A favela agora virou a alma do negócio

Unidades de Polícia Pacificadora garantem livre acesso do capital nas comunidades cariocas empobrecidas

Protesto de moradores da comunidade Santa Marta - Foto: Henrique Fornazin

Katarine Flor e Gláucia Marinho, do Rio de Janeiro (RJ)

A atual política de intervenção militar nas favelas cariocas, implementada por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), criou um novo cenário nas comunidades empobrecidas da cidade. A imposição do Estado policial e a entrada do capital comercial nesses espaços geram novas tensões para a favela, sendo que uma das principais é a especulação imobiliária. Os preços dos alugueis e o custo dos serviços e das mercadorias provocam a saída de muitos moradores antigos. É o que chamamos de “remoção branca”. Esse aumento geral do custo de morar na favela levam a uma expulsão dos moradores sem precisar de tratores ou de dar um tiro.

A intervenção militar é legitimada pelo discurso de guerra civil, poder paralelo e regiões sitiadas por traficantes e/ou milicianos. Esta propaganda, repetida ao longo dos últimos anos pelos Governos e pela mídia, se espalhou por toda a cidade e virou quase um consenso. No Rio de Janeiro, mais de 20% dos habitantes vivem em favelas. São cerca de 1,3 milhão pessoas em 763 comunidades, que movimentam R$ 13 bilhões por ano. Este valor supera o Produto Interno Bruto (PIB) de diversas capitais brasileiras como Florianópolis, Natal e Cuiabá.

“Com a instalação das UPPs nas favelas o capital pode se instalar nessas regiões com algum nível de segurança jurídica e patrimonial, que antes ele não gozava”. Esta é a opinião do professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rodrigo Castelo.

O mercado sobe o morro

E isso vem acontecendo massivamente desde a instalação das primeiras UPPs. O mercado está de olho no potencial de compra dos moradores destas localidades. “O poder econômico da favela é muito forte”, avalia Romualdo Ayres, diretor de Sustentabilidade na Associação Brasileira de Franchising. Todas as franquias brasileiras juntas faturarão, em 2012, quase R$ 14 bi. Enquanto isso, o PIB das favelas é de R$ 13 bi. “A disponibilidade de renda desse povo todo é quase a disponibilidade de renda de todas as franquias do Brasil. Tem toda uma alimentação econômica deixada pelo tráfico que precisa ser substituída”, afirma Ayres.

Histórias de empreendimentos bem sucedidos, mesmo antes da implementação das UPPs, animam ainda mais os investidores. É o caso do curso de idiomas Yes, na favela da Rocinha. A unidade instalada no morro tinha 750 alunos matriculados, bem acima da média das 550 matrículas registradas nas demais unidades da cidade. Esse tipo de investimento é muito seguro e tem um baixíssimo índice de inadimplência.

A entrada massiva das empresas nas favelas evidencia um interesse do capital por trás do discurso de segurança pública. “Esse processo que acontece nas comunidades populares aqui do Rio de Janeiro integra claramente os interesses do capital apoiado pelos interesses do Estado”, afirma Rodrigo Castelo. Ele lembra que até pouco tempo, as favelas eram tidas como um repositório de mão de obra barata para regiões centrais do Rio e, ao mesmo tempo, como “antros da criminalidade”.

Vista da cidade do alto da comunidade Santa Marta - Foto: Henrique Fornazin

O novo olhar do capital para as favelas

A mudança de posicionamento do mercado, apoiado pelo Estado, se dá a partir do momento em que as favelas passam a ser vistas como espaços muito lucrativos. “Daí vem a instalação das grandes cadeias de cinema, alimentação, de bancos e de financeiras”, diz Castelo. Segundo o professor, a entrada destas empresas pode gerar o aumento do emprego e renda nestas comunidades, entretanto pode, também, trazer o empobrecimento. “Vai gerar emprego e renda nas favelas. Não há como negar essa realidade, mas estes empregos e esta renda vão ser suficientes para cobrir o aumento das despesas que as pessoas que moram lá vão passar a ter?”, questiona.

O professor avalia que em um primeiro momento este movimento vai gerar riqueza, que poderá ser seguido do empobrecimento de muitos moradores. “Vai ocorrer, de fato, algo que já está acontecendo em algumas localidades: as pessoas não terão capacidade financeira de se manterem naquele espaço”, avalia.

Em novembro, a Prefeitura do Rio anunciou que vai encaminhar à Câmara um projeto de reforma do IPTU. Atualmente, moradores de áreas consideradas de risco são isentos da taxa. Apenas 40% dos imóveis residenciais cadastrados pagam o imposto. Com a mudança, esse percentual vai para 97%. E vai ter dinheiro para tudo isso?

Especulação imobiliária invade as favelas

De acordo com o Sindicato da Habitação do Rio (Secovi/RJ), o Rio de Janeiro ganhou, recentemente, pelo menos mais um componente inflacionário: a criação das UPPs instaladas pela Secretaria de Segurança Pública do Estado. De 2008 para cá, a Secretaria de Segurança Pública implantou 31 UPPs. Deste então, em algumas favelas e morros os preços dos imóveis foram valorizados em 100% ou mais.

Além do custo dos imóveis, a regularização dos serviços de luz e água, sem programas específicos para pessoas de baixa renda, eleva o custo da vida na favela. Ao morador que não puder pagar por estes serviços, restará a opção de vender o imóvel e se mudar para uma área da cidade distante e sem serviços púbicos adequados. É esta a chamada remoção branca. Sem usar a palavra remoção, o Estado estaria fomentado a saída dos antigos moradores de áreas hoje valorizadas. E então, a classe média vai ocupar aqueles morros com vista divina sobre a “cidade maravilhosa”.

As UPPs têm duas pernas: a militarização e a mercantilização nas favelas. Atualmente, o teleférico do Morro do Alemão recebe mais turistas do que o bondinho do Pão de Açúcar. Chegando a registrar em novembro de 2012 mais que o dobro das visitas recebidas pelo Pão de Açúcar, tradicional cartão postal do Brasil.

Imprensa comercial e governos juntos

Na implantação deste projeto, o governo do estado conta com uma valorosa aliada, a imprensa, que vem desempenhando uma importante função na reorganização espacial da favela. Segundo Castelo, se produz, hoje, no Brasil uma ideologia para justificar esse tipo de intervenção. Assim, “fica mais fácil o processo de aceitação, inclusive pelas populações que sofrerão os processos mais deletérios”. Romualdo Ayres completa: “há meses quando eu tive a informação de que a novela da Rede Globo iria retratar a realidade do complexo do Alemão, eu pensei: ‘aquilo lá vai bombar’”.

A discussão a ser feita pelo povo interessado é qual deve ser um projeto que sirva aos interesses do povo, dos trabalhadores da cidade e não das grandes empreiteiras e grupos de especuladores imobiliários. “Para isso os movimentos sociais precisam participar das discussões e se organizar para pressionar para que seus interesses sejam atendidos”, afirma Castelo.

http://www.brasildefato.com.br/node/11477

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