Condenados por lutar

Por Elaine Tavares, em Palavras Insurgentes

Elke Debiazi é uma mulher jovem, bonita, ponderada, com certa doçura no jeito de se expressar. Mas, que ninguém se engane, quando precisa ela vira fera, seja para defender seus direitos ou proteger a filha de 11 anos. Foi guerreira durante toda a faculdade, feita na UFSC. Tão logo entrou no curso de História, percebeu que aquela universidade não podia ser como era. E começou a luta por uma Universidade Popular. Antenada, passou a militar num grupo organizado, percebendo que só no coletivo as coisas mudam de fato. Passou pelo Centro Acadêmico e logo estava no Diretório Central dos Estudantes, disposta a fazer uma universidade nova. Assim, esteve presente em todas as lutas que aconteceram nos anos de universidade. Um desses anos em particular, mudou sua vida. Foi o de 2005. Nele ela iria se encontrar com a difícil condição de ser considerada uma “criminosa social”, com todas as implicações que isso pode trazer a alguém.

O ano de 2005 foi intenso na UFSC. Primeiro foram os estudantes que começaram uma luta renhida pela melhoria das chamadas bolsas-treinamento. Naqueles dias, a UFSC pagava 250,00 e o aluno era obrigado a cumprir uma jornada de quatro horas diárias. Nela, em vez de estudar ou fazer pesquisa, os estudantes atuavam como trabalhadores técnico-administrativos. Esse tipo de bolsa já vinha sendo questionado inclusive pelo Ministério Público, que orientava um ajuste de conduta havia sete anos. Assim, naquele ano a indignação chegou ao auge, gerando inclusive, duas greves de bolsistas. Era o mês de junho, as negociações não avançavam, o Conselho Universitário não se decidia a aumentar o valor da bolsa e os estudantes decidiram então por um ato radical: ocupar a reitoria. E foi o que fizeram. A movimentação garantiu que o Conselho decidisse finalmente discutir o assunto. Os estudantes não queriam apenas aumento do valor, mas também mudanças no sistema. A bolsa de estudos tinha de ser para estudar e deveria durar o tempo todo do curso, garantindo assim a permanência do aluno, sem a necessidade de renovação a cada semestre. Nesse processo, eles conseguiram o apoio irrestrito dos trabalhadores que também já vinham denunciando o uso do aluno como um tapa-buraco para os problemas administrativos.

Foi decidido então que seria criada uma comissão envolvendo estudantes, professores, técnicos e representantes da reitoria para discutirem uma nova proposta para as bolsas. Elke Debiazi representava os estudantes no Conselho Universitário e fez parte da comissão assim como José de Assis pelos técnicos, Roselane Neckel pelos professores, Corina Espíndola, pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e a professora Olga pelo Curso de Direito.

No meio dessa batalha estudantil, os trabalhadores e professores também iniciaram as suas, aderindo a uma greve nacional das duas categorias no mês de agosto e, desde aí, a universidade mergulhou totalmente na luta, com as três categorias envolvidas, cada uma com suas especificidades.

Não foi sem razão que, quando finalmente o Conselho Universitário chamou para discutir a proposta que havia sido construída pela comissão, todos exigissem uma reunião aberta, afinal, cada uma das categorias tinha interesse de que a questão das bolsas fosse resolvida, assim como esperavam que o Conselho se manifestasse sobre as pautas locais de greve. Foram dias de negociação e quatro reuniões fechadas até que o Conselho decidiu aceitar uma reunião aberta para o dia 18 de agosto, na qual seriam discutidas as demandas dos professores, dos técnicos e dos estudantes. E foi com a esperança de um acordo que o auditório da reitoria se encheu naquele dia. Mas, entre os conselheiros o que se armava era uma vingança contra os estudantes, pois ninguém ainda havia engolido a ocupação do mês de junho.

A reunião começou tensa e o primeiro tema foi o das bolsas. A comissão apresentou seus estudos e a proposta de um valor de 330 reais, mais a garantia de que a bolsa seria para vincular o aluno a um projeto de pesquisa e não mais ao trabalho técnico. Tudo isso já tinha sido discutido com a reitoria e havia um acordo firmado para a aprovação. Mas, quando o tema se encaminhava para a votação, um dos conselheiros, Osni Jacó, do Centro de Desportes, alegou que não estava esclarecido e que por isso o Conselho não poderia votar. O mundo veio abaixo. No auditório havia quase 500 pessoas, estava lotado. O acordo já estava fechado e atitude do conselheiro inviabilizava tudo. Foi aí que alguém puxou uma palavra de ordem: “ai, ai, ai, ninguém entra, ninguém sai”. As pessoas foram fechando as portas e exigindo que a votação acontecesse. Eram nove horas da manhã.

Com a confusão criada pelo professor Osni, os Conselheiros decidiram desfazer a mesa e encerrar a reunião, mas os estudantes, professores e técnicos tomaram o microfone e passaram a fazer o debate. Ninguém se atrevia a sair. Lá fora, os trabalhadores da segurança da UFSC trancavam as portas e não deixavam ninguém mais entrar. Havia um impasse. As horas passavam e nada se resolvia. Foi só às cinco horas da tarde que o então reitor Lúcio Botelho decidiu aprovar ad referendum o aumento do valor das bolsas. Mas, nessa hora, a Polícia Federal já tinha sido chamada para “evacuar” a reitoria. Acordo fechado, todo mundo saiu festejando vitória. Mas aquele seria um dia que não terminaria ali.

A criminalização da luta

Poucas semanas depois estudantes e técnicos tiveram o troco. A reitoria instituiu um processo administrativo para investigar o que eles configuraram como “sequestro do reitor”. Como os conselheiros tinham ficado no auditório das 9 às 17h, denunciaram o ato como “cárcere privado”. A partir daí começou o terrorismo. Das quase 500 pessoas que estavam na reunião do conselho, a administração decidiu apontar 22 estudantes e quatro técnicos como os que lideraram e fomentaram o tal “sequestro”. Uma dessas estudantes era Elke Debiazi. Durante os “interrogatórios” muitos deles eram ameaçados com a possibilidade de não terminarem o curso e, no caso dos trabalhadores, de demissão, a não ser que entregassem os “cabeças” do “crime. Para os envolvidos aquilo era surreal. Não houvera sequestro, não havia “cabeças”, mas um ato político de luta pela aprovação daquilo que já estava acordado. O professor que provocou o tumulto nunca foi indiciado por nada. Mas, aquele era um tempo em que os estudantes estavam sendo vistos como um “câncer social” em Florianópolis já que no ano anterior, 2004, também haviam protagonizado a Revolta da Catraca, contra os aumentos das tarifas de ônibus. Assim, era preciso uma punição exemplar.

O processo administrativo dentro da UFSC seguiu pelo ano de 2006, mas a história não acabaria aí. Naquele ano, 17 estudantes e dois técnicos foram chamados para depor num processo que havia sido instituído pela Polícia Federal, também com a acusação de sequestro e cárcere privado. A abertura do inquérito na Polícia Federal tinha sido uma iniciativa do então reitor da UFSC, Lúcio Botelho, e do vice-reitor Ariovaldo Bolzan.

Durante todo esse período, a direção do Sintufsc (Sindicato dos Trabalhadores da UFSC) atuou no sentido de proteger todos os envolvidos, chamou reunião com todo o movimento social para discutir a criminalização e garantiu que um advogado acompanhasse o caso. O tempo passou e, em 2008 assumiu um novo reitor. Novas lutas foram travadas no sentido de arquivar o processo administrativo para que os estudantes não tivessem sua vida acadêmica atrapalhada. Foram necessárias muitas lutas e manifestações para que isso acontecesse, até que se conseguiu. Não por ação do reitor, mas por inação. O processo se extinguiu.

Já o inquérito da Polícia Federal seguia sem trégua. Mais estudantes foram chamados a depor, somando 22. Em 2009 muda o grupo que dirigia o Sintufsc e o assunto dos estudantes fica esquecido. O tempo passara, muitas outras coisas foram acontecendo, greves, lutas, e o pequeno grupo que respondia o inquérito foi sendo esquecido, não só pelo Sintufsc como pelo próprio movimento social. “Foram anos difíceis, a vida da gente ficou em suspenso. Sabíamos que a qualquer momento poderíamos receber um duro golpe. Não tínhamos mais força política, não havíamos conseguido manter a campanha efetiva pelo arquivamento do processo”, lembra Elke.

O fato é que o Ministério Público Federal ofereceu denúncia e foi instaurado um processo penal. Nele, os então reitor e vice figuram como testemunhas contra os estudantes, assim como os delegados da Polícia Federal Ildo Raimundo da Rosa e Jessé Ferry, os técnicos Nader Ingrascio Gharib, Gilson Pires e Corina Martins Espíndola, e os professores Eunice Sueli Nodari e Osni Jacó da Silva. Os 22 estudantes estavam então indiciados como réus num processo criminal. “Também tivemos muitos problemas com a assessoria jurídica. A advogada conseguida pelo sindicato cuidou por um tempo, alguns, que podiam, buscaram assessoria individual. A maioria buscou discutir alternativas coletivas e no final acabamos contratando um advogado. Esse, várias vezes nos alertou que era muito provável a condenação de pelo menos alguns dos envolvidos. A punição serviria de exemplo aos demais estudantes, que ousassem lutar. De qualquer modo, desconhecíamos o conteúdo das fitas que constavam nos autos do processo o que tornava muito frágil qualquer possibilidade de defesa”.

Cada um dos estudantes viveu então mais um período de terrorismo mental. E o que se articulava era um acordo: eles assumiam a culpa, pagavam cada um a quantia de mil reais para a Justiça, ficavam obrigados a – de três em três meses – informar ao delegado sobre o que estavam fazendo e onde estavam morando e não podiam ausentar-se do estado sem autorização do juiz. Era uma espécie de liberdade condicional que duraria por dois anos. A vantagem é que eles teriam a ficha limpa. “A gente estava muito confuso e fragilizado. O nosso advogado nem conhecia bem o processo e defendia a ideia do acordo. Nossas vidas estavam em suspenso, já haviam se passado cinco anos, estávamos sozinhos nessa luta”.

Por conta de todas essas fragilidades, quando chegou maio de 2010 a maioria dos estudantes decidiu assinar o acordo. Não via mais saída. Apenas três deles não aceitaram, mas mesmo assim estiveram presente no ato de assinatura para fortalecer os colegas. “Foi um dia muito triste, porque sabíamos, inclusive, que um dos colegas havia dado o nome dos que tinham militância em grupos organizados, como se esses fossem os `culpados´ pelo que havia acontecido. Ficamos muito revoltados, decepcionados. Saímos dali com um tremendo sentimento de impotência. Tudo aquilo fora um grande prejuízo na nossa vida e poderia ter sido diferente”.

Elke não cita o nome do colega, mas numa visita aos documentos do processo é possível encontrar nas folhas 236, 237 e 238, nas quis está registrado o depoimento de R. P. Ele diz: “que o bloqueio da entrada e saída de pessoas durante a reunião, já havia sido tramado anteriormente por dois grupos estudantis existentes na UFSC”, e segue citando o nome de vários deles, inclusive o de Elke. Ou seja, não só ligou alguns dos colegas a grupos organizados como levantou a suspeita sobre a possível ideia de “sequestro” dos membros do conselho. A descoberta desse depoimento deixou o grupo em profunda tristeza.

Os resultados da luta

Depois de assinarem o acordo, os estudantes precisaram de mais um período de batalha. Havia uma dívida de 20 mil reais para ser quitada. Cada um deveria pagar mil reais, conforme o acordo. Então, eles organizaram festas, fizeram bingos, passaram o chapéu nos sindicatos. Mas ainda ficou um “carnê das casas Bahia” para saldar. Não foi um tempo fácil. Cada um deles estava reorganizando a vida, buscando trabalho. “Naqueles dias a gente se sentia um pouco abandonado. Tínhamos feito uma grande luta coletiva, mas na hora de enfrentar a justiça ficamos muito sozinhos. A gente não se lamentava, tocava a vida”.

Mesmo com toda aflição de um processo por sequestro nas costas, Elke seguiu seu caminho. “Não tinha arrependimento sobre o que se passara, era o certo a fazer, e o que aconteceu foi até um motivo a mais para ir em frente, rever prioridades. Nesse período eu terminei o curso, fiz um mestrado e estava mergulhada no trabalho”.

A luta de Elke, assim como a dos demais 21 estudantes criminalizados naquele ano de 2005 não foi em vão. Por conta de todo o processo de luta, que envolveu as greves de bolsistas, ocupação da reitora e ocupação do Conselho, o sistema de bolsas mudou. A bolsa-treinamento foi extinta e instituiu-se a bolsa-permanência, com um valor maior e com a regra de que o estudante esteja ligado a uma pesquisa. Essa era a proposta da comissão que foi interrompida pelo professor Osni naquele triste dia em que os estudantes foram acusados de sequestro. “Por isso eu acredito que faria tudo de novo. O que fizemos foi o certo. Havia uma comissão, havia um acordo. Nós queríamos resposta da reitoria de um processo que já durava um ano, com reuniões nos Centros Acadêmicos. A gente só queria garantir que os estudantes carentes pudessem permanecer na universidade. E isso nós conseguimos”. O custo foi alto, mas essa é uma verdade incontestável. Hoje, na UFSC, a permanência digna daqueles que tem menos condições econômicas só é real por conta da luta desses estudantes.

Os outros estudantes que se recusaram a assinar o acordo seguem respondendo pelo que a justiça chama de “crime”. Na época eles alegavam que uma questão política não podia ser tratada como um crime. Para eles, aquilo era uma tentativa clara de intimidação e criminalização de movimentos sociais e havia a necessidade de uma resposta à altura para isso. Com as novas demandas do movimento popular o caso foi sendo esquecido e hoje, cada um deles segue, sozinho, fazendo a luta contra mais essa arbitrariedade.
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