Pesquisa do governo diz que negros representam 51% da classe média: o que isso significa?

Raquel Rolnik*

No contexto das comemorações do Dia da Consciência Negra, o governo federal anunciou que 75% dos novos integrantes da classe média brasileira são negros. De acordo com estudo elaborado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, nos últimos dez anos, 35 milhões de brasileiros ascenderam à classe média — que já soma mais de 100 milhões de pessoas no Brasil, representando 53% da população do país. Os negros teriam passado a representar 51% deste grupo, que tem renda per capita entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00. Em 2001, este percentual era de 31%.

Ao divulgar esses dados, o governo obviamente tem o interesse de demonstrar avanços na inclusão econômica, inclusive do ponto de vista racial. De fato, os números mostram isso. Mas é fundamental, também, o muito que ainda há a ser feito para combater as desigualdades entre negros e brancos. Estudos divulgados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), também nesta semana, mostram que, “apesar da redução das desigualdades ao longo das últimas décadas, ainda persistem diferenças significativas nas condições de trabalho vivenciadas por negros e não negros.”

A pesquisa do Dieese sobre “A inserção dos negros nos mercados de trabalho metropolitanos” revela, por exemplo, que os negros são a maioria dos trabalhadores em ocupações que exigem menos qualificação, em que as relações de trabalho são mais precárias e os rendimentos são mais baixos, como é o caso da construção civil e dos serviços domésticos. Com relação aos rendimentos, a pesquisa mostra que, entre 2001 e 2011, a remuneração dos negros cresceu em todas as regiões, mas, ainda assim, é bastante inferior à da população não negra. Para se ter uma ideia, na Região Metropolitana de São Paulo, em 2011, os negros trabalharam a mesma jornada que os não negros (em média 42 horas semanais), mas o seu rendimento correspondeu a apenas 61,7% do recebido pelos não negros. Para as mulheres negras, estes resultados são ainda piores.

É importante também problematizar a definição de classe média utilizada pela SAE. Existe uma grande diferença entre uma família que ganha R$ 291,00 per capita e a que ganha R$ 1.019,00. Seria interessante investigar, do ponto de vista racial, quem são essas famílias que têm renda per capita de R$ 291,00. Também é importante levar em conta definição de “negro” utilizada por ambas as pesquisas. Tanto para a SAE como para o Dieese, os negros são a soma da população que se declara “preta” com a que se declara “parda” no censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Essa questão, inclusive, gerou um longo debate em outro texto que escrevi sobre este assunto. O Antonio Holanda, por exemplo, questiona: “Se somar os brancos e pardos também daria maioria, certo? Classificar pