Alpargatas para um país de descalços: um retrato da crise na Espanha

Antigua Casa Crespo segue aberta, em meio a um dos momentos mais difíceis em 150 anos de funcionamento | Foto: Iuri Müller

Iuri Müller, de Madrid, especial para Sul21

Há centenas de edifícios históricos em Madrid e em todo o território espanhol. Palácios que viraram museus e hospitais, e palácios que, talvez anacronicamente, seguem sendo apenas palácios. E há praças de outros séculos, ruas esguias com construções mais antigas do que muitas das cidades do mundo. Mas os detalhes da tradição e da antiguidade vão muito além das edificações mais famosas, das que atraem o olhar estrangeiro de longe, por exuberantes e majestosas que costumam ser. Em Madrid, há também pequenos e aconchegantes lugares que datam de cento e cinquenta anos atrás – e que, com as mesmas cordas de antes, sustentam a produção e a venda de calçados, e tentam sobreviver a mais uma das crises que abalam a Europa.

O bairro é o de Maravilla, também chamado de Malasaña, e a fronteira mais próxima se dá com Chueca, região que por tempos foi mal afamada e que há pouco se vestiu com bares remodelados e lojas coloridas. A noite recebe a porcentagem cult de Madrid, e muitos dos recantos são direcionados para o público gay da cidade e para os estrangeiros que chegam à capital espanhola. A renovação da parcela notívaga de Maravilla-Chueca serviu, conforme o relato dos moradores dos bairros, para a revitalização que a área necessitava. Há alguns anos, a região voltou a estender a noite e a ouvir ruídos incessantes pelas calçadas. Com a crise, no entanto, parte dos estabelecimentos frearam os ânimos e as intenções de lucro. Mas, no número 29 da Rua Divina Pastor, uma das mais tradicionais do bairro, as coisas estão muito parecidas com o que eram há cento e cinquenta anos.

Ali, conforme anuncia a fachada envernizada do local, funciona a Antigua Casa Crespo, fundada em 1863 e desde sempre dedicada à fabricação e venda de alpargatas e de acessórios para calçados. Os ventos, as crises e as heranças modificaram algo, isso é certo. Nas décadas finais do século XIX, por exemplo, as primeiras da existência da casa, não havia alpargatas com o solado emborrachado, como agora. Também eram reduzidas as opções de cores, e menos diversificados os tamanhos e as texturas. De qualquer forma, eram alpargatas como as de hoje – como ainda é o mesmo o sistema de pagamento, que nunca se dobrou aos cartões de crédito e às imposições bancárias. Paga-se com moedas e cédulas, mas agora em euro, e não em pesetas. E durante toda essa história, houve poucas preocupações tão agudas como esta de agora, capaz de aparecer de forma transparente em qualquer esquina da cidade e em qualquer loja de alpargatas.

Isso que a Espanha atravessou anos particularmente tempestuosos nos últimos tempos. Houve o franquismo, ditadura capaz de tornar gris um país ruidoso e alegre, e que deixou marcas daquelas que nunca se curam. E, como consequência, houve também uma violenta Guerra Civil, confronto que opôs republicanos a falangistas e ganhou repercussão internacional [Corrigindo: a ditadura franquista é que foi consequência da chamada “Guerra Civil”, que na verdade foi um golpe militar contra o Governo Republicano, legalmente eleito e constituído. Também ao contrário do que está dito na próxima frase, não só artistas como voluntários de todo o mundo, incluindo o Brasil, acorreram à Espanha para defender um governo que estava fazendo reformas de base contra os generais golpistas. Constituíram as famosas e heroicas Brigadas Internacionais. Os governos da Europa, entretanto, se mantiveram omissos, permitindo que os generais golpistas contassem com a ajuda de Hitler (que lá testou seu poderio aéreo, bombardeando cidades como Guernica, e o poder do rádio como elemento de conquista da hegemonia) e Mussolini. Era o ensaio geral para a II Guerra Mundial. (Tania Pacheco)].  Artistas de todo o continente direcionaram suas obras para os fatos políticos da Espanha. No final da década de 1930, pintores espanhóis como Pablo Picasso e Joan Miró, franceses como André Masson e Francis Picabia, e o belga René Magritte, entre tantos outros, viram as imagens da guerra como inevitáveis para a produção artística. Tempos depois, o país deixou Francisco Franco e as perseguições para trás, na medida do possível. Ainda assim, trata-se de um país até hoje dividido – e Madrid é a capital de uma nação por vezes indisposta a sentir-se unida.

É o turismo que salva os negócios, admite Maxi Garbayo, proprietário da Antigua Casa Crespo | Foto: Iuri Müller

Como as grandes guerras do século XX, hoje o drama que asfixia a Espanha é também um terremoto continental. A crise se estende da Península Ibérica, talvez a ponta mais fortemente atingida pelo colapso bancário, ao litoral grego, e deixa poucos ilesos pelo caminho. Após anos de uma ressaca que tendia para a imobilidade, há meses os espanhóis se acostumaram com a presença multitudinária do povo na rua, aglomeração que grita contra os governos, contra a atuação dos líderes da União Europeia e – principalmente – contra as medidas que acabaram por arrancar direitos básicos da população. “A Espanha não vai ter nem alpargatas para calçar, seremos um país de descalços”, anuncia Maxi Garbayo, o atual proprietário da Antigua Casa Crespo. Para ele, a crise é uma das mais fortes que já viveu. E que é impossível não se surpreender com a redução do consumo no país.

Maxi admite que, em tempos assim, é o turismo que acaba por salvar os negócios de bairros como Maravilla e Chueca, e que mantém a movimentação necessária para a sobrevivência da loja na Rua Divino Pastor, mesmo sem as garantias de outras décadas. Se há quem corre os riscos de ter que se desfazer de um armazém centenário, outros já se encontram perdidos nas ruas, sem as chaves da própria casa. Os despejos por não pagamento do aluguel aumentaram de forma assustadora nos últimos meses em Madrid e em todo o território espanhol, e formam parte do retrato mais trágico dos tantos que podem ser vistos nestas semanas em que a miséria e o desemprego crescem. “Muitos (dos que foram despejados) se suicidaram. Esses despejos são humilhantes, tratam as pessoas como se fossem animais e os tiram de casa do dia para a noite”, comenta Maxi.

O desabafo do vendedor de alpargatas poucos minutos depois que o visitante adentra a porta da frente nos mostra a profundidade do impacto dos problemas econômicos e políticos no cotidiano: mesmo os que não foram diretamente afetados com os cortes regidos pelo regime de austeridade e pelos sintomas mais graves da crise não deixam de falar sobre o assunto. Não há rotina que não seja alterada pela atuação de governos que tremem e podem cair a qualquer instante, e pelos excessos de um sistema que hoje pede a sua fatura. E a impressão que fica desses desafogos é que ninguém compreende mais sensivelmente o período do que a população que se desloca a pé, e que volta para casa de ônibus ou metrô após um dia inevitavelmente atípico de trabalho – porque as porcentagens crescentes de desemprego, presentes o dia inteiro na televisão e nos jornais, devem modificar para pior qualquer jornada laboral.

Garbayo exibe os modelos dos seus calçados, fala com orgulho que a loja já foi parar nas páginas de guias de viagem estrangeiros. Mas logo envereda para o tema que julga, quem sabe com razão, o mais urgente para qualquer diálogo neste mês de março. “Hoje os que afundam o país nem são os megaempresários que possuem não sei quantas empresas e funcionários, mas homens obscuros que manejam mil contas fantasmas em não sei que país”. As frases de Garbayo carregam algo de raiva e de desespero, mas ao que parece as informações estão em sintonia com o que esbraveja. Tanto na Espanha como na Europa que se abre ao lado. Informações da organização Cáritas do país, publicadas no jornal 20 minutos, mostram que a distância entre as rendas mais altas e as mais baixas aumentou em 30% desde 2006, e que a pobreza cresceu vertiginosamente – 41% das famílias com três filhos integram os índices de pobreza, enquanto que 16% já vivem dentro dos índices de pobreza extrema.

O crescimento da desigualdade social e da redução dos ingressos mensais não são exclusividades espanholas. Perto dali, os portugueses repudiam o governo de Passos Coelho, e o país se vê obrigado a renegociar a dívida com o bloco europeu. A Itália, por sua vez, sofre para compor um governo de aceitação ao menos razoável, e mesmo após incontáveis denúncias e de uma postura quase grotesca frente ao panorama da crise, Silvio Berlusconi ainda é um fantasma capaz de captar milhões de votos. E, se a penúria da Espanha apenas representa a decadência do continente, a tristeza singular de uma antiga loja de alpargatas no bairro de Chueca reflete as dificuldades e os apertos de cada um que se encolhe pelo país. Assim como o desabafo de Maxi Garbayo é um grito contido que quer saltar da garganta em muitos países, na forma de idiomas e indignações distintas.

São muitas as placas de “aluga-se” e “vende-se” nas ruas, e a Divino Pastor não escapa dessa realidade. O nome da rua se refere a um conto antigo: algum dia, uma das mais ricas moradoras da região se apaixonou por um plebeu. O relacionamento entre os dois nunca seria aceito pela família da moça que, entre os devaneios da paixão proibida, tentou o suicídio. A lenda conta que ela só escapou da morte porque, poucos segundos antes de levar a cabo a decisão, surgiu-lhe uma visão da imagem religiosa do Divino Pastor. Hoje, os dramas da rua – do bairro, da Espanha, da Europa – são menos fantasiosos e mais crus. Diante de um futuro que parecer ser de fome e espera por tempos melhores, houve quem escrevesse com tinta negra numa parede de Chueca: “estão terminando as provisões de lágrimas”. Garbayo e toda Madrid esperam que, logo, todos possam voltar a calçar as alpargatas da Antigua Casa Crespo.

A Antigua Casa Crespo dedica-se à fabricação e venda de alpargatas e de acessórios para calçados desde 1863 | Foto: Iuri Müller

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