Um atalho entre o campo brasileiro e o almoço escolar

Envolverde – Por Fabiana Frayssinet, da IPS*

Paracambi, Brasil – Entre a propriedade de Maria Gomes Morais e uma escola do Rio de Janeiro há campos, montes e caminhos intransitáveis quando chove.  Mas um programa de alimentação escolar criou um caminho que une os frutos colhidos por pequenos agricultores como ela e a fome de 45 milhões de estudantes.  São apenas 60 quilômetros desde a capital do Rio de Janeiro até a localidade de Sabugo, no município de Paracambi.  Contudo, os mapas por satélite se perdem em Sabugo, em cujas vias convivem automóveis, bicicletas e carroças puxadas por cavalos cansados.

A árida paisagem do povoado muda sutilmente para diferentes gradações de verdes, sobreviventes da tropical Mata Atlântica, até que, entre bananais nativos e bambus estrangeiros, se chega ao sítio Recanto da Alegria, propriedade de Maria Gomes, por todos conhecida como Neta.  De 61 anos, ela trabalha desde os dez nos três hectares ocupados desde então por sua família, em uma parte de uma antiga fazenda da qual uma posterior reforma agrária lhe concedeu propriedade.

“Nunca tive medo.  Vou a qualquer parte, subo e desço os montes.  Não me assustam cobras e essas coisas.  Parece que fugiram de mim”, contou à IPS.  “Os grandes agricultores têm suas máquinas.  As nossas são estas: as mãos”, acrescentou com um humor que emana de sua vida no campo, “que não trocaria por nada”.  Seu único apoio é um vizinho que a ajuda a desmatar o terreno onde planta hortaliças: quiabo (Abelmoschus esculentus), jiló (Solanum gilo) e frutas como limão, maracujá e laranja-lima, entre outras.  A natureza lhe presenteia com bananas de toda variedade.

Antes, vendia aos intermediários e tinha de esperar longo tempo para receber.  “O que comíamos?  Não me envergonho de dizer: angu de papa de banana com farinha de milho).  Não tinha isso de agora, planos de alimentação.  Esperava-se o intermediário para fazer a compra mensal.  E, enquanto isso, o armário esvaziava e as crianças sem comer”, lembra sobre seus três filhos, já adultos.  Contudo, mediante uma cooperativa do Estado do Rio de Janeiro, a Unacoop, Neta se converteu em fornecedora do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que o Brasil desenvolveu tão bem que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) o tem como modelo para replicar em outros países.

O PNAE se vinculou à agricultura familiar em 2009, mediante uma lei que estabelece que 30% dos alimentos dos planos governamentais devem ser fornecidos por esse setor, que representa 10% do produto interno bruto.  O PNAE tem duas finalidades: garantir a alimentação de crianças e adolescentes em idade escolar e melhorar a vida de 4,3 milhões de pequenos produtores rurais como Neta.  “O bom é que melhorou o preço que nos pagam”, explicou Neta.  Antes sua casa era apenas de adobe, mas agora tem várias paredes de tijolo rebocado.  E comprou geladeira, fogão e lava-roupas, que pode usar porque também chegou a eletricidade.

O PNAE prioriza os assentamentos camponeses criados pela reforma agrária, as comunidades indígenas e os quilombos, comunidades em terras onde se refugiavam os escravos.  Um caminhão, ou trator quando chove, recolhe suas frutas e verduras e as leva a um mercado local, de onde são transportadas para o Centro de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro (Ceasa) e terminam em alguma das mais de 161 mil escolas públicas incluídas no programa nacional, 83% do total.  Neta fornece banana, laranja, abacate, abacaxi, caju e cereja.  “Para a merenda escolar, tudo tem de ser de primeira qualidade”, explicou.

Os responsáveis por programas como o PNAE os definem como “interruptores do ciclo de pobreza”.  Trata-se de uma política intensamente aprofundada pelos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e de sua sucessora Dilma Rousseff.  O PNAE tem uma longa história.  Nasceu em 1955, como um plano assistencialista para a infância mais pobre.  Nos anos 1990, se descentralizou e incorporou em sua administração representantes das famílias, das comunidades, pessoal docente e os poderes Executivo e Legislativo, detalhou à IPS sua coordenadora nacional, Albaneide Peixinho.  A partir de 2003 multiplicou seu orçamento em 300% e foi ampliado para alcançar estudantes do ensino médio e adultos em escolarização, acrescentou.

O Ceasa é um burburinho de caminhões descarregando mercadorias na madrugada.  Os produtos de Neta e demais integrantes de sua cooperativa chegam a um pavilhão especial para pequenos camponeses.  Uma área de Agricultura Familiar e Extensão Rural dentro do Ceasa presta assessoria em planejamento produtivo e diversificação de cultivos.  “O pequeno agricultor ainda não está capacitado para planejar os tempos de produção e entrega.  Para uma merenda escolar, não se pode mandar uma banana verde como se faz quando se trata de um grande mercado que depois enviará para a feira.  Tem de chegar madura no ponto de consumo”, destacou o chefe da área, Newton Novo.

Entretanto, a assistência técnica é insuficiente.  “Deve chegar ao próprio campo para fazer análise do solo e ver o que é adequado plantar em cada propriedade”, explicou à IPS a coordenadora da Unacoop, Margarete Teixeira.  Tampouco é fácil ser um fornecedor do PNAE, que exige títulos da terra em ordem, em um país imenso como o Brasil, que arrasta problemas de propriedade agrária desde a época colonial.

Contudo, o especialista em direito alimentar Leonardo Ribas destaca os resultados: fortalecer a economia local e a agricultura familiar, fundamental “em uma sociedade onde, pelo agronegócio, o alimento se converteu em mercadoria”, e acrescentou que “também se conseguiu que as crianças tenham uma alimentação mais adequada, porque começaram a consumir alimentos da região e produzidos de forma orgânica”, sem agroquímicos.

A cozinha da escola municipal Nilo Peçanha, cujos alunos vivem em bairros pobres e lotados como a favela da Mangueira, prepara diariamente desjejum, almoço e merenda para 500 estudantes.  Para criar os cardápios “são usados parâmetros de alimentos saudáveis, vinculados a cada idade, ao tempo de permanência na escola, período de colheita de cada produto, custo e hábitos alimentares dos alunos”, explicou a diretora do Instituto de Nutrição da Secretaria Municipal de Saúde, Fátima França.

A diretora da escola, Márcia Alves, lembra que as crianças costumam se aborrecer com legumes e verduras, mas as aulas de ciências estimulam o consumo ensinando seus valores nutritivos.  Os alunos parecem ter aprendido a lição.  Pelo menos com a diretora por perto.  “Comia muito fast food, mas agora tenho uma dieta balanceada”, contou Mariana Cristina, de 12 anos.  “Antes comia mais doces do que comida, mas na escola isso foi mudando”, acrescentou Elisângela, da mesma idade.

Na mesma hora em que os alunos almoçam suas verduras, Neta troca de roupa e vai à cidade para tentar que a logística do mercado local funcione melhor: conseguir uma câmara de amadurecimento de frutas e organizar as entregas dos produtores de seu município, o que lhes permitirá também aumentar os ganhos.  “Estou muito satisfeita.  Estamos matando a fome não apenas das crianças, mas de todas as pessoas”, enfatizou.

* Com a colaboração de Fabíola Ortiz (Rio de Janeiro).

Enviada por Mayron Régis.

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