“Meu filho foi morto pelo sistema repressivo que mantém as suas garras em vários ambientes”. Entrevista especial com Dermi Azevedo

“As comissões da verdade estão chegando em boa hora, embora atrasadas, o que nos motiva a ajudá-las a se integrar e a fazer da melhor forma possível seu trabalho”, pontua o jornalista e cientista político.

Por Graziela Wolfart

No último dia 17 de fevereiro, o filho do jornalista e cientista político Dermi Azevedo, Carlos Alexandre Azevedo, cometeu suicídio ingerindo uma quantidade fatal de medicamentos. Quando tinha apenas um ano e oito meses, em 1974, Carlos foi preso e torturado junto com a mãe no prédio do Deops, em São Paulo. Ainda bebê foi vítima de choques elétricos e outras sevícias. E nunca mais se recuperou. Em função deste trágico episódio, a IHU On-Line entrevistou, por telefone, Dermi Azevedo, que reflete sobre as consequências ainda atuais da ditadura militar em nosso país e sobre a importância das comissões da verdade, na busca de desvendar o que aconteceu no período para que os torturadores sejam identificados e punidos.

Segundo Dermi, “enquanto outros países avançaram e chegaram a tomar medidas concretas de punição aos golpistas e torturadores, no Brasil ainda estamos muito longe de atingir esse nível. Estamos ainda na fase de descobrir o que aconteceu nos porões da ditadura”. No entanto, ele vê como um sinal positivo a criação das comissões, mas pensa que elas precisam andar mais rapidamente, para se integrar mais e ouvir as camadas majoritárias da população. Um dos sentimentos que Dermi descreve sentir em relação à impunidade dos policiais que torturaram a ele, seu filho e à mãe dele, é o de que “nós não temos rancor; temos memória, e devemos cultivá-la, não alimentando o sentimento de ódio, mas de justiça. Acreditamos que ela virá, mais cedo ou mais tarde”.

Pós-graduado em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo – USP, e em Política Internacional, pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Dermi Azevedo é graduado em Comunicação Social – Jornalismo e jornalista profissional há 30 anos. Confira a entrevista.

IHU On-Line  Como o senhor define a importância dos trabalhos das Comissões da Verdade em todo o país? Por que é tão importante resgatar o que aconteceu durante o regime militar?

Dermi Azevedo – A criação de comissões da verdade, seja no âmbito oficial – no caso dos poderes Executivo e Legislativo – seja no nível das câmaras municipais, assembleias legislativas estaduais, é importante porque elas vieram atender a uma demanda reprimida há muito tempo por parte dos setores mais esclarecidos da sociedade civil. Enquanto outros países avançaram chegando a tomar medidas concretas de punição aos golpistas e torturadores, no Brasil ainda estamos muito longe de atingirmos esse nível. Estamos ainda na fase de descobrir o que aconteceu nos porões da ditadura. Mas esse já é um passo importante, pois é preciso começar e, a partir daí, aperfeiçoar o que deve ser feito. O que temos hoje é um quadro já bastante numeroso de comissões, até algumas delas formadas pela sociedade civil. Agora mesmo está sendo organizada a comissão da verdade dentro das igrejas cristãs que trabalham de forma ecumênica. Eu estou integrando essa comissão por parte da Igreja Anglicana. E ela está dando passos nos sentido de identificar, dentro de cada igreja, os componentes que colaboraram com a repressão, no sentido de fazer um levantamento mais objetivo e seguro, mostrando para a opinião pública que as igrejas eram atingidas no seu próprio seio pela repressão, pelas pessoas infiltradas, ou mesmo por bispos, padres, pastores ou leigos que colaboraram conscientemente com a repressão.

Então, entendo que as comissões da verdade estão chegando em boa hora, embora atrasadas, o que nos motiva a ajudá-las a se integrar e a fazer da melhor forma possível seu trabalho. Existem segmentos da sociedade que ainda não estão sendo ouvidos adequadamente pela Comissão Nacional da Verdade e pelas comissões em geral, como é o caso das mulheres, dos agricultores, dos trabalhadores rurais e dos operários. São setores que têm ficado em segundo plano, porque não dispõem de canais de diálogo com a cúpula do poder. Vejo como um sinal positivo a criação das comissões, mas acho que elas precisam andar mais rapidamente, se integrar mais e ouvir as camadas majoritárias da população.

IHU On-Line  Qual o sentimento que a impunidade do crime de tortura provoca?

Dermi Azevedo – O primeiro sentimento é o de que, mais cedo ou mais tarde, essas pessoas serão identificadas e punidas legalmente. O segundo sentimento é o de que nós não temos rancor; temos memória, e devemos cultivá-la, não alimentando o sentimento de ódio, mas de justiça. Acreditamos que ela virá, mais cedo ou mais tarde. Certa vez eu encontrei um oficial torturador, um capitão da polícia militar, cuja filha me foi apresentada para fazer estágio no jornal onde eu trabalhava. Esse oficial é o mesmo que, no período do regime, em que eu estava fora do meu estado –Rio Grande do Norte – ia todos os dias à casa dos meus pais e dizia que não me esperassem mais, porque eu já havia morrido há muito tempo. Isso é uma forma de tortura. Eu perguntei se ele não se sentia mal em amedrontar um casal de pessoas idosas, cuja esperança era de ver o filho antes de morrer. E ele me respondeu que estava apenas cumprindo ordens. Daí se retirou da sala e foi a minha vez de pedir desculpas à filha dele, que não tem responsabilidade nenhuma nesse episódio e em nenhum outro em questão, pois não era da sua geração. Ela terminou o estágio e acabou casando com o fotógrafo do jornal e está lá até hoje. Então, acredito que esses algozes serão, um dia, identificados e devidamente punidos. É um processo demorado, mas vai acontecer. Tenho esperança.

