O choro das mães ecoa pelas aldeias Hup. É ensurdecedor. Os pais carregam suas filhas nos braços. O cemitério abre-se novamente. São mais duas crianças. Duas meninas que vimos sorrir, falar e andar pelas casas. Começavam a conhecer o mundo, os rios, os caminhos da mata. Começavam a brincar. Receberam seus nomes ancestrais escolhidos cuidadosamente por seus avós. Suas almas, recém chegadas do Lago de Leite, foram protegidas contra todas as doenças causadas pelas gentes-peixe, pelo Trovão, pelas gentes-cobra. Infelizmente, não resistiram às “doenças dos brancos”. A gripe e a diarreia, a falta de medicamentos e atendimento médico, a sempre “falta de combustível” e a discriminação étnica venceram mais uma vez. Todos se reúnem em torno dos pequenos corpos. Abrem a cova. E choram. Choram ao ver crescer o /Dö’däh höd/, o cemitério das crianças. Choram ao ver crescer sua tristeza e revolta. Jovino, Agente Indígena de Saúde (AIS) diz “não conseguimos segurar a vida”. Assim como os Hupd’äh, nós, médicos, enfermeiros, lideranças indígenas, pesquisadores, políticos não conseguimos segurar as vidas.
Fatigados de relatórios, cansados de documentos enviados às instâncias competentes, viemos a público denunciar a situação crônica vivenciada pelas populações indígenas no Alto Rio Negro, Amazonas, no que tange à assistência em saúde.
A evasão gradual das ações do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (DSEI-RN) desde 2008 desenha um quadro epidemiológico desolador entre os 23 povos que habitam o maior mosaico de terras indígenas do país. Sintomas clínicos como diarréias, facilmente tratáveis, transformam-se em enfermidades graves e levam dezenas de crianças menores de cinco anos a óbito. Baixo peso em poucas semanas vira desnutrição aguda. Constipações comuns na infância indígena tornam-se pneumonias e matam outras dezenas de crianças.
Com 25 Pólos-base, distribuídos entre as seis extensas calhas de rio da região Rio Negro, o DSEI-RN desassiste as comunidades indígenas sem a presença permanente das equipes de saúde em seus territórios de atuação.
Na calha do rio Tiquié, em 2008, quatro (04) crianças morreram de coqueluche na comunidade de Taracuá Igarapé. Em novembro de 2010, houve três (03) mortes de crianças Hupd’äh nessa mesma comunidade antes da chegada do resgate do DSEI. No mesmo período havia muitas crianças com gripe e diarreia numa comunidade localizada um pouco acima, Barreira Alta, sendo que um caso considerado gravíssimo era de pneumonia aguda, além do quadro associado de desnutrição. Resgate solicitado. Resgate não realizado. Em 2011, na Comunidade Hupd’äh de Fátima, uma criança de 2 anos de idade faleceu em consequência da diarreia, segundo o AIS local. Em janeiro de 2012 o AIS havia informado que desde julho de 2011 não havia visita da equipe de saúde em Fátima. Recentemente, em Taracuá Igarapé, em 16 de janeiro de 2013, recebemos a notícia de que mais duas crianças – de dois e um ano de idade – faleceram em decorrência de vômito e diarréia. Os Hupd’äh ainda informaram a existência de muitas crianças com virose.
De acordo com a informação de uma professora da etnia Hupd’äh, da comunidade de Taracuá Igarapé, em 2011 não houve visitas do DSEI à comunidade, exceto para cobertura vacinal. As crianças se encontravam gripadas e algumas com diarréia. Outro professor Hupd’äh da comunidade de Barreira Alta, também localizada na calha do rio Tiquié, informou que na comunidade havia vários casos de gripe e diarreia, principalmente nas crianças. Crianças menores de 05 anos com baixo peso pode indicar escassez sazonal de alimento, enfermidade localizada, mas óbito por desnutrição, como experienciam as comunidades do rio Tiquié, indica descaso, omissão, ausência de assistência e infraestrutura.
O DSEI Alto Rio Negro, responsável pelas ações de atenção básica aos povos indígenas nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, perece há mais de cinco anos com gestões desarticuladas aos propósitos da politica nacional de saúde indígena, equipes em saúde despreparadas para o trato intercultural, caos logístico para prestar um serviço com eficiência e um controle social invisibilizado pela práxis governamental.
Acreditamos que ações emergenciais com a intenção de resolução de surtos epidêmicos são importantes na atividade curativa, assim como elogiamos o empenho dos profissionais de saúde para cumprimento das campanhas de imunização anuais, todavia, lutamos por uma assistência continuada e permanente e não pontualizada. Assim como nas perspectivas médicas ameríndias, negamo-nos a uma atenção à saúde focalizada na doença, pretendemos prevenção e promoção à saúde.
Queremos uma atenção à saúde que leve ao extremo o que preconizam as políticas publicas, em respeito aos povos indígenas e a própria luta dos movimentos sociais em defesa do SUS.
Nos últimos anos, muitas denúncias foram feitas pelo movimento indígena à mídia, ao Ministério Público Federal, ao Ministério da Saúde, às organizações internacionais. É revoltante ver que mesmo assim, mesmo denunciando ao mundo, as crianças Hup, Yuhup, Tukano, Desano, Kotiria continuam a morrer. Continuamos incansavelmente a denunciar essa terrível situação até que as devidas providências sejam tomadas.
É inconcebível banalizar a morte de uma criança indígena por gripe ou doenças infecto-parasitárias. Considerar que apenas resgates e cobertura vacinal em áreas indígenas é prestar atenção básica em saúde é retroceder ao tempo das equipes volantes, é desconsiderar o empenho político e a dedicação profissional de milhares de pessoas, indígenas e não indígenas, que brigam por uma saúde pública qualificada no Brasil.
Nossa indignação não é personalista, é política. Nosso discurso não se resume às ausências de equipamentos, infraestrutura e insumos, mas à omissão política em relação à vida e bem estar dos povos indígenas. Não nos calaremos.
COLETIVO BUOPÉS – Mobilização em Defesa da Saúde Indígena
FEDERAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DO RIO NEGRO – FOIRN
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