As políticas públicas de educação ambiental no Brasil estão reforçando um modelo de produção altamente destrutivo dos recursos naturais. Embora a agricultura familiar ainda seja a responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pela população brasileira, são as extensas monoculturas do agronegócio – voltadas para a exportação – que avançam sob a proteção de várias instâncias do poder. A análise é de Inny Accioly, pesquisadora do Laboratório de Investigações em Educação, Ambiente e Sociedade (Lieas), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRJ.
Em sua dissertação de mestrado, defendida no início de março, Inny constatou que o discurso do “desenvolvimento sustentável” adotado pelo governo federal em suas políticas para o meio ambiente esconde outras finalidades. “Na minha pesquisa, analisei o Programa de Educação Ambiental e Agricultura Familiar, do Ministério do Meio Ambiente. E descobri que o seu objetivo central é promover a regularização ambiental das propriedades rurais ligadas à agricultura familiar, de acordo com as normas do atual Código Florestal, que foi aprovado em 2012 e teve forte influência do agronegócio”, afirma, nesta entrevista ao UFRJ Plural.
Segundo Inny Accioly, em vez de incentivar a produção de grãos para alimentar rebanhos no exterior, o Brasil deveria começar a se preocupar com a sua soberania alimentar – cuja ideia básica é conceder à população o direito de escolher o que plantar e como plantar. Ela diz que o agronegócio começou um forte lobby para generalizar a produção de sementes transgênicas, que são patenteadas. “Pode-se chegar num ponto em que o agricultor não vai plantar porque ele terá que pagar pelo uso das sementes”, denuncia.
UFRJ Plural – Na sua pesquisa, você constatou um grande poder de influência do agronegócio hoje no Brasil. Como isso acontece?
Inny Accioly – Fiz uma averiguação sobre o Congresso a fim de levantar os deputados e senadores que fizeram parte das Comissões de Meio ambiente dessas duas casas. E descobri que o agronegócio era um dos maiores financiadores de campanha desses parlamentares. Também constatei que grandes nomes do agronegócio, como a Kátia Abreu, presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), fazem campanha de arrecadação de dinheiro para financiar a bancada ruralista. O objetivo é eleger deputados e senadores que cumpram a agenda do agronegócio no Congresso Nacional.
UFRJ Plural – Alguma outra descoberta chamou a sua atenção durante esse levantamento?
Inny Accioly – Sim. Em 2010 e 2011, as alterações do Código Florestal dominaram os debates dentro do Congresso. E na ocasião ocorreu uma grande articulação do setor do agronegócio. Ao investigar essa movimentação, começamos a descobrir outras empresas nessa rede de interesses que, aparentemente, não são diretamente vinculadas à questão rural. Ninguém poderia imaginar, por exemplo, que como integrantes da Associação Brasileira do Agronegócio figuram todos os bancos, a Rede Globo, além das indústrias químicas, como a Basf. Começamos então a perceber todo um complexo produtivo vinculado ao conceito de agronegócio.
UFRJ Plural – Hoje, esse seria o segmento produtivo com maior capacidade de fazer lobby sobre todas as instâncias do poder público?
Inny Accioly – Sim, ao verificar as articulações desse setor dentro do Congresso nacional, observei também o quanto o atual governo é vinculado a esse setor. No livro O Partido da Terra, Alceu Castilho levantou o financiamento de campanhas políticas e verificou que boa parte dos prefeitos e governadores é ruralista e proprietária de terra, vinculados ao agronegócio. Esse setor também tem influência sobre a Agência Nacional de Vigilãe;ncia Sanitária (Anvisa), que deveria regular o controle e o uso dos agrotóxicos no Brasil. Há um bloqueio das pesquisas que buscam verificar os efeitos do uso de agrotóxicos sobre o meio ambiente e a saúde do trabalhador. Temos casos de agricultores com problemas sérios de saúde por causa do contato com esses venenos.
UFRJ Plural – Muitos apontam o agronegócio como uma atividade que produz graves consequências ambientais e sociais para o país. Qual a sua visão sobre esse tema?
Inny Accioly – Temos que pensar que o modelo do agronegócio usa de forma intensiva os recursos naturais. São grandes monoculturas que, muitas vezes, utilizam, além de mão de obra semiescrava, agrotóxicos que já foram até mesmo proibidos em outros países. O incentivo ao agronegócio também significa estimular esse modelo de exploração da terra e do trabalhador rural.
UFRJ Plural – E em que medida esse modelo é fruto das particularidades do desenvolvimento histórico brasileiro?
Inny Accioly – Na visão de alguns pesquisadores, podemos compreender as economias do Brasil e latino-americanas como integrantes de um padrão exportador de especialização produtiva. Ele difere do padrão de exportação de bens primários sem nenhum valor agregado, que até a década de 1920 caracterizava a nossa economia. Atualmente, com o chamado processo de mundialização e complexificação do sistema produtivo, esse padrão sofreu uma alteração. O Brasil continua um grande exportador de produtos primários, mas que exigem um maior tratamento. Hoje, por exemplo, são necessários um robusto setor energético e uma grande logística de transporte para a exportação de aço. Atualmente, vemos que os programas como o Irsa [Integração Regional Sul-Americana] cumprem esse papel de articular os países latino-americanos para terem uma logística mais eficiente com a finalidade de exportarem bens primários para a Europa e a China, como alimentos, cana-de-açúcar e aço.
UFRJ Plural – E como o Brasil se insere nessa cadeia de produção global de alimentos?
Inny Accioly – Atualmente, somos um grande exportador de alimentos. Existe uma tabela do Ministério da Agricultura que mostra que o Brasil se encontra em primeiro lugar em exportação de determinados alimentos. Vemos um grande incentivo, por exemplo, ao monocultivo de soja para exportação. Essa soja brasileira vai alimentar rebanhos fora do Brasil.
UFRJ Plural – E onde entra a preocupação com a produção de alimentos para o povo brasileiro?
Inny Accioly – Essa é a grande questão. Em 2006, foi realizado um Censo Agropecuário pelo IBGE, identificando a pequena agricultura familiar como a grande responsável pela alimentação da população brasileira, especialmente com arroz, feijão, mandioca, entre outros produtos. O que se conclui é que a agricultura familiar, com menos terra e crédito, é responsável por cerca de 70% dos alimentos consumidos pela população. Portanto, é um setor altamente estratégico.
UFRJ Plural – é um setor estratégico, mas o Brasil parece ainda longe da chamada soberania alimentar. Poderia explicar esse novo conceito?
Inny Accioly – Atualmente, não vemos o governo federal, em nenhum momento, reivindicando a soberania alimentar, mas sim a segurança alimentar. Quando se fala em soberania alimentar, está se falando de soberania do povo brasileiro sobre os recursos genéticos da produção. Assim, o povo teria o patrimônio das sementes em suas mãos, podendo escolher o que plantar e como plantar. O que acontece é que o agronegócio começa também a influenciar a produção de sementes. Existe todo um lobby para que seja generalizado o uso das sementes transgênicas, que são patenteadas. Pode-se chegar num ponto em que o agricultor não vai plantar porque ele terá que pagar pelo uso das sementes. E ainda há toda uma discussão em torno dos efeitos dos transgênicos sobre o meio ambiente.
UFRJ Plural – E a segurança alimentar?
Inny Accioly – O conceito de segurança alimentar se preocupa mais com a questão da quantidade, ou seja, garantir alimentação para a população. é um discurso que deixa de lado a discussão sobre a qualidade dos alimentos. Então, quando se reivindica a segurança alimentar, pode-se muito bem entender que, para atingir o seu fim, é permitido lançar mão de sementes transgênicas e de agrotóxicos. Ou seja, não interessa se a população está comendo veneno ou se as condições de trabalho dos trabalhadores no campo são precárias. Esse conceito de segurança alimentar exclui do debate essas questões essenciais. E que segmento seria o mais apto a produzir alimentos seguindo essa lógica? O agronegócio.
UFRJ Plural – Pela sua pesquisa, pode-se dizer que o Estado brasileiro lida com a agricultura familiar como um apêndice do agronegócio?
Inny Accioly – Sim. Ao identificar a vinculação do atual governo com esse setor, começamos a compreender melhor os atuais programas voltados para o fortalecimento da agricultura familiar. Mas é preciso deixar claro que agricultura familiar não é agricultura camponesa, um conceito reivindicado pelos movimentos sociais do campo e que carrega um componente político muito mais forte.
UFRJ Plural – E qual é a abrangência do conceito de agricultura familiar?
Inny Accioly – é um conceito em que cabe tudo, desde assentados, ribeirinhos e quilombolas, até a nova classe média rural. Portanto, serve muito aos interesses do agronegócio.
UFRJ Plural – Por quê?
Inny Accioly – O que está por trás do incentivo à agricultura familiar sem que, por outro lado, se faça a reforma agrária? Agindo assim, o governo estimula que esse setor, que já tem pouco crédito e pouca terra, utilize cada vez mais mão de obra familiar e precária, mantendo o seu papel de produtor de alimentos para consumo interno. Libera-se, assim, maior parcela de terras para ser explorada pelo agronegócio visando à exportação. Outro aspecto é que há um incentivo para que o agricultor familiar se alie ao agronegócio, conviva como parceiro desse segmento. é uma estratégia para reduzir as ocupações de terra e os conflitos no campo.
UFRJ Plural – Há um forte marketing de empresas e corporações em torno de iniciativas ambientais e ações sociais que têm o objetivo de melhorar a sua imagem perante a sociedade. Esse tipo de prática já chegou ao agronegócio?
Inny Accioly – Com certeza. Hoje, o agronegócio levanta a bandeira da defesa ambiental. Durante a Rio+20, a presidente da CNA, Kátia Abreu, agiu como se fosse uma grande defensora do meio ambiente. No ano passado, esse setor promoveu uma campanha televisiva com atores da Rede Globo, cujo slogan era “Sou Agro”. O objetivo era exatamente fortalecer a imagem do agronegócio. A estratégia de marketing atual chega a excluir o termo negócio da expressão agronegócio, enfatizando que somos um país agro e estimulando as pessoas a serem “agro”, como se isso bastasse para defender a vida e um futuro para o país. Há uma tentativa de naturalizar esse sistema de exploração da natureza e do trabalhador no campo. E essas campanhas do agronegócio de defesa da sustentabilidade são muito fortes e bem articuladas, tanto no campo da publicidade como no da educação.
UFRJ Plural – E como você avalia as políticas ambientais do Estado para o campo, particularmente o Programa de Educação Ambiental e Agricultura Familiar, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e que foi objeto da sua pesquisa?
Inny Accioly – Esse programa tem o objetivo oficial de promover o desenvolvimento sustentável no campo. Nas minhas investigações, porém, verifiquei que o seu objetivo central é promover a regularização ambiental das propriedades rurais ligadas à agricultura familiar, de acordo com as normas do atual Código Florestal, aprovado em 2012.
UFRJ Plural – Na prática, como funciona?
Inny Accioly – Houve muita disputa de interesses na elaboração do Código Florestal, com forte influência do agronegócio. Por meio desse programa, o Ministério de Meio Ambiente faz o discurso de que, agora, o Brasil tem uma lei, gostando-se ou não dela. E mesmo os agricultores familiares que, através de sindicatos ou movimentos sociais, se organizaram para lutar contra o modelo do agronegócio terão que se adequar a ela.
UFRJ Plural – E qual é a principal conclusão da sua pesquisa?
Inny Accioly – Uma das conclusões mais importantes foi a constatação de que a educação ambiental está sendo utilizada para outros fins. Esse programa do governo foi feito, na verdade, para que o agricultor seja enquadrado numa lei e possa servir melhor ao modelo do agronegócio. A educação ambiental hoje está cumprindo o papel de mascarar a luta de classes, que no campo é muito violenta.
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