Desde sua chegada, Youry Fillien atrai clientela feminina para comércios da região de seu restaurante de comida haitianaSubempregos e preconceito racial são realidades cotidianas dos imigrantes no país sul-americano
A entrevista com o presidente da OSHEC (Organização Sociocultural dos Haitianos do Bairro Estación Central) estava marcada para as 13h. Adneau Desinord, de 27 anos, precisava daquela manhã para descansar, depois de cobrir o turno da madrugada, no posto de gasolina onde trabalha como frentista, em Santiago.
Às 8h, pouco depois de deixar o trabalho, Desinord liga pedindo para adiantar a conversa para as 9h30. Seu chefe havia pedido que voltasse para cumprir o horário das 14h às 20h. “Não posso dizer que não, para não perder o trabalho, e também porque se não faço turnos extras. Não sobra nada além do dinheiro para os gastos básicos”, se justifica.
Desinord vive no Chile desde 2009. Os sacrifícios laborais não são algo raro em sua vida e a mesma regra serve para a maioria dos haitianos que vivem no país. “Estamos sempre sujeitos às piores tarefas, horários e condições”. Entre os cerca de 300 compatriotas associados à OSHEC, são raros os que não possuem experiências profissionais degradantes, afirma o presidente.
Exemplo da forma como o mercado de trabalho chileno recebe os haitianos é o caso de Bourbert Simon. Com um diploma técnico de engenharia mecânica debaixo do braço, ele chegou do Haiti em abril de 2012 e buscou emprego na viação intermunicipal do Chile. Fez teste de aptidão mecânica e quase recebeu nota máxima. Mesmo assim, foi contratado como auxiliar de limpeza. Desinord, que dividiu um quarto com Bourbert, conta que tinha certeza que os aprovados tinham feito menos pontos que ele na prova. Ele preferiu abandonar Chile e tentar a sorte na Guiana Francesa, após dois meses limpando ônibus.
De acordo com Desinord, o racismo não parte somente dos empregadores. O preconceito com haitianos no ambiente de trabalho também é comum entre os colegas de trabalho e a perseguição é maior contra aqueles que conseguem cargos de destaque. Foi o caso de Junior Jean Joseph, que trabalhou em uma empresa de transporte público municipal como supervisor. Os trabalhadores não suportaram ver um negro no comando.
Uma tarde, outros supervisores passaram horas o humilhando, dizendo, entre outras coisas, que deveria trabalhar como pedreiro, “porque aquele era seu lugar”. Junior não aguentou e os atacou com socos. Após a briga, foi despedido.
Os clientes também agem com discriminação, diz Desinord. Ele conta que um colega da OSHEC, que não quis ser identificado, trabalhava como instalador de TV e frequentemente era proibido de entrar em casas – em sua maioria em bairros de classe alta.
Fundada em março do ano passado, a OSHEC possui pouco mais de 300 associados, número que se mantém estável devido à grande quantidade de novos compatriotas que chegam mensalmente, seja substituindo os que deixam o Chile não conseguir lidar com as dificuldades ou por não ter podido conseguir um visto de trabalho.
Para estar legalmente em terras chilenas, o imigrante precisa apresentar um contrato de trabalho já assinado. No entanto, as empresas exigem o mesmo visto para poder contratar. “Em Quilicura é muito mais fácil, porque lá existe um parque industrial e as empresas da cidade estão mais abertas a aceitar haitianos e a conceder contratos sem visto”, explica Desinord. Ele tem visto definitivo de permanência, concedido por uma anistia decretada pelo governo de Michelle Bachelet em fevereiro de 2010, que beneficiou também os recém-chegados refugiados do terremoto na ilha.
Mito do homem negro
Em frente ao La Belle Etoile, restaurante de comida haitiana de Youry Fillien, fica a mercearia da senhora Rosa Contreras, onde o movimento da clientela feminina curiosamente aumenta nos horários de refeições. O “fenômeno” não era comum há três anos, quando o vizinho caribenho ainda não havia se instalado. A comerciante brinca ao detalhar o perfil dessas clientes: “são moças jovens, mas não necessariamente solteiras”.
O fetiche das mulheres de Quilicura com os novos habitantes da cidade não é um tema menor, já que tem sido uma das principais causas de rancores dos homens chilenos contra os haitianos fora do ambiente de trabalho. Contreras diz ter uma vizinha e outras amigas que já se relacionaram com haitianos e comenta, constrangida, que “em parte é pela coisa de saber se as proporções deles são aquilo que a gente imagina, mas não é só isso, as garotas também se atraem porque eles são mais desinibidos e menos inseguros que os chilenos”.
Porém, os homens haitianos não celebram tanto a curiosidade das chilenas. Segundo eles, o interesse é mais sexual que sentimental. “É fácil encontrar mulheres interessadas em realizar essa fantasia de transar com um negro, mas são poucas as dispostas a começar uma relação mais duradoura”, reclama Desinord, para quem o racismo da sociedade é um dos elementos que explicam porque é tão difícil existir namoros entre haitianos e chilenos. “Conheço amigos cujas garotas estavam realmente apaixonadas, mas não quiseram namoro por temer como a sociedade reagiria.”
Com as haitianas a situação é inversa. A maioria se relaciona com compatriotas e as exceções são casos com colombianos ou equatorianos, sempre negros. É raro encontrar uma haitiana no Chile namorando um branco. Também vale destacar que boa parte delas chegou ao país seguindo o rastro do marido ou namorado.
Sude-Jenny Uelance, que trabalha como secretária na Embaixada do Haiti, diz que a mesma curiosidade sexual não acontece com chilenos. “Com alguns homens mais velhos sim, mas muito menos que com as mulheres, cuja atração independe da idade. O chileno mais jovem não sente atração pelas mulheres negras”, afirma.
A fantasia feminina também gerou o primeiro caso de sucesso midiático haitiano no Chile. Em 2006, quando a febre do reggaeton (ritmo caribenho que se assemelha a uma mescla entre salsa e rap) fez as rádios chilenas abrirem as portas para grupos santiaguenses, um dos que melhor aproveitou a oportunidade foram os Reggaeton Boys, banda formada pelos haitianos Gyvens Laguerre, Pierre Desarmes e David Versaille, três imigrantes que viviam no país desde os anos 1990.
O sucesso entre o público feminino fez dos Reggaeton Boys um dos grupos mais importantes do Chile. Laguerre chegou em 1996 para estudar engenharia civil. Aos 36 anos, o cantor afirma que o Chile o conquistou por completo, tanto que recentemente terminou os trâmites da naturalização. “Desde os tempos da banda eu já pensava em adotar o país como minha pátria”, conta.
Além de Laguerre e dos Reggaeton Boys, outro caso reconhecido de sucesso é o de um chileno de pai haitiano e mãe mapuche. Trata-se de Jean Beausejour, jogador de futebol de 28 anos, que atualmente joga no Wigan Athletic, da Inglaterra – também teve rápida passagem pelo Grêmio de Porto Alegre, em 2005.
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Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/27494/apos+fugir+da+pobreza+milhares+de+haitianos+enfrentam+discriminacao+no+chile.shtml