Limpeza étnica em Israel

Autoridades israelenses reconhecem processo de esterilização de judias etíopes. Na foto, mãe e filha judias de origem etíope passam por entrevista no aeroporto israelense Ben Gurion, perto de Tel Aviv

Baby Siqueira Abrão, correspondente no Oriente Médio

O reconhecimento, por parte das autoridades israelenses, da esterilização das mulheres etíopes que professam a religião judaica – e que migram para Israel usando a “lei do retorno” (allyah), segundo a qual todo judeu do mundo pode “voltar” a Israel, mesmo que jamais tenha posto os pés lá – foi manchete em quase toda a mídia internacional, corporativa e independente. A questão levantou debates intensos em círculos feministas, de direitos humanos, dos direitos da população negra e na sociedade israelense. Uma leitura atenta das cartas dos leitores publicadas na mídia de Israel mostra uma maioria perplexa e crítica, mas houve também quem defendesse a esterilização, e não foram poucos – espelho de uma sociedade política, econômica, social, religiosa e culturalmente bastante diversificada. E dividida.

Mas com um novo Parlamento tomando posse e discussões em torno do futuro primeiro-ministro – Benjamin Netanyhau deve ser eleito para seu segundo mandato consecutivo, e o terceiro não consecutivo –, além do tema recorrente da “ameaça” representada pelo Irã atômico e da “necessidade” de impedir que os iranianos fabriquem bombas nucleares, acabaram pondo um ponto final no debate sobre a esterilização. Mas isso não significa esquecê-lo. O fato levantou questões importantes sobre o tratamento dispensado a imigrantes pobres e negros – e em particular às mulheres desse grupo. O debate precisa ser retomado pelas sociedades israelense e internacional para evitar que práticas assim, que violam direitos humanos básicos, voltem a ocorrer.

Primeiro alerta

 Na última década, a taxa de natalidade entre as mulheres etíopes de Israel teve uma queda de 50%. Há mais de cinco anos a hipótese da esterilização veio à tona, em consequência dos relatos das etíopes. Pequena parte da mídia israelense noticiou o fato, mas as autoridades de Israel sempre o negaram. Foi o trabalho da pesquisadora Sabba Reuven, levado ao ar pela jornalista Gal Gabay no programa Vacuum, da TV Educativa de Israel, que escancarou o fato, no início de dezembro de 2012.

As entrevistadas foram claras: são obrigadas a tomar, a cada três meses, as injeções de Depo-Provera, anticoncepcional cujo efeito é de longo prazo. Vacuum chegou a acompanhar uma delas ao posto de saúde – a filmagem, feita sem o conhecimento dos funcionários, tem baixa qualidade e está nublada para evitar o reconhecimento das pessoas envolvidas, mas ainda assim registra a prática.

O problema maior é que a verdade jamais foi dita a essas mulheres. A esterilização, segundo os relatos delas, começa na Etiópia, nos “campos de trânsito”, nome dos locais para onde são levados os judeus africanos que querem emigrar para Israel. “Entre 1980 e 1990 milhares de judeus etíopes passaram meses nesses campos, na Etiópia e no Sudão”, escreveu Efrat Yardai, porta-voz da Associação Israelense de Judeus Etíopes, em artigo para o jornal Haaretz. “Centenas morreram apenas porque o país que supostamente devia ser um refúgio seguro para os judeus decidiu que ainda não era a hora certa, ou que eles não poderiam ser absorvidos ao mesmo tempo, ou que não eram judeus o bastante… Quem já tinha ouvido falar de judeus negros?”, ela provoca.

Vida controlada

Para Efrat, as injeções de Depo-Provera são parte da atitude do governo israelense em relação aos imigrantes africanos. Hoje em dia, nos campos de trânsito, os futuros imigrantes são obrigados a enfrentar “uma desorganização burocrática terrível, uma carga que lhes é imposta para que provem que estão aptos a viver em Israel”. Ao chegar ao novo país, de acordo com Efrat, eles passam a receber “tratamento” em centros de assimilação. As crianças são enviadas a escolas religiosas e incluídas num programa de educação “especial”, enquanto os pais “permanecem em guetos e as mulheres continuam a receber as injeções. [As autoridades] dizem que não temos escolha. As políticas repressivas, racistas e paternalistas prosseguem – políticas que supostamente seriam no melhor interesse dos imigrantes, que não sabem o que é melhor para eles”, ironiza ela.

Efrat vai além, afirmando que esse controle completo sobre a vida dos imigrantes é feito apenas em relação aos etíopes e impede que eles se adaptem a Israel. “A desculpa de que eles precisam estar preparados para viver num país moderno levam-nos a um processo de lavagem cerebral que os torna dependentes das instituições estatais de assimilação”, denuncia a porta-voz.

As entrevistadas de Gal Gabay sustentam as denúncias de Efrat Yardai. “Em Adis Abeba [Etiópia] eles marcaram uma reunião conosco (…) Disseram que, se continuássemos tendo muitos filhos, não conseguiríamos emprego em Israel. (…) Disseram que as injeções seriam dadas para evitar esse sofrimento, e que a cada três meses tínhamos de tomá-las”, contou uma imigrante. “E vocês aceitaram tomá-las?”, perguntou a jornalista. “Não. Nós não queríamos tomar. Recusamos. Mas eles disseram que não tínhamos escolha.”

Contracepção forçada

Nenhuma das etíopes sabia qual era a substância injetada em seus corpos. Ninguém as avisou de que o Depo-Provera é um anticoncepcional aplicado apenas em último caso, como na esterilização de mulheres aprisionadas ou que não têm controle sobre as próprias ações. Tampouco lhes contaram que o Depo-Provera tem um histórico nada recomendável. Entre 1967 e 1978 a substância foi injetada em 13 mil mulheres (metade negras) da Geórgia, Estados Unidos, que também não sabiam que eram cobaias. Muitas adoeceram e algumas acabaram morrendo durante o experimento, de acordo com uma pesquisa realizada em 2009 pela Isha L’Isha, organização feminista sediada em Haifa, Israel. A mesma pesquisa apontou que 60% das injeções de Depo-Provera, em Israel, são destinadas às etíopes. O segundo grupo mais visado é o de mulheres sob várias formas de custódia. Os efeitos colaterais variam, mas o mais comum é a osteoporose, que fragiliza os ossos e expõe as mulheres ao risco de quebrá-los com frequência.

Coordenadora do projeto Mulheres e Tecnologias Médicas da Isha, Hedva Eyal afirmou que o documento foi encarado com desinteresse pelas autoridades do país e que muitos “batiam a porta na cara” das integrantes da organização. “É estarrecedor constatar como os testemunhos das mulheres são rejeitados, em especial os das mulheres pobres e negras”, desabafa Hedva. As autoridades não levam em contam que “as decisões sobre a saúde e a fertilidade das mulheres podem e devem ser tomadas apenas por elas”, que para isso precisam ter acesso pleno a todas as informações importantes sobre o assunto. “Mas não foi esse o caso, ao que parece”, afirma ela.

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Enviada por Isabela Pacola para Combate ao Racismo Ambiental.

http://www.brasildefato.com.br/node/12072

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