IHU On-Line  Como esse trágico episódio envolvendo a morte de seu filho, Carlos Alexandre, pode inspirar e fortalecer a luta por memória, verdade e justiça?

Dermi Azevedo – A repercussão que o caso do meu filho está tendo demonstra a indignação da sociedade civil e das autoridades do estado diante do que aconteceu. Se eles faziam isso com crianças, imagina o que faziam com pessoas mais idosas. É um caso tão terrível e nem sequer formalizaram um processo legal na época junto à auditoria militar. Eles fizeram aquilo e depois não tinham nem como justificar, mesmo dentro da lógica deles, que um bebê de 1 ano e 8 meses fosse um perigoso subversivo que atentava contra a segurança nacional. Então não houve formalização do processo. Mas sabemos quem foram os responsáveis. No entanto, a repercussão, que já é surpreendente em caso de qualquer morte violenta, tornou-se muito maior pelo contexto histórico e pelo fato de que o que aconteceu com ele agora faz parte de um processo iniciado em 1974. Esse acontecimento com o Carlos Alexandre está servindo para que as vozes que estavam sufocadas até pela lembrança do que sofreram estejam agora se erguendo, se manifestando e exigindo que os casos sejam realmente apurados e os culpados punidos. Então, vamos aos nomes dos responsáveis: o chefe da equipe que nos prendeu, a mim e a mãe dele, era o delegado Sérgio Fleury. E o executivo imediato foi o delegado Josecyr Cuoco, irmão do ator Francisco Cuoco. Pelo que me consta, ele foi expulso da Polícia Civil porque esteve envolvido em um caso de corrupção e, hoje, estaria na baixada santista vendendo sorvetes nas praias. Acabou não sendo punido por ser um torturador. Aqui é importante citar também o papel dos religiosos que colaboraram com a repressão. Eles precisam ser identificados e punidos.

IHU On-Line  Em que medida as consequências dos anos de ditadura ainda estão presentes na sociedade brasileira?

Dermi Azevedo – Ainda existe um preconceito muito grande na sociedade com relação às pessoas que lutavam contra a ditadura. Normalmente estes militantes pertenceram ou ainda pertencem a partidos declaradamente marxistas ou comunistas. E esse preconceito permanece ainda hoje quando alguém assume alguma posição de esquerda. Esse é um ponto, o do preconceito social. Outro ponto é que o estado democrático ainda não conseguiu meios para retificar essas figuras, que continuam ocupando cargos importantes na estrutura do estado, passando de governo em governo sem serem punidas. Outra coisa: a imprensa também é muito omissa. Ela poderia investigar esses casos, como o do meu filho, por exemplo.

IHU On-Line  Quais são os relatos mais marcantes que o senhor traz no livro “Travessias Torturadas. Direitos Humanos e ditadura no Brasil”?

Dermi Azevedo – Eu faço uma primeira abordagem autobiográfica, depois situo o contexto histórico, econômico, político e social em que se deu o golpe, em 1964. Então, apresento testemunhas de pastores evangélicos, o relato do assassinato do padre Antônio Henrique Pereira Neto, em Pernambuco. E escolhi alguns nomes – inclusive um gaúcho, que hoje está com 83 anos, Abílio Roque, que era um operário que trabalhava na região mineira do sul – para homenagear todos os militantes. Em grandes linhas o livro traz um pouco da minha entrada nesse processo. Coloco o povo como protagonista da história. E analiso a repressão contra a Igreja Católica: o caso do Frei Tito, o caso da atuação de lideranças que colaboraram com a repressão, como aconteceu com o próprio arcebispo de São Paulo, cardeal Agnelo Rossi, que colaborou indiretamente e diretamente com a repressão ao desconsiderar, por exemplo, o caso dos freis dominicanos.

IHU On-Line  Na carta de luto escrita pelo senhor, aparece muito forte a presença de Deus na vida de vocês. Qual a importância do lado espiritual em momentos como este?

Dermi Azevedo – Deus, em primeiro lugar, não pode ser responsabilizado por essas mazelas da sociedade. Ele nos criou a sua imagem e semelhança para sermos dignos. Se não somos capazes de buscar essa dignidade e procurarmos vivenciá-la no dia a dia, o Senhor da história não pode ser responsabilizado. Ele nos dá o livre-arbítrio justamente para que conduzamos a vida de um modo ou de outro. Essa é uma dimensão. A outra é a da fé. Acredito que essa fé está resumida na Bíblia que, em vários trechos, deixa claro que se pedimos a Deus proteção, de forma humilde, entregando em suas mãos o presente e o futuro, saberemos viver melhor e seremos mais capazes de resistir à dor e ao sofrimento. No caso do meu filho, eu tenho a convicção, pela fé, de que ele não foi embora definitivamente. Ele ressuscitará como todos os outros mortos, em quaisquer circunstâncias. E digo também que ele não cometeu suicídio propriamente. Ele foi morto pelo sistema repressivo que ainda mantém as suas garras em vários ambientes e setores. No plano pessoal, acredito que Deus se manifesta através de forças concretas: a solidariedade dos amigos, companheiros, da minha esposa, a professora Elis Regina Brito Almeida, e seus familiares. Todo esse movimento de solidariedade expressa a força de Deus. Isso preenche a nossa vida desde que o busquemos com humildade. Não posso dizer que estou consolado, pois não estou, mas graças a isso estou resistindo e pretendo continuar. Em primeiro lugar, para que mais nenhum jovem tenha que sacrificar a sua vida para fugir das sequelas da tortura. E, em segundo lugar, para que se descubra a verdade sobre tudo isso e que essa verdade seja apresentada à nação.

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