Israel Pereira Dias de Souza: “Desenvolvimento na fronteira trinacional amazônica é um maniqueísmo nocivo”

“Se bem olharmos, veremos que Estado e capital estão aliançados e movendo guerra contra os povos da Amazônia. Não podia ser diferente já que esta região é hoje, inquestionavelmente, uma fronteira para o capital cuja lógica é, a um só tempo, totalizante e totalitária”, declara o cientista político

Fonte e fotos: IHU Online

“São muitas e diversas as frações do capital atuantes na região, e outras tantas estão a caminho. E, para se apropriarem com mais liberdade dos bens naturais aí presentes, precisam expropriar as comunidades locais de seus direitos territoriais. Trata-se, assim, de ‘redesenhar’ jurídica, simbólica e fisicamente os territórios e atribuir a eles novos usos”. É assim que Israel Pereira Dias de Souza descreve a atual conjuntura da floresta amazônica, onde aumentam os projetos de infraestrutura financiados pelo Brasil e apoiados por países vizinhos, como Bolívia e Peru.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele esclarece quais são os interesses econômicos que envolvem a exploração de recursos naturais nas fronteiras, e ressalta o surgimento de dois processos: a territorialização e a desterritorialização na fronteira trinacional amazônica, envolvendo Peru, Brasil e Bolívia. “Obviamente isso afetará drasticamente a vida das pessoas que habitam essas áreas. Muitas destas pessoas não poderão permanecer onde estão. Serão expulsas, desterritorializadas”, lamenta.

Na avaliação do pesquisador, os Estados, ao estabelecerem acordos com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, estão “hipotecando” seus territórios. “Ante uma orientação claramente desenvolvimentista por parte dos governos brasileiro e boliviano, a preocupação com as questões ambientais ou assume um lugar marginal no programa de governo ou figura apenas nos discursos. É por coisas como estas que o desenvolvimento persiste na América Latina como uma ilusão a fascinante e facínora”, assinala.

Para Souza, os governos considerados de esquerda na América Latina são preocupantes e “maniqueístas”. Ele explica: “Refiro-me ao maniqueísmo com que são tratados os críticos e opositores em geral. Evo Morales chegou a chamar de ‘inimigos da pátria’ e ‘agentes a serviço da USAID’ aqueles que se opunham à estrada no Tipnis. No Brasil, não raro as críticas e denúncias que têm sido levantadas contra os governos petistas são tratadas como sendo ‘manobras da velha elite que há mais de 500 anos governa este país’ e da ‘mídia golpista’. Quem disse que as velhas elites foram desbancadas? E não é a elas que este governo vem ciosamente servindo?”.

Israel de Souza é graduado em Ciência Política e mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre – UFAC, e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental – NUPESDAO. Atualmente é professor universitário na União Educacional do Norte – UNINORTE. Confira a entrevista.

Quantos haitianos ainda continuam chegando ao Acre mensalmente?

Israel Pereira Dias de Souza – Não há dados oficiais sobre isso. Em conversa, um deles dizia que há dias em que chegam 10 e até 15 haitianos. Enquanto isso, saem apenas cinco. O processo para tirar os documentos é inexplicavelmente lento. E, por essa razão, a tendência é que o número deles apenas cresça.

Como o governo do Acre tem lidado com a questão dos imigrantes desde o início do ano? Por quais razões a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Acre tomou a medida de cortar o fornecimento de comida, energia e água para os imigrantes?

Israel Pereira Dias de Souza – Não há, por parte do governo acriano, uma preocupação séria no que diz respeito à questão social que é, como sabemos, indissociável dos direitos humanos. Com efeito, esta vem sendo tratada, basicamente, a partir dos programas assistencialistas do governo federal.

De acordo com o Censo Demográfico de 2010, Elder Andrade de Paula ressalta que 66,2% dos domicílios acreanos recebem até um salário mínimo mensal. O autor destaca ainda que o estado do Acre, segundo pesquisa do IPEA, apresentou a maior desigualdade da região amazônica e a segunda maior do Brasil.

Quase metade da população (algo em torno de 60 mil famílias) recebe o benefício Bolsa Família como uma maneira de aliviar a pobreza. Destes empobrecidos, 133.410 compõem a população em extrema pobreza no estado. Não obstante, entra ano e sai ano e o governo local fala apenas em ampliar o número dos inscritos nos programas do governo federal.

Ora, se tal é a preocupação dispensada aos acreanos, muito menor é a dispensada aos imigrantes que, desde o início, são encarados como um problema que deve ser atribuído a outros e/ou ser ocultado. Deixar de pagar o aluguel e a conta de energia da casa em que estão morando os haitianos é, portanto, a expressão mais cabal da preocupação do governo local com a sorte destes homens e mulheres.

Como eles estão vivendo?

Israel Pereira Dias de Souza – A situação em que se encontram é degradante, subumana. No momento, a dona da casa em que residem ameaça lhes deixar sem teto. São mais de 360 numa casa com apenas um banheiro. As condições de higiene são precárias – quase inexistentes. Não há água potável ou privacidade. Alguns deles estão cozinhando nos quartos – quando há o que cozinhar.

É comum uns tantos passarem fome ali, ficando mais de um dia sem comer. De vez em quando se viram comendo manga, fruta da estação. Forçados pelas condições, alguns estão usando de criatividade e coragem para dormir. Sem quartos para todos, uns têm feito sua “cama” do lado de fora da casa. Como se pode ver nas fotos, trata-se de uma pequena “cobertura”, pouco menos de um metro de altura, feita com faixas, que cobre o chão coberto de papelão. Mas se vier a chover e no Acre estamos em período de chuva…

Um dos haitianos dizia que o que querem ali não é tanto a caridade dos outros ou do governo. Eles anseiam mesmo é pelo CPF e pela Carteira de Trabalho. Dizia que muitos têm parentes aqui no Brasil. Que se tirarem esses documentos poderão ir para a casa de seus parentes e procurar emprego.

Sem exagerar, pode-se dizer que no Acre os haitianos não foram acolhidos senão pelo abandono. Aviltados em seus direitos, hoje eles são tratados como se fossem gente. Foi essa degradante situação que levou o Centro de Referência em Direitos Humanos na Fronteira Trinacional – Brasil, Bolívia e Peru – a denunciar o caso ao Ministério Público Federal.

O senhor fala em territorialização e desterritorialização na fronteira trinacional amazônica, envolvendo Peru, Brasil e Bolívia. Como estão acontecendo esses processos e quais as evidências? Ainda nesse sentido, quais as disputas e reconfigurações territoriais visíveis?

Israel Pereira Dias de Souza – São muitas e diversas as frações do capital atuantes na região, e outras tantas estão a caminho. E, para se apropriarem com mais liberdade dos bens naturais aí presentes, precisam expropriar as comunidades locais de seus direitos territoriais. Trata-se, assim, de “redesenhar” jurídica, simbólica e fisicamente os territórios e atribuir a eles novos usos.

Do lado peruano, além da “mineria”, é forte a exploração de madeira e petróleo. Os mapas a seguir mostram como no Peru a exploração de petróleo e madeira reconfigura, em larga escala, o território. Como se vê, parte considerável deste território já está reservada para estas atividades.

Obviamente isso afetará drasticamente a vida das pessoas que habitam essas áreas. Muitas destas pessoas não poderão permanecer onde estão. Serão expulsas, desterritorializadas.

Do lado brasileiro, a realidade não é muito diferente. Argumenta-se positivamente por estas paragens que as modalidades de regularização fundiária, como as Terras Indígenas e as Unidades de Conservação Integral assim como as de Uso Sustentável, somam quase metade do território acreano (ver mapas). Em termos ambientais, isso seria um êxito digno de apreço.

Configuração territorial do Acre; Fonte: Base de dados geográficos do ZEE/AC, Fase II, 2006.

Essa reconfiguração territorial, justificada na ideologia do “desenvolvimento sustentável”, tem como marco o Contrato de Empréstimo BID 1399/OC-BR para implantação doPrograma de Desenvolvimento Sustentável do Acre – PDSA, firmado entre o governo acreano e o referido banco. O valor foi de 108 milhões de dólares, dos quais 64,8 milhões do BID e 43,2 milhões de contrapartida local.

Derivaram-se daí “normas de protección de la selva lindante con la carretera por medio de medidas entre las que se cuenta la creación de parques estatales” e a implementação de “un conjunto de proyectos para conservar y administrar los recursos naturales, desarrollar industrias que aporten valor a estos recursos, y pavimentar un segmento de 70 kilómetros de la BR-364” (La Amazonía del mañana).

Mercadificação e privatização da floresta

A aprovação da Lei 1.426/2001, que instituiu o Sistema Estadual de Áreas Naturais Protegidas e a Concessão Florestal no estado, logo mostrou que a mercadificação e a privatização da floresta seriam a tônica do Programa. O próprio governo reconhece, em tom ufanista, que aproximadamente “seis milhões de hectares (de floresta) apresentam aptidão e acessibilidade para a produção florestal sustentada e contínua” (Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre), isto é, para a exploração madeireira.

Em certo sentido, é lícito dizer que, pelos acordos com o BID, o governo pôs em marcha um processo em que o território do estado é, crescentemente, hipotecado (“Depois de mim, o dilúvio”: o “círculo vicioso da dívida” pública no Acre). A contrapartida local, portanto, envolve bem mais que alguns milhões. O mapa acima mostra as dimensões disso, com as áreas verdes (claro e escuro) destinadas ao “uso sustentável” e à “conservação permanente”.

Aprofundando este processo, no final de 2008, o Estado do Acre, através do Programa Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Acre – ProAcre, firmou contrato de 150 milhões com o Banco Mundial. 120 milhões do banco e 30 milhões de contrapartida local.

Com previsão de duração de seis anos, o programa referido tem como foco de ação as margens das rodovias federais 364 e 317 (tratadas, agora, como Zonas Especiais de Desenvolvimento – ZEDs) e se propõe melhorar a qualidade de vida das comunidades mais distantes dos centros urbanos, levando-lhes saúde, educação e produção – coisa necessária louvável. Mas não casualmente o programa pretende também promover o “ordenamento ou adequação para o desenvolvimento sustentável, especialmente dentro de Unidades de Conservação, Terras Indígenas e projetos de assentamento” – coisa discutível e perigosa.

Os mapas a seguir tornam ainda mais claro esse “comprometimento crescente” de nosso território. Além disso, ambos os mapas mostram como as “áreas de manejo florestal” e as “Zonas Especiais de Desenvolvimento” seguem, quase sem surpresas, os traçados das rodovias 364 e 317.

Distribuição Espacial de Investimentos 2007/2010

Zonas Especiais de Desenvolvimento – ZEDs

Desenvolvimento

O resultado disso pode ser visto no crescimento exponencial da exploração madeireira. Como bem observa o professor Elder Andrade de Paula em um dos textos que compõem o Dossiê Acre, documento que traz ampla e crítica reflexão sobre a realidade do “desenvolvimento sustentável” no estado, tal exploração passou de 300 mil m3/ano para mais de um milhão m3/ano. Como não podia deixar de ser, o desmatamento também aumentou. Passou de 5.300 Km2, entre 1988-1998, para 7.301,2 Km2 na década seguinte.

Outrossim, a pecuária extensiva de corte triplicou nos últimos anos. Ainda segundo o professor Elder Andrade de Paula, o rebanho bovino passou de 800 mil cabeças para três milhões.

Claro que comprometer nessa magnitude o território, redesenhando-o e redefinindo seu uso, tem grandes implicações para os homens e mulheres que aí habitam e dele tiram seu sustento. Antes e de maneira mais direta que os que estão na cidade, eles sentiram os efeitos perversos dessas políticas, sofrendo pelo abandono ou pela repressão. Muitos são os que reclamam da falta de incentivo técnico e financeiro para a pequena produção, da falta de ramais por onde escoarem o que produzem. Por força disso, embora tenha muita terra e gente para produzir, hoje o Acre se alimenta basicamente do que vem de outros estados.

Outros fatores têm acentuado ainda mais o problema. Resultando em desmatamento, a exploração madeireira tem levado alguns igarapés a secarem, diminuindo a oferta de peixes – algo fundamental na alimentação dessa população –, assim como tem levado a caça a fugir para áreas onde a movimentação e o barulho sejam menores.

Concorre para o mesmo sentido a atuação de alguns servidores do Ibama e do ICMBIO. Em uma audiência pública realizada 31-05-2012, em Rio Branco, moradores das Resex (Reservas Extrativistas) relatavam abusos de autoridade – sobretudo da parte do ICMBIO – a representantes da Secretaria dos Direitos Humanos.

Bolsa verde

Além das intimidações, constrangimentos e humilhações, os moradores das Resex reclamavam das multas impagáveis que estão sendo aplicadas. Também presente na audiência pública, uma liderança indígena dizia ter recebido uma multa de um agente do ICMBIO, cujo valor ficava na casa das dezenas de milhares de reais. Por essas razões, muitos têm visto no “Bolsa Verde” uma forma de aliviar suas dificuldades. Todavia, até para isso a mentira e a coerção têm cumprido um papel fundamental.

Lançado em 2011, o Bolsa Verde é um programa assistencialista do governo federal, fazendo parte do Programa Brasil Sem Miséria, da Região Norte. Aceitando participar deste programa, as famílias (residentes em florestas nacionais, reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável, em projetos de assentamento florestal, de desenvolvimento sustentável e de assentamentos extrativistas do Incra) passariam a receber 100 (cem) reais mensais.

Em conversa com pequenos produtores dos municípios de Brasileia, Sena Madureira e Capixaba, percebemos que pessoas estão sendo induzidas a assinar o termo de compromisso para participar do programa sem saber ao certo o que estão fazendo.

Os agentes do governo dizem a uns que eles “têm que assinar”, dando a entender que participar do programa é uma obrigação. A outros dizem que é “complementação do ‘Bolsa Família’”. Nada dizem sobre o fato de que assinar o termo de compromisso restringirá, em escala colossal, seus já restringidos direitos de uso de seus territórios.

Em suma, o acordo do governo com os bancos levou ao comprometimento do território. Este comprometimento, por sua vez, tem resultado na restrição dos direitos de muitos homens e mulheres dos campos e florestas. Por conseguinte, eles têm passado privações. Na busca de aliviá-las – tocados pela mentira e pela coação –, têm aderido ao Bolsa Verde cujo valor é irrisório. Por outro lado, o governo acreano vem impedindo por todos os meios que as terras indígenas sejam demarcadas. Em defesa de suas terras, ainda este ano, os indígenas ocuparam a Funai/AC por mais de nove meses.

Ainda assim, o governo local segue com as propostas de Redd, pagamento por serviços ambientais e exploração de petróleo, como se estivesse aí a cura para os males de toda a humanidade. Desse modo, mostrando a complementaridade entre “capitalismo verde” e “capitalismo marrom”, ele não esconde de ninguém seu orgulho de estar na vanguarda da mercantilização da natureza e da vida.

Conjuntura boliviana

Do lado boliviano, a história parece mais incerta. A vitória de Evo Morales e de seus partidários não resultou naquilo que os grupos subalternos esperavam. Em vez de combater as hidrelétricas construídas do lado brasileiro e que afetarão a Bolívia, o governo boliviano também já fala em construir hidrelétricas em seu país. As críticas ao governo Morales estão focadas em sua relação servil para com o Brasil e as multinacionais. Além do que ressaltam que o governo desconsidera a realidade amazônica.

A tensão tende a se acentuar. Já em 2009, em entrevista ao Le Monde Diplomatique, da Bolívia, o vice-presidente Linera dizia: “Certamente haverá uma tensão lógica social-estatal de um uso sustentável da natureza e da necessidade social-estatal de gerar excedentes (lucros) econômicos a cargo do Estado”. Dizia ele ser uma tensão “entre democratização do poder e monopólio de decisões (‘movimiento social/Estado’)”. Seria “preciso viver com essa contradição vital da história. Não há receita, é obrigatório tirar gás e petróleo do norte amazônico de La Paz”.

Agora, por ocasião do último Fórum Panamazônico, conversei com algumas lideranças bolivianas. Elas se mostravam insatisfeitas com o governo. Pareceram-me dispostas e capazes de resistir.

Como descreve a governança ambiental na Amazônia Sul-Ocidental?

Israel Pereira Dias de Souza – Em anos de forte hegemonia neoliberal, o Banco Mundial foi exitoso em impor ou em convencer os governos de que, para que as políticas tivessem alguma legitimidade, era necessária a participação da “sociedade civil”. A isso o banco chama de “empoderamento da sociedade” e é a base da “governança”.

Sob este prisma, sociedade civil é considerada sinônimo de povo. Então, em todo o processo de que participasse a “sociedade civil” era como se o próprio povo estivesse participando. Por seu turno, o processo ganhava toda a legitimidade que a participação e o controle populares são capazes de conferir.

Governança ambiental

Convém dizer que não existe apenas uma maneira de entender “governança ambiental”. Mas, em geral, entende-se que ela corresponde àqueles “arranjos” em que a própria população, “empoderada”, é chamada a participar das decisões sobre as políticas que dizem respeito às questões ambientais. Em razão desta participação, tais arranjos seriam efetivamente verdes (por tratarem de questões ambientais) e democráticos (por envolverem a “participação popular”).

Analiso esses arranjos à luz do conceito de Estado ampliado (sociedade política + sociedade civil) de Gramsci. Com isso foi possível fazer uma leitura crítica da participação da sociedade civil. Foi possível entender que ela não é necessariamente um espaço/sujeito separado e independente do Estado (sociedade política). Foi possível entender que a sociedade civil está longe de ser algo homogêneo e harmônico e que, como as demais instâncias sociais, ela é marcada pelos conflitos de classes, grupos e nações.

A fim de entender o funcionamento dos setores da sociedade civil que atuam em torno da temática ambiental, analisei uma experiência na trifronteira: a Iniciativa MAP (ver Ambientalismo, Territorialização/Desterritorialização naFronteira Trinacional Amazônica- Peru, Brasil e Bolívia) e Iniciativa para a Conservação da Bacia Amazônica – ICBA: “Cooperação Internacional” e/ou “Ecoimperialismo”?). Trata-se de uma rede formada em 1999 e coordenada por pesquisadores de instituições internacionais e nacionais diversas e ONGs atuantes na Amazônia sul-ocidental. Mais precisamente ela atua na fronteira trinacional formada pelos departamentos de Madre de Dios/Peru,Pando/Bolívia e pelo estado do Acre/Brasil (donde então a sigla MAP).

A partir de fóruns mais ou menos anuais, os representantes daquela rede procuravam envolver os mais diversos sujeitos dos três países (dos povos originários aos madeireiros) numa proposta de desenvolvimento sustentável para a região, defendendo que a preocupação com o meio ambiente não pode ser “asfixiada” pelas fronteiras nacionais. O que havia de realmente substancial nos fóruns era previamente acertado pela cúpula da rede e seus financiadores. O mais, apenas aparência.

Reprodução do Banco Mundial

A atuação ordinária da rede, supostamente isenta dos interesses nacionais e de classes, materializava e reproduzia as contradições de classes e as assimetrias nas relações de poder Norte/Sul também em escala global.

O que ela fazia e ainda faz na região é basicamente reproduzir as visões do Banco Mundial, da USAID (Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional) e da Universidade da Flórida, formando a base consensual para que projetos políticos e econômicos forâneos se efetivassem na região. Era clara a tentativa de anular ou reduzir o protagonismo dos sujeitos sociais constituídos nas lutas de resistência, colocando-os sob a tutela de agências e organizações não governamentais que, via de regra, estão comprometidas com a espoliação capitalista.

Então, a Iniciativa MAP atua na região como uma espécie de arranjo que reproduz interesses forâneos e procura envolver os sujeitos locais a fim de evitar resistências e angariar apoiadores, bem como procura se legitimar através da participação popular por ela promovida. Em razão disso é que digo que “governança ambiental” expressa uma espécie de carnaval de mau gosto, em que o velho colonialismo busca vestir-se de verde e confundir-se entre os populares.

De modo geral, os governos considerados de esquerda, tanto no Brasil quanto na Bolívia, encontram dificuldades para tratar das questões ambientais. Por que isso ocorre?

Israel Pereira Dias de Souza – Importante você ressaltar “os governos considerados de esquerda”. Não é esse o momento para aprofundar o assunto. Todavia, interessa considerar que tais governos só poderiam ser considerados de esquerda numa visão liberal, como aquela de Norberto Bobbio em Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. Numa perspectiva revolucionária, como a exposta por Rosa Luxemburgo em ‘Reforma ou revolução?’, eles seriam desertores da esquerda, se muito fossem.

A propósito, vale lembrar duas frases do ex-presidente Lula. Numa delas, disse que “o PT nunca foi esquerda”. Noutra, afirmou que “nunca os banqueiros haviam ganhado tanto como em seu governo”. Com razão, Paulo Maluf, “companheiro” seu, pôde dizer em tom de galhofa que, perto de Lula, ele era “um comunista”, posto que não apoiaria as multinacionais como o ex-presidente o fez – e sua sucessora continua fazendo.

Inegavelmente esses governos surgiram amparados por forças populares. Entres estas, contavam grupos progressistas e revolucionários até. Mas, em que pesem as esperanças suscitadas por esses governos, eles acabaram por legitimar o sistema que eles mesmos ajudaram a deslegitimar. Por outro lado, ressuscitaram e reabilitaram o desenvolvimento, incorporando-o de modo central em seus programas. Reputaram-no imprescindível para a inclusão social e mesmo para o respeito aos povos e à natureza.

Como é assaz sabido, desde os primeiros anos deste século a influência estadunidense vem sofrendo resistência na América do Sul. Tanto da parte de governos (sociedade política) quanto da parte de movimentos sociais (sociedade civil). Somado ao relativo declínio dos EUA no cenário mais geral, isso representou um recuo de sua influência na região sul-americana.

O Brasil aproveitou o favorável momento e avançou no recuo da potência do norte. Isolando os opositores mais radicais e cativando apoio interno (dos agronegócios, de gigantes da construção civil, de bancos, de organizações representativas das classes e dos grupos subalternos, dos setores mais pauperizados da população etc.) e externo (de governos de outros países, do capital financeiro, de organismos multilaterais etc.), Lula foi consolidando e ampliando a influência do país em toda região sul-americana. Para o que contou, além da liderança política, a atuação do BNDES.

Influência brasileira

Em geral, os investimentos do BNDES em outros países se dão na forma de empréstimos. Além de submeter financeiramente os tomadores de empréstimos, o governo brasileiro consegue, por esta via, influenciá-los a contratarem empresas “brasileiras”. O banco estipula, diz-nos matéria de Patrícia Campos Melo, “que 85% dos produtos e serviços do projeto precisam vir do Brasil” (Com apoio do BNDES presença de empreiteiras brasileiras se multiplicam no exterior).

As empreiteiras têm sido bondosamente favorecidas por esses investimentos externos, principalmente pelos investimentos em infraestrutura, os quais têm grandes impactos ambientais. Entre as empreiteiras eleitas, destacam-se Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS, Queiroz Galvão e Camargo Corrêa.

Infelizmente, a liderança brasileira tem sido exitosa em aglutinar em torno da Iniciativa para a Integração das Infraestruturas Regionais Sul-Americana – IIRSA, projeto que expressa as ambições subimperialistas do Brasil na América do Sul (ver IIRSA e o subimperialismo brasileiro) , até mesmo governos que muito teriam a contribuir com a promoção de outra civilização.

Santiesteban ressalta que, desde que a IIRSA foi lançada, o governo que “ha dado mayor impulso a la IIRSA es el de Evo Morales Ayma, cuyo Programa de gobierno 2010-2015 inscribe como suyo todo el paquete de proyectos IIRSA”.

Tal inclinação do governo boliviano é o que o tem levado a ignorar as propostas de consulta popular e de autonomia das comunidades indígenas e campesinas sobre seus territórios. É por este prisma que se pode compreender o que se passa em torno do Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), uma reserva de 1, 091 milhão de hectares onde vivem entre 10 mil e 12 mil nativos. Ignorando ou combatendo as manifestações em contrário, o governo massista segue com a ideia de construir uma rodovia que atravessaria o Parque.

Ante uma orientação claramente desenvolvimentista por parte dos governos brasileiro e boliviano, a preocupação com as questões ambientais ou assume um lugar marginal no programa de governo ou figura apenas nos discursos. É por coisas como estas que o desenvolvimento persiste na América Latina como uma ilusão a fascinante e facínora.

Maniqueísmo

Além disso, há outro elemento que me preocupa nesses governos. Refiro-me ao maniqueísmo com que são tratados os críticos e opositores em geral. Evo Morales chegou a chamar de “inimigos da pátria” e “agentes a serviço da USAID” aqueles que se opunham à estrada no Tipnis.

No Brasil, não raro as críticas e denúncias que têm sido levantadas contra os governos petistas são tratadas como sendo “manobras da velha elite que há mais de 500 anos governa este país” e da “mídia golpista”. Quem disse que as velhas elites foram desbancadas? E não é a elas que este governo vem ciosamente servindo? Como se vê, trata-se de um maniqueísmo bastante nocivo para aqueles e aquelas que lutam contra as forças que os oprimem nestes países. Desse modo, com justas razões forças estão sendo associadas premeditadamente a forças reacionárias.

Que modelo de desenvolvimento seria adequado para a Amazônia, envolvendo eventualmente esses três países?

Israel Pereira Dias de Souza – Seria um problema de grande monta pensar “um modelo de desenvolvimento” para apenas um único país de regiões tão distintas como o Brasil. Um problema maior ainda seria, então, pensar um único modelo para os três países. É preciso nunca perder de vista o óbvio: o desenvolvimento é uma das facetas do capitalismo. Nesse sentido, a crise que mostra efeitos perversos na Europa, os problemas ambientais e as aventuras bélicas deste início de século deixam em relevo seus limites.

O que o Brasil tem propagandeado em torno de seu êxito econômico só pode ser apresentado enquanto tal caso se faça em silêncio sobre as misérias que por aqui campeiam. Não faz tempo que os direitos trabalhistas vêm sendo atacados e os direitos sociais mercantilizados? E as famílias (milhares) que estão sendo expulsas de suas casas por ocasião das obras da Copa e das Olimpíadas? Em que outro momento da história nossos seringueiros, campesinos, povos originários, quilombolas e ribeirinhos tiveram sua existência tão ameaçada como hoje? Isso serve para todos aqueles que – por ventura ou desventura – habitam áreas valorizadas ou ricas em bens naturais e que, em razão disso, hoje são alvo das personificações do capital.

Se bem olharmos, veremos que Estado e capital estão aliançados e movendo guerra contra os povos da Amazônia. Não podia ser diferente já que esta região é hoje, inquestionavelmente, uma fronteira para o capital cuja lógica é, a um só tempo, totalizante e totalitária.

Falo tudo isso para deixar claro que, sob o capitalismo, qualquer modelo de desenvolvimento semeará morte e destruição. Desse modo, deveríamos deixar de falar em “desenvolvimento” e em “modelo”. Como muitos outros, penso que a saída esteja na diversidade. Cada povo e região decidindo seus objetivos sociais em benefício do ser humano e em harmonia com a natureza.

Aceito que não é fácil. Mas insisto que é necessário, imprescindível. E que é na luta que as coisas serão decidias. Hoje mais que ontem, amanhã mais que hoje, a luta pela vida só será consequente se for também uma luta contra o capitalismo. Para isso, importa conjugar a reflexão militante com a militância reflexiva.

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Enviada por Sandrah Guarani-Kaiowá.

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