Longo martírio vivido pelos Guarani-Kaiowá: e a Páscoa, quando virá?

O pequeno Gabriel

Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin, no CIMI

Na tarde de sexta-feira, dia 22 de março, uma criança de quatro anos passeava de mãos dadas com a avó, como fazem as crianças amparadas e protegidas por firmes laços familiares, no acostamento da BR-463, Km 06, em Dourados-MS, a cerca de 500 metros de sua casa. Tudo estava calmo, o dia transcorria rotineiro quando, de repente, a vida daquela pequena criança foi brutalmente interrompida. Um motorista, transitando em alta velocidade, atropelou e arremessou o corpo de Gabriel Cário de Souza a uma distância de 39 metros, fugindo em seguida sem prestar socorro à vítima.

Este foi o sexto assassinato praticado – de forma deliberada ou não – contra os membros da comunidade Apika’y. Cerca de um mês antes, outro indígena foi atropelado por um motociclista enquanto transitava de bicicleta no acostamento da rodovia e, felizmente, neste caso a vítima sobreviveu.

A rotina de atropelamentos começou para esta comunidade em 2009, quando as famílias Guarani-Kaiowá foram expulsas da área de uma fazenda que haviam reocupado e que, tendo julgado a ação de reintegração de posse, a Justiça decidiu em favor do fazendeiro. De lá para cá, seis pessoas foram barbaramente assassinadas. Além do pequeno Gabriel Cário de Souza, de apenas quatro anos, foram atropelados e mortos Aguinaldo Cario de Souza, de 17 anos; Vagner Freitas dos Santos, de 37 anos; Sidnei Cario de Souza, de 28 anos e Elario Cario de Souza, de 50 anos.

Não bastasse isso, a comunidade chora ainda a morte da líder espiritual Alzira Nelita, de 90 anos, que morreu por envenenamento, decorrente da prática criminosa e ilegal de pulverização aérea de plantações. Todas estas pessoas são integrantes de uma mesma família, o que torna ainda mais brutal a violência impingida ao povo Guarani-Kaiowá.  Esta é, para eles, uma via sacra que se prolonga há anos, marcada com sangue de inocentes numa sucessiva “sexta-feira da Paixão”. Eles vivem um doloroso e infindável tempo de espera, sem respostas concretas do Governo Federal no sentido assegurar seu direito à terra, o que poderia resguardar e proteger essa população que agora se encontra vulnerável e entregue à própria sorte.

Portanto, as mortes por atropelamento são também de responsabilidade do Governo Federal, tanto pela omissão em relação aos procedimentos demarcatórios (determinação prevista no Art. 231 da Constituição Federal) quanto pela negligência em relação à proteção e garantia da vida destas famílias indígenas (inscrita no mesmo artigo da Lei). A morte dessas pessoas é também decorrente da intolerância de alguns segmentos da população, dos desmandos de proprietários de terra e da falta de uma enérgica e exemplar ação por parte das autoridades competentes, que deveriam conter essa onda genocida, e que, omitindo-se a potencializam, uma vez que se estabelece um sentimento de que ali pode imperar a lei da bala e da força bruta.

Nos acampamentos à beira das rodovias os Guarani-Kaiowá estão submetidos aos riscos decorrentes do fluxo de veículos e também são privados de suas formas tradicionais de viver, alimentar-se, celebrar e ritualizar a vida. Eles se alimentam do pouco que recebem na forma de cestas básicas, não possuem fontes para obtenção de água potável, não têm espaço para praticar a agricultura, não encontram as plantas necessárias para proceder à cura de doenças, não recebem assistência adequada do sistema público de saúde.  Conforme destaca Ruy Sposati, citando um relatório publicado em 2009 pelo Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul, a situação da comunidade de Apyka’i é gravíssima: “crianças, jovens, adultos e velhos se encontram submetidos a condições degradantes e que ferem a dignidade da pessoa humana. A situação por eles vivenciada é análoga à de um campo de refugiados. É como se fossem estrangeiros no seu próprio país”.

Para alguns setores ditos “produtivos”, a morte dos indígenas que pleiteiam a demarcação de seus territórios tradicionais, nos quais se assentam hoje fazendas e grandes plantações, seria apenas um “efeito colateral”, um mal previsto e planificável. A partir desta lógica perversa, e com a conivência do Governo Federal que adia os procedimentos de demarcação das terras indígenas naquela região, o que vem ocorrendo é uma verdadeira “limpeza étnica”, em pleno século XXI e em um país cujos governantes “estufam o peito” ao afirmar que estão consolidando bases de uma verdadeira democracia. Foi essa a mensagem levada por Gilberto de Carvalho, ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, em seus pronunciamentos no Fórum Social Mundial, realizado na Tunísia.

Não parece ser nada democrático desrespeitar preceitos constitucionais e deixar as famílias indígenas vivendo à beira das estradas, para assim acomodar interesses de empresários, fazendeiros e políticos regionais que consideram os índios empecilhos ou ameaças à expansão e lucratividade do agronegócio. A falta de uma atuação efetiva dos poderes Executivo e Judiciário em Mato Grosso do Sul vem permitido que o estado lidere, há anos, o ranking de violências contra os povos indígenas, particularmente no tocante a assassinatos, atropelamento com mortes, lesões corporais e suicídios.

Diante do quadro de genocídio que se apresenta naquela região e de uma situação que se prolonga sem que sejam tomadas as medidas cabíveis para por um fim a tanto sofrimento, perguntamos, unindo nossa voz à dos Guarani-Kaiowá: a Páscoa, quando  virá?

Porto Alegre, RS, 28 de março de 2013.

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