Maria Berenice Dias, 65 anos, a primeira juíza do Rio Grande do Sul, mudou a cara do casamento no Brasil. Ela fez o país reconhecer as relações fora do papel, os direitos das mulheres, a primeira união homoafetiva – e quer que as famílias gays parem de ser ignoradas
Letícia González, Revista TPM
É bom que fique claro: os gays estão casando no Brasil. E do mesmo jeito que a sua vó fez nos anos 50, sua mãe nos anos 70 e sua amiga mês passado: no papel. Não dá para explicar o porquê sem trazer à tona o nome da advogada e juíza aposentada Maria Berenice Dias, 65 anos. Foi ela quem escreveu o primeiro livro sobre direito homoafetivo do Brasil, quem abriu o primeiro escritório do ramo e quem decidiu, ao lado de colegas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que um casal de homens assim o era, pela primeira vez, em 2001.
Seis anos antes desse feito, Berenice abraçou a causa gay, quando já tinha mudado a cara do casamento no Brasil e se tornado uma das maiores autoridades no assunto. “Comecei a pesquisar e não acreditei que ninguém nunca tinha olhado e dito: ‘Alô, ali tem uma família’.” E não uma sociedade civil, como tantos advogados e juízes defendiam. A diferença na definição está no centro do termo que ela cunhou para tratar do tema: homoafetivo. “Família é relação de afeto.”
Penetra no Tribunal
Hoje ela coordena centenas de pessoas envolvidas em fazer valer as novas regras. Aos fins de semana, no parque da Redenção, em Porto Alegre, o mesmo onde caminha todas as manhãs, vai munida de megafone para que suas ideias sobre o Estatuto da Diversidade Sexual sejam ouvidas. Entre outras coisas, o documento garante o direito de adoção por casais gays e criminaliza a homofobia. “Quero que as pessoas despertem, parem para pensar”, diz. Para conseguir apresentar o estatuto no Congresso como iniciativa popular, ela precisa reunir 1,4 milhão de assinaturas (já tem 50 mil).
A causa gay toma quase todo o seu tempo – o pouco que sobra ela divide com os filhos (Cesar, 34 anos, Suzana, 32, e Denise, 31) e os amigos que recebe em festas na sua cobertura, num bairro de classe média. “Os convidados vão chegando e eu ainda estou no computador”, ri. É lá também que começa o dia respondendo e-mails e convites para palestras – só em janeiro, recusou mais de 50. O apartamento, onde mora sozinha, é movimentado: tem sempre alguém batendo à porta, além das duas empregadas e das duas assessoras particulares.
Quem ouve Berenice falar calmamente, encerrando as frases com um marcante “tu entende?” ou com uma risada anasalada, não imagina quantas brigas já comprou sem levantar a voz. Para se tornar juíza, precisou driblar a tradição do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que, em cem anos de existência, nunca havia aceitado uma inscrição feminina. “Eles negavam na maior”, lembra a gaúcha, que seguiu a carreira do pai, desembargador, mas antes teve que se infiltrar no ambiente masculino para garantir sua chance. “Comecei sendo datilógrafa e virei assessora do presidente. Quanto mais me conheciam, menos desculpas tinham para não me aceitar.” Na entrevista final do concurso, já aprovada nos testes, ouviu do examinador: “A senhorita é virgem?”.
Respondeu que sim e se tornou a primeira juíza do estado, em 1973, aos 24 anos, mas o machismo não parou aí. Foi oferecido a ela um posto administrativo na capital, sob a alegação de que a vida no interior era “difícil”. “Neguei, claro, e fui para bem longe”, conta. Em Ibirubá, a 300 quilômetros de Porto Alegre, fez suas primeiras interpretações da lei, como: separação vale quando um dos dois sai de casa, não quando o papel diz; e a mais importante, reconhecida só na Constituição de 1988: família é quem faz uma vida junto.
Na época, não existia divórcio no Brasil (passou a existir em 1977) – sendo assim, ninguém podia casar de novo. “Mas isso nunca impediu as pessoas de irem atrás do sonho da felicidade”, ressalta. Novas uniões se formavam, novos filhos nasciam, só que, sem os papéis, se tornavam invisíveis. As famílias tinham tantos formatos que ela escreveu um Manual de direito das famílias, no plural mesmo. “O editor me ligou pra perguntar se eu tinha me enganado”, lembra.
Berenice fez suas ideias correrem o país por meio do site que leva seu nome. Nos anos 90, defendia, em artigos e sentenças, que os processos de paternidade fossem reabertos para incluir os testes de DNA, novidade da época que trazia a chance de uma prova clara. Também exigia que a “culpa” não fosse julgada em um processo de separação – e que as mulheres não fossem mais punidas por serem, por exemplo, adúlteras. Todas posturas que, passado o estranhamento inicial, viraram regra. Do mesmo jeito que devem se tornar comuns suas visões sobre a família gay.
Tpm. Como você se engajou na causa gay?
Maria Berenice. Em 1995, me chamaram para encerrar um seminário sobre união estável numa universidade em Guarulhos, onde conheci meu último marido, que era professor. Eu pensei: cinco dias falando só de união estável, que coisa chata. Comecei a pesquisar e vi que não havia nada a respeito de união estável entre pessoas do mesmo sexo. Quanto mais pesquisava, mais ficava abismada de ver como ninguém nunca havia parado para dizer: “Alô, ali existe uma família”. Juntei os meus filhos e disse: “A mãe decidiu mexer num abelheiro”.
Em 2001, o Tribunal gaúcho, onde você trabalhava, foi o primeiro do país a reconhecer a união estável entre dois homens num processo de divisão de bens. Foi difícil fazer a sua voz valer? Tudo foi avançando a muito custo. A cada semana casos iguais saíam com sentenças diferentes porque nem sempre eu conseguia a maioria. O tribunal tinha quatro desembargadores e, para decidir, se juntavam três. Como éramos dois contra e dois a favor, variava muito. A verdade é que as pessoas têm muita dificuldade em conviver com o novo.
Sendo juíza na década de 70, via essa confusão nas uniões héteros também? Sim. A Constituição federal deixava claro: família era formada a partir do casamento. Tinha que estar no papel. Se não é casado, não tem direito a nada, não ganha pensão, cesta básica. Eu achava um pouco perverso, punitivo. E a lei também dizia que o casamento era indissolúvel [o divórcio só passou a existir em 1977 no Brasil, quatro anos depois de Maria Berenice se tornar juíza]. Mas acontece que o casamento nunca foi indissolúvel. As pessoas saíam dos casamentos, iam atrás do “sonho da felicidade” e construíam novos vínculos. Só que muitas famílias, por estarem fora do modelo, ficavam invisíveis.
Qual a consequência disso? A Justiça fez legiões de mulheres “famintas”, que, quando se separavam, não podiam cobrar nada nem para si nem para seus filhos. A postura de boa-fé era muito ligada à abstinência sexual, àquela mulher pura e casta. Ela era obrigada a adotar o nome do marido, mas, se fosse “culpada” pela separação, perdia. Se ficasse comprovado que havia traído, perdia a guarda dos filhos. Eu propunha novas interpretações da lei, mas muitas das minhas decisões eram revistas em Porto Alegre.
Por colegas homens? Sim. Há toda uma estrutura de poder que está na mão dos homens. Eles que fazem as leis, eles que pagam pensão. Nessa área, por exemplo, sou a favor de escuta telefônica para descobrir onde o pai está enfiando o dinheiro dele. Tenho uma decisão, única no Brasil, que diz assim: escuta é só pra crime? Pois é um crime não criar filho.
Que casos mais a marcaram? Tem dois. Em um deles, o homem queria deixar de pagar pensão porque a ex-mulher tomava pílula anticoncepcional. Ou seja, na cabeça dele, ela deveria perder seus direitos por exercer sua liberdade sexual. Tu entende a perversidade? Na outra disputa, um homem exigia metade da casa que a ex-mulher construiu sozinha depois que ele abandonou a família. Ele a deixou com cinco filhos, nunca mandou um tostão e voltou querendo parte do patrimônio porque, legalmente, ainda eram casados. Eu ficava muito incomodada com essas coisas. Aí, comecei a defender a ideia de que vale a separação de fato, não a do papel.
Essa visão virou padrão. Que outras mudanças defendia? Essa coisa de que primeiro precisa separar para, depois, divorciar. Tinha de estar separado há dois anos para poder se divorciar. Propus uma emenda constitucional para acabar com isso. Saiu em 2010, e a manchete do jornal foi a mesma de quando aprovaram o divórcio: “Acabou o casamento”. Agora as pessoas podem casar num dia e separar no outro? Podem.
Você enxergou isso como um avanço? Com certeza, e acho que isso faz bem pra família. As pessoas têm de investir mais, porque, se um quiser sair, entra com o pedido [de divórcio] e é quase automático. Eu acho que isso faz as pessoas cuidarem melhor da relação. Sem essa de discutir de quem é a culpa, outra coisa que sempre abominei.
Culpa se discutia no tribunal? Sim, mas agora não mais. Não tem mais isso de “olha, traiu? Tem prova da traição?”. Toda uma mudança, né?
Que outras mudanças propunha? Quando surgiu o teste de DNA [na década de 1990], eu recuperei casos de teste de paternidade que ficaram sem solução por falta de provas. Porque é difícil você provar que houve uma relação sexual. As pessoas apresentavam testemunhas que diziam que os dois iam juntos ao clube, às festas, só. Eu dizia que os processos podiam ser revistos. As pessoas falavam: “Mas o juiz já decidiu, não pode voltar atrás”. E eu dizia: “Mas acho que pode, sim”. E virou regra.
Por que decidiu bater de frente tantas vezes? Por causa da discriminação que sofri. Sempre fui muito questionadora. Se não fosse assim, não teria nem entrado na magistratura.
Como assim? No Rio Grande do Sul, as mulheres não podiam fazer concurso, um negócio horroroso.
Era uma regra clara ou um costume? Historicamente, havia cem anos que as inscrições das mulheres eram recusadas. Para fazer o concurso, a pessoa precisa pedir para se inscrever. Mas as mulheres não chegavam nem nas provas.
E como você conseguiu? Fui trabalhar no Tribunal de Justiça como datilógrafa e fui subindo até virar assessora do presidente. Quanto mais eles me conheciam, menos desculpas tinham para não me aceitar, tu entende? Nessa época eu também já dava aula na faculdade. Então, se eles recusassem alguém com essa qualificação, ia ficar muito escancarado que era preconceito. No ano em que me inscrevi, em 1972, tinha umas 60 mulheres requerendo inscrição.
Deu certo, então? Sim, mas foi dolorido. Porque, logo que aceitaram a inscrição, começou um movimento meio surdo, tipo “então tá, vamos deixar as mulheres fazerem as provas para não acharem que estamos sendo preconceituosos. Mas elas vão rodar”.
Quantas mulheres passaram? Das 60 passaram quatro nas provas escritas e, nas orais, só eu e mais uma. E aí, na entrevista final, me perguntaram se eu era virgem.
Como assim? A virgindade na época tinha valor. Soube até que Brasil afora mulheres não foram aceitas porque viviam com alguém ou tinham filho sem ser casadas. Era um demérito para a mulher não ser virgem. Na entrevista, me perguntaram isso pra ver se eu teria condições morais de assumir o cargo.
E? Nessa época eu não dava bola pra ninguém, tinha o foco no que eu queria ser e sabia que não poderia me expor para não ficar malfalada, com fama de namoradeira. Era um negócio muito difícil, sabe? Eu tinha que ficar virgem, pura, a imagem imaculada da mulher [risos].
Esse machismo continuou depois de aprovada? Isso me acompanhou a vida toda. Quando engravidei, os colegas achavam que eu ia abandonar a magistratura. Isso nunca passou pela minha cabeça. Aí, quando o Cesar [primeiro filho, hoje com 34 anos] nasceu, só me deram uma licença médica de 30 dias. E tu acredita que eu voltei? Da segunda vez [quando a filha Suzana, 32 anos, nasceu], exigi que me dessem a licença-maternidade padrão. Anos depois, quando entrei no Tribunal de Porto Alegre, demorou para que um dos banheiros se tornasse feminino. Eles queriam que, em vez de ter um só pra mim, eu chamasse um guarda pra ficar na porta toda vez que quisesse usá-lo.
Que outras discriminações sofreu? Eu nunca fui convidada para posto nenhum na carreira, sempre fui promovida por antiguidade. Até na hora de ir pro Tribunal como desembargadora, depois de 25 anos de carreira, ainda recebi sete votos contrários [de 21] para ser promovida. Depois de tudo o que já tinha feito. A sensação que tenho é que me doeu mais essa rejeição do que a inicial, porque lá era um movimento contra as mulheres, não contra mim. Mas sou melhor movida a ódio.
Como a sua família viu a escolha de ser juíza? O meu pai ficou muito emocionado, porque ele teve cinco filhos e só eu estudei direito. Ele morreu pouco antes de me formar. Meus dois irmãos se tornaram engenheiros e minhas duas irmãs não se formaram e casaram com engenheiros. Fui criada dentro daquele modelo convencional: eu tinha um pai provedor, o profissional que se realizava, e uma mãe do lar. E foi sempre o modelo do meu pai que me serviu. Ele era um idealista. Para minha mãe, eu era a filha que tinha dado mais trabalho. Ela dizia que eu estava tirando o lugar dos homens.
E os namorados? Antes do meu primeiro marido, fui noiva duas vezes, de estudantes de medicina. Os dois queriam que eu parasse de estudar para casar. Um se formou e estava indo para os Estados Unidos, queria que eu fosse junto. Ele tratava isso de um modo jocoso, me apresentava aos amigos dizendo: “Olha, ela quer ser juíza”, rindo. Não fui pros Estados Unidos e o noivado acabou. Casei com o primeiro que não me pediu para abandonar os meus sonhos.
O casamento foi na igreja, tradicional? Sim, porque para minha mãe isso era muito importante. Eu nem queria casar de vestido, na foto tu vê que eu nem estou de véu… Eu casei com 26, 27 anos, já era juíza, não gostava da história do branco. Nunca gostei dessa simbologia.
Por quê? Eu ainda não entendo muito, as mulheres ainda alimentam aquele sonho do casamento, do véu e grinalda, da roupa branca, que significa pureza e castidade. Mulheres da geração das minhas filhas… E aquele casamento do príncipe William, hein? Desculpa, mas ela [a Kate Middleton] estava de burca. Usava um véu todo coberto, aquilo era uma burca, toda tapada. Até hoje tem noivas que casam assim. Que simbolismo é esse?
Você acha que tem algo de errado em as pessoas ainda sonharem com isso e pagarem caro por um vestido? É um sonho sonhado desde sempre, né? A mulher não pode não casar, a sociedade não permite. Se a mulher não casou é porque ela sobrou, porque ninguém quis. Não é livre para não casar assim como não é livre para não ter filhos. Se a mulher casa e não tem filhos, ela falhou, é uma família com problemas. Eu vejo as mulheres avançando, ainda ganham menos, é verdade, mas avançam, trabalham. Onde elas não vão tão longe? No mundo privado. Nas relações familiares ainda existe uma relação de poder muito verticalizada. E elas ainda se submetem a isso por causa do sonho.
Essas ideias ainda estão muito arraigadas? A mulher ainda tem que cuidar do marido, dos filhos. Se recebe uma proposta para ficar um mês nos Estados Unidos, algo que vai ser bom pra carreira, fica toda culpada, enche o freezer de comida, pede pra mãe dar uma olhadinha na casa. Se é o marido que recebe, é uma festa, “vou preparar a sua mala”. Olha este exemplo. O sogro da minha sobrinha colocou a mulher com Alzheimer numa clínica, desmanchou a casa deles e foi viver com outra. Todo mundo na família acha que ele é um marido maravilhoso, porque ele visita a clínica toda semana. Queria ver o que todo mundo ia achar se fosse o contrário, se a mulher tivesse jogado ele numa clínica e ao mesmo tempo estivesse vivendo com outro. O conceito ia ser o mesmo?
Mesmo com tantos modelos, você casou quantas vezes quis, não é? Casei cinco vezes. Minha mãe se incomodava muito com essa história de eu sair de um casamento e entrar no outro. Ela passou a vida dizendo “coitado do João” [o primeiro marido] e eu respondendo: “Coitado, não!” [risos]. Quando casei com o segundo, meus filhos eram pequenininhos e queriam ter o sobrenome dele [por causa da convivência intensa que tinham com o padrasto]. Minha mãe apoiou, assim ninguém na cidade saberia que não eram filhos dele. Não topei. Eu tinha muito orgulho da minha vida.
E quando casou pela terceira vez, o que sua mãe disse? Ela enlouqueceu, brigou comigo, não queria saber do marido. Perguntava que modelo eu ia dar pros meus filhos e eu respondia: “Um bom exemplo, ou seja, a gente fica junto enquanto estiver bom”.
Sempre foi assim? Eu vivo em função da paixão, me envolvo, entro de cabeça. Com o segundo marido, decidimos casar e viver juntos três dias depois de termos nos conhecido, num restaurante. Com o último, estive a ponto de largar tudo aqui e ir para São Paulo.
E como acabaram os relacionamentos? Saí fora de todos porque pra mim deixou de ser bom. Um dos meus maridos até me disse: “Sabe que nunca imaginei que tu fosses te separar de mim?”. E eu falei: “Pois esse foi teu grande mal” [risos].
Nunca se arrependeu? Não, minha vida não tem retrovisor. Quando era juíza no interior, eu saía das cidades e nunca olhava pra trás. Tinha sido bom? Tinha. Então fui, vazei. É até um vício profissional. Se tu julga uma coisa num sentido, não pode ficar pensando naquilo, senão tu enlouquece. Isso acaba te influenciando, tu começa a agir na tua vida mais ou menos como ages profissionalmente. Depois que decidi, não paro para pensar.
Está solteira há quanto tempo? Já faz uns dois anos que não namoro. O último namorado foi tão complicado… Ele dizia: “Homem é homem, mulher é mulher, puto é puto”. Acha que eu posso namorar um homem desses? Tem que ser alguém que eu admire e com quem consiga interagir, falar. Admiro muito quem faz a Suzana Vieira da vida e arruma um garotão, mas não consigo. Hoje estava caminhando com uma amiga e chegamos à conclusão de que não estamos mais a fim de namorar. Acho difícil encontrar alguém que acompanhe o meu ritmo. Eu vou pra praia, agora tenho um casamento lá em Recife, faço palestra aqui, passo uns dias na Itália, tenho esse ritmo. E, em geral, eles também se atrapalham um pouco com a minha visibilidade.
Sempre foi uma questão? Teve um que disse que ele era o marido “sem sorte”, em vez de consorte. Uma vez, chegamos num hotel onde eu ia palestrar e ele não encontrou a reserva. Eu perguntei qual nome tinha dado na recepção e ele falou: “O meu”. Mas a reserva estava no meu, né, ele que era meu acompanhante.
Desde que começou a militar pela causa gay, perguntam se você é lésbica? Sempre. Eu pergunto se a pessoa está a fim de mim. Se está, eu respondo. Se não, não interessa. Precisa saber a essa altura com quem eu vou pra cama?
E por que decidiu deixar a carreira de desembargadora? Em função da causa gay. Esse é um segmento tão sofrido que o legislador, por medo de ser rotulado, não aprova nenhuma lei – além de ter essa bancada evangélica que se junta com a católica, é um grupo monolítico. E, se não tem lei, qual é a tendência do juiz que também é fruto dessa sociedade homofóbica? É não dar direito nenhum. Tem que romper isso. As primeiras sentenças a reconhecer uniões homoafetivas no Brasil foram do Tribunal do Rio Grande do Sul, do qual eu participei.
Mas então por que não seguir no Tribunal? Porque as pessoas acham que não têm direito e não procuram a Justiça. Não sabem em que porta bater, acham que os advogados não vão atender, e eles não atendem mesmo. Via processos que entravam mal formulados e perdiam. Aquilo era extremamente frustrante. Então resolvi me aposentar, dez anos antes, e abrir um escritório de advocacia pra colocar na placa “Direito Homoafetivo”. Foi o primeiro do Brasil.
De onde vem esse termo? Eu mesma cunhei, para conseguir trazer esses casais para dentro do conceito de família. Família não é só casamento, tanto que existe união estável. Também não é só procriação, tanto que há casais sem filhos, e também não é só sexo, porque hoje existe até procriação sem sexo. Então, o que é? É uma relação de afeto. Como a frase do Antoine de Saint-Exupéry [o autor de O Pequeno Príncipe]: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
Por que decidiu ministrar casamentos? Porque é importante. O casamento é um rito de passagem. O que é casar? É assinar um papel. Tu vai lá, assina e sai casado. Mas sai diferente do jeito que entrou. Então faço o documento e a solenidade também. Já viajei a Manaus, Brasília, Belo Horizonte, São Paulo, várias vezes, para celebrar casamento. Já fiz em clubes chiquérrimos, lindos. Num deles, tinha um velhinho que me disse assim: “Eu estava vindo pra cá e pensando… será que vai ter beijo? Aí eu vi: tem que ter, não existe casamento sem beijo”. Ele estava tentando vencer o próprio preconceito.
E como são as cerimônias? Eu vou toda bonita. Peço para a tabeliã ler a escritura, aí pergunto se eles concordam com os termos, ou seja, tem o momento do “sim”. Aí peço para eles dizerem os votos, e para prepararem algo antes para não ter que dizer “na saúde e na doença”, essa coisa horrorosa. Aí eu afirmo para eles: “A partir deste momento vocês estão numa união estável, num estado civil, vocês estão convivendo, e portem sempre com vocês o documento”.
Como se sente? Ah, eu adoro. Bem mais que os casamentos héteros a que sou convidada. Eles têm muito cuidado, alguns casais estão juntos há anos, fazem coisas como ter aula de canto para se apresentar na cerimônia. Só tem uma parte triste. Em 90% dos casos, os pais dos noivos não estão presentes.
Triste mesmo. É muito. Eu sempre falo com um dos noivos por telefone antes. Teve uma vez em São Paulo que não reconheci ele, de tanto que chorava. Chorou a cerimônia toda. Eu pensava: “Não foi com esse que conversei por telefone”. No final, ele me falou: “Me desculpa ter chorado tanto, mas, sabe o que é, a minha família não veio. Eu convidei todo mundo, e ninguém veio”. Eu tive que dizer: “Mas então quem são essas 400 pessoas que estão aqui, chorando contigo?”. Procurei dizer isso, mas sempre fica uma coisa. É muito raro a família dos dois comparecer.
Acha que isso vai mudar? Gays casando e tendo filhos vai ser algo normal no Brasil? Isso está acontecendo e é irreversível. As uniões extramatrimoniais levaram 70 anos para entrar na Constituição, entraram na reforma de 1988. As uniões homossexuais estão percorrendo o mesmo calvário.
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Compartilhada por Vanessa Rodrigues.
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