A Borduna que virou jornal, por José Ribamar Bessa Freire

Os índios Satere-Mawé guardam, com carinho, uma borduna feita de pau-ferro, denominada Porantim. Ela tem a forma de um remo, onde estão desenhadas figuras, que contam as narrativas e os mitos de origem. É, portanto, uma espécie de ‘livro’. “É a nossa Bíblia. No Porantim está escrito como se formou o mundo, o guaraná e a mandioca”- explica o tuxaua Emilio.

Os velhos da aldeia são capazes de decifrar os desenhos que contam, entre outras, uma história ocorrida em tempos remotos. Eram dois irmãos. O mais velho, Anian’hup wató (o Mal), armado com o Porantim, vivia perseguindo o caçula, Anumar’hi (o Bem) para matá-lo. Depois de muitas peripécias, o Bem consegue tomar a borduna do seu irmãozinho malvado, rachando a cabeça dele com uma cacetada. Por isso, denominamos com esse nome – Porantim – um jornal mensal alternativo, criado em Manaus para divulgar notícias sobre o mundo indígena.

O lançamento oficial foi no 1º de maio de 1978, na livraria do nosso poeta Dori  Carvalho – A Maíra – que na época era um ponto de encontro dos rebeldes da cidade. O jornal tinha três folhas mimeografadas, frente e verso, com um desenho do Porantim feito pelo músico Paulinho Kokai, a partir de foto do Nunes Pereira. Apresentava um requinte adicional: uma espécie de Caderno B, na realidade uma folha de tamanho ofício, dobrada ao meio, contendo artigo sobre educação bilíngüe, escrito por uma lingüista peruana (aliás, muito bonita), que era professora da UFAM.

Nesse mesmo dia, os membros do comitê editorial – Paulo Suess, Renato Athias, Ademir Ramos e esse colunista – se reuniram na ‘sala de redação’ – a cozinha da residência do último – para avaliar o jornal. A satisfação era, sem dúvida, maior do que a de Samuel Wainer quando folheou o primeiro número do Última Hora.

Um panfleto

O jornal, editado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Regional) pretendia atingir o público urbano de Manaus. Queria, inicialmente, ser um espelho, onde os manauaras pudessem observar não só os povos indígenas, mas a sua própria imagem. Logo depois, começou a circular nas aldeias indígenas do Amazonas, entre missionários, agentes de pastoral e índios alfabetizados em português.

De repente, começou a chegar à redação uma quantidade expressiva de denúncias: invasões de terras, massacres, trabalho escravo… Para acolhê-las, o Porantim, já no seu terceiro número, apresentava 18 páginas, sempre mimeografadas e em papel ofício. E ganhava um visual novo: títulos compostos com letras D.K.Dry e, através do stencil eletrônico, fotos pirateadas de alguns jornais.

A estrutura do CIMI nos forneceu uma vasta rede de correspondentes, espalhados pelas aldeias indígenas, que abasteciam o jornal com notas redigidas até em papel de embrulho, nas quais freqüentemente a informação mais importante vinha no final. O trabalho da redação era, nesses casos, ‘cozinhar’ o material recebido, complementando a apuração dos dados e dando-lhe um tratamento jornalístico adequado.

Foi exatamente o que fizemos com a notícia sobre a morte de mais de cem índios Yanomami do rio Maiá, vítimados pela malária e tuberculose. O terceiro número, com uma tiragem de 1.500 exemplares, estampou manchete na primeira página: “MAIS DE CEM INDIOS MORTOS NO RIO MAIÁ (A IMPRENSA CALOU)”. A matéria, que havia recebido um tratamento criterioso e profissional (apesar de carregada de indignação) mexeu com os brios da grande imprensa.

No dia seguinte, todos os jornais brasileiros deram a notícia, citando o Porantim, que foi chamado de ‘confrade’ pelo Estadão.  A notícia perturbou a Funai. O general Ismarth, seu presidente, desmentiu, correndinho. O Porantim, também correndinho, confirmou com matéria apresentada no melhor estilo global. A notícia era aberta assim, pomposamente: “São Gabriel (do nosso correspondente). O Jornal Nacional da TV Globo tinha o Sílio Bocanera, em Londres; nós, em compensação, éramos o único jornal do mundo a ter correspondente em São Gabriel da Cachoeira, no alto Rio Negro.

O general nos desmentiu várias vezes, mas sempre foi obrigado a se retratar. No número 10 (agosto 1979) o nosso valente jornal mensal noticiava a morte de 85 índios Deni, no rio Juruá. A Funai disse que era mentira. O Porantim, então, publicou a lista com os nomes e as idades dos 85 índios mortos. A Funai colocou o rabo entre as pernas.

Um jornal

Um ano depois de fundado, o CIMI decidiu bancar o jornal com impressão em off-set, tamanho tablóide, 16 páginas, tentando uma abordagem da questão indígena em forma mais ampla. O Porantim ganhou maior credibilidade e aumentou sua tiragem para cinco mil exemplares. A rede de correspondentes e a distribuição se espalharam por todo o Brasil. Passou a ser vendido em algumas bancas das cidades do Norte, dialogando com outros periódicos alternativos como o desassombrado Varadouro, editado no Acre.

O perfil do leitor também estava mudando: a liderança indígena começou a lê-lo. Ficamos emocionados quando um Tukano, em uma assembléia indígena realizada em Manaus, anunciou que a primeira vez que ouvira falar do famigerado projeto de ‘emancipação’ do ministro Rangel Reis foi através das páginas do Porantim, lido em sua aldeia no alto Rio Negro.

Professores e alunos do Curso de Jornalismo da UFAM, entre os quais Mário Adolfo, o chargista mais talentoso do pedaço, bem como antropólogos, lingüistas, historiadores, médicos, missionários e índios trouxeram sua colaboração. O Porantim deixava de ser apenas um jornal de denúncias, para se tornar um veículo informativo e interpretativo, e tudo isso sem perder o seu caráter docemente panfletário.

Por causa disso, um bispo da Amazônia, acostumado com a linguagem de boletim paroquial, me puxou a orelha. Ele não gostou da nota que escrevi intitulada ‘Teixeirão Bobalhão’, em resposta ao então governador de Rondônia, coronel Jorge Teixeira, que havia declarado à imprensa de Manaus: “Os índios são todos uns bobalhões parasitas. Vou empurrá-los para a outra margem do rio”. Acho que fomos até comedidos, porque não mencionamos a genitora do coronel.

A memória

“Está tudo aqui?” – perguntou o papa João Paulo II ao tuxaua Terêncio, da nação Makuxi, quando dele recebeu, em mãos, uma coleção encadernada do Porantim, durante sua visita a Manaus, em julho de 1980.

Sim, estava tudo ali: “um jornal em defesa da causa indígena”, apaixonado, nervoso, entusiasmado, contraditório, demasiado panfletário para o gosto de alguns, feito artesanalmente ‘no peito e na raça’, com trabalho voluntário e militante, subvertendo algumas noções de jornalismo e brigando corpo a corpo com as mentiras oficiais.

Esse era o jornal Porantim, que dois anos depois foi para Brasília, e agora, em novembro, comemora a edição do número 300. Um remo sagrado, uma borduna, que virou panfleto, que virou jornal e se tornou a memória viva dos últimos trinta anos de luta dos povos indígenas. Será que ainda falta muito para Anumar’hi tomar a borduna do seu irmãozinho Anian’hup Wató?
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