Um convite à africanidade

Zózimo Bulbul. Foto: Divulgação

Raika Julie Moisés

Nascido em 1937, como Jorge da Silva, Zózimo Bulbul – 50 anos de carreira e 75 de idade – não se cansa de mostrar a que veio. Ícone negro da década de 60 e reconhecido por interpretações intensas no cinema e na televisão, Zózimo dedica sua trajetória a preservação do que chama de africanidade através dos meios audiovisuais. Há seis anos fundou o Centro Afro Carioca de Cinema, local destinado a exibir filmes de diretores africanos e afro-brasileiros, além de ser um espaço de encontro e reflexões sobre a arte do cinema.

Além de ator, Zózimo já realizou trabalhos como diretor e roteirista. Seu mais famoso filme como diretor, Abolição, marcou o centenário da Abolição da Escravatura no Brasil, descrevendo várias situações enfrentadas pelos afrodescendentes brasileiros até hoje. Nesta entrevista ao Notícias&Análises, ele mostra que os longos anos de caminhada e militância fortaleceram os sonhos e o desejo de seguir nesta mesma estrada.

Notícias&Análises: O Centro Afro Carioca de Cinema pode ser considerado uma ferramenta de articulação política para temáticas negras, suas origens e participação efetiva (criação, produção e difusão) neste meio? Um espaço como este reafirma a resistência/existência de um cinema afro-brasileiro?

Zózimo Bulbul: Aqui nós falamos da coletividade… Eu idealizei o Encontro de Cinema Negro Brasil África e Caribe, como também, agora a Herança Africana. Pela primeira vez eu estou muito orgulhoso em falar no nome do Centro Afro Carioca de Cinema, nós conseguimos ganhar um edital público para participar do Porto Maravilha. Foi por ali que os africanos chegaram neste país, nessa cidade, para transformar o Rio de Janeiro na capital do país. E hoje é muito importante a nossa presença, no Porto Maravilha, no momento em que a Prefeitura quer revitalizar aquele espaço. Já que os africanos depois da abolição da escravatura, o único espaço de trabalho que eles tinham, era realmente carregar sacos na cabeça no cais do porto. E eu acho que a nossa interferência hoje é muito válida. Parabenizo por estar dando essa oportunidade aos afrodescendentes de botar nossa cara nesse espaço.

N&A: O projeto “HERANÇA AFRICANA – Intervenções Urbanas No Caminho Do Porto” está sendo realizado em alguns pontos da Zona Portuária. Qual a importância simbólica deste local, principalmente o Cais do Valongo, para a memória afro-brasileira?

ZB: O Cais do Valongo tem uma importância muito grande para nós afro-brasileiros. Foi por ali que chegamos aqui. Eu posso falar com propriedade porque a África discute muito isso, a América somos nós, a América Central e a América do Sul. E nós temos que participar, olhar com calma e sabedoria para o africano presente neste continente. A simbologia de estar nestes espaços nos leva a mudança de hábitos, conceitos e subjetividades. Temos que mergulhar de forma consciente em nossa história, em nossas memórias.

N&A: Como surgiu a ideia de realizar o Herança neste circuito? 

ZB:
 Essa ideia surgiu, por incrível que pareça, neste ano, no centro Afro Carioca de Cinema, quando eu dei uma entrevista, para uma pessoa que eu tenho o maior respeito, que foi o Spike Lee. Quando ele me perguntou, olhando no meu olho, seriamente, se eu tinha consciência da minha historia. Não só do Brasil como no mundo inteiro. Eu fiz uma pausa enorme, para responder para ele, que não sabia da importância histórica, mas que eu estava buscando, me aprofundar mais na história africana para contar aqui no Brasil, já que o Brasil faz questão de desconhecer a história africana.

N&A: Qual a análise que você faz da produção contemporânea de diretores afro-brasileiros?

ZB: Joel Zito, Jeferson De, Antonio Pilar… Quem mais? Devem ter mais três ou quatro que eu devo estar esquecendo. Porque realmente nós não temos uma produção que corresponda ao numero de afro-brasileiros, dentro do cinema, na literatura, no teatro… Tudo isso não nos é ressarcido, não temos acesso a esse tipo de cultura, de edital… Mas isso não é corrigido desde 1.500 até hoje, o português colonialista que aqui chegou, tem até hoje a supremacia. Claro que é um país preconceituoso e enquanto continuarmos a ter ojeriza da África nesse país, o povo brasileiro nunca vai ascender, não vai ter seu lugar.

N&A: Nestes 50 anos de carreira, foi possível realizar tudo o que queria? E quanto aos próximos projetos?

ZB: Tenho, 50 anos de carreira, 75 de idade, com a saúde meio claudicante, mas eu quero sim! Eu quero, eu tenho um projeto de uma peça escrita por Joel Rufino, quero dirigi-la o mais rápido possível. E, de cinema, eu, Mansour Sora Wade, senegalês, eu quero botar também o Rigoberto Lopez, de Cuba, estamos pensando em um futuro próximo, mas bem próximo, de escrevermos uma história que englobe a África, a América Latina e o Caribe. Que eleve a autoestima do negro. Que passe por essa trajetória negra, mas saindo dessa história de escravidão. Nós temos uma história, que precisa ser contada através do audiovisual, por nós e eu quero buscar subsídios na África, no Caribe, na América do Norte, para fazer uma super, uma grande produção cinematográfica para que possamos nos orgulhar de nós mesmos. Quanto aos meus 50 anos de carreira, não consegui realizar tudo o que queria, faltou muita coisa, mas também não tenho grandes frustrações não, eu me joguei em tudo que eu pensei e quis fazer, mesmo que algumas coisas tenham dado errado. Mas eu estou aqui hoje, orgulhoso de tudo o que eu fiz e quero fazer muito mais, não só para mim, para o meu povo e não só para o Brasil, na América Central e na África.

N&A: Nestes 50 anos de carreira é possível dizer que existe um projeto estético e ideológico legítimo da cultura negra – tanto no que diz respeito a participação, produção, criação e circulação de obras que discutem a questão do negro no Brasil, bem como suas práticas culturais, sem que sejamos reconhecidos como pitorescos ou exóticos?

ZB: De jeito nenhum. A televisão, o rádio, os meios de comunicação estão ficando cada vez mais modernos, mas os afrodescendentes continuam sendo representados por poucos atores e roteiristas. Eu diria até por poucas histórias. Precisa mudar mais, não podemos ter em mente, quando falamos de nós, somente Pelé e história – conhecida por poucos – de Zumbi dos Palmares. Tem muitos homens e mulheres afrodescendentes pensando, querendo dialogar com essa inteligência, portuguesa, colonizadora que esta estagnada nesse país a mais de 500 anos. Precisa haver uma troca de dialogo entre a universidade e a comunicação, televisão, rádio e nós afro-brasileiros. É preciso uma integração racial/social nesse país se é que esse país pensa em sair dessa miséria atávica  há mais de 500 anos e lutar por uma posição mais digna para o povo brasileiro.

http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/noticias/mostraNoticia.php?id_content=1269

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