração. Portanto, obra exclusiva do ministro Fernando Coelho.
Ele é originário de uma oligarquia que domina Petrolina e o alto sertão pernambucano há praticamente um século. Foi a família dele que buscou o modelo de irrigação da Califórnia para ser implantado aqui na região. Quer ser governador do Pernambuco.
Então, buscou um jeito de tirar da sociedade civil os recursos e o mérito da construção de cisternas. Juntou-se ao empresário Carlos Slim, mexicano, dono da telefônica Claro, o homem mais rico do mundo, que fabrica essas cisternas no México. Era a tampa com o balaio. Uma cisterna de polietileno sai a um custo final de R$ 5 mil. Trezentas mil cisternas é um contrato de R$ 1,5 bilhão. É muita grana.
Porém, não contavam com a reação popular, com a reação de prefeituras e governos e, como me disse um gestor da Codevasf, o programa está um fracasso, já que a empresa distribuidora nem consegue chegar às casas mais afastadas. Estão pensando em devolver todo esse trabalho à sociedade civil, que é quem sabe fazer e tem paixão pelo que faz.
IHU On-Line – Qual a atual situação das pessoas que receberam cisternas de polietileno?
Roberto Malvezzi – Não dá para saber já que é caso a caso. Entretanto, muitas murcharam, outras não foram bem posicionadas em relação à casa; a empresa também nunca faz o trabalho educativo, e muitas sequer foram entregues. O problema que assusta as famílias é que quem recebe uma de polietileno não pode, depois, receber uma feita de placas de cimento, tecnologia adotada pela ASA, que envolve a mão de obra local, movimenta o comércio, gera serviços, gera emprego e renda. Enfim, as famílias têm receio de receber uma porcaria e depois ficar sem nada.
IHU On-Line – Qual a estimativa para atingir a meta do Programa 1 Milhão de Cisternas? Há alguma previsão para distribuir todas as cisternas à população?
Roberto Malvezzi – A previsão absoluta não é possível porque a ASA depende da política governamental. Novos contratos foram feitos. Vamos assim, avançando passo a passo. Quanto às de polietileno, é uma decisão que cabe ao governo.
IHU On-Line – Em que consiste o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2)?
Roberto Malvezzi – É um programa que adaptamos ao Brasil e que tem origem no semiárido chinês. O governo de lá fez uma reforma agrária no semiárido deles, deu um pedaço de terra a cada família e dois reservatórios de captação de água de chuva, sendo um para beber e outro para produzir.
Quem visitou o semiárido chinês e nos trouxe essa experiência foi João Gnadingler, um militante do semiárido que trabalha numa ONG aqui de Juazeiro chamada Irpaa. Então pensamos: por que não aqui?
Mais uma vez tivemos que fazer o caminho. Em primeiro lugar, pressupõe a terra da família. Se não tiver, tem que ter reforma agrária. Em segundo lugar, a cisterna de beber. Em terceiro lugar, um reservatório para captar água de chuva para produzir, e que seja bem maior. Normalmente estamos fazendo uma cisterna de 52 mil litros, captando água do chão, ou de terreiros. Em torno dela se faz hortas, pequenas irrigações com técnicas minuciosas de aproveitamento da água, ou se aproveita a água para pequenos animais em tempos de seca – todos os anos – como galinhas, porcos e cabras.
Nem é preciso falar que esbarramos na questão da terra. Esse para mim é o nosso ponto fraco. Apenas 10 mil famílias tiveram acesso a esse programa. Mas não deixa de ser lindo, em plena seca, canteiros verdes onde a família tira parte de seus alimentos e pode gerar renda vendendo em feiras. Aqui há ainda um longo caminho a ser percorrido.
IHU On-Line – Quais são os desafios para universalizar o acesso à água no semiárido? Além do Programa 1 Milhão de Cisternas, que outras políticas são necessárias?
Roberto Malvezzi – O semiárido urbanizou-se muito nas últimas décadas. Então, as cidades do semiárido também precisarão saber conviver com a região. A água é limitada. Sempre teremos que olhar para ela como um bem precioso, raro. Teremos que aproveitar melhor a captação da água de chuva, a reutilização da água, técnicas de irrigação por gotejamento, e assim por diante.
Mas é preciso também as adutoras para garantir a água urbana. Ali estão os serviços públicos, a educação, a saúde, a administração, além do abastecimento doméstico e da indústria.
Porém, se a política for de intensificar mais e mais o uso da água, sem pensar em seus limites, então vamos falir nossas fontes de abastecimento. É o caso exemplar do rio São Francisco. Um livro lançado agora por 100 especialistas, comandados pelo Prof. José Alves, da Universidade do Vale do São Francisco, chamado A Flora das Caatingas do São Francisco, afirma claramente que este rio está “condenado inexoravelmente à morte”. No semiárido não cabem mais loucuras, como essas transposições em andamento e outras planejadas. Mas o mundo político e econômico continua de costas para a o bom senso e até para a ciência.
IHU On-Line – Considerando os dez anos do PT na presidência da República, o que é possível ressaltar em relação às propostas para melhorar a convivência com o semiárido?
Roberto Malvezzi – É uma política cheia de contradições. Ao mesmo tempo em que apoia a ASA, permitiu o contrato das cisternas de polietileno. Ao mesmo tempo em que faz algumas adutoras pela seca, continua jogando bilhões num ralo chamado transposição. O governo não tem uma política definida. Segue a reboque das pressões que sofre.
Todavia, é preciso dizer que o governo tucano de FHC não investiu um centavo no semiárido, apesar de o programa das cisternas ter começado em seu governo. Foi um recurso da Agência Nacional de Águas. Lula e Dilma investem muito mais no semiárido, ainda que de forma contraditória.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Roberto Malvezzi – A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB lançou uma nota sobre essa seca em sua última assembleia apoiando a política de convivência com o semiárido. Isso é muito importante. Mas apoiou também as “integrações de bacias”. Esse é o nome eufemístico para as transposições. Vale lembrar que existem dois eixos em construção, e que estão planejados mais um para a Bahia e outro para o Piauí. Mais à frente está planejado a ligação do rio Tocantins ao São Francisco, ou diretamente para o porto do Pecém, no Ceará. É o paraíso das empreiteiras, dos políticos, daqueles que olham a água apenas como um recurso a ser explorado.
Porém, é preciso ser honesto com a CNBB, ainda que muitos bispos apoiem essas “integrações” por boa vontade ou por desconhecer a região: insistir em políticas de altíssimo consumo de água na região semiárida é acabar com os nossos mananciais e privilegiar os interesses do agro e do hidronegócio. Essas transposições não estão na lógica da convivência com o semiárido. Pelo contrário, é a velha e predatória indústria da seca e do moderno hidronegócio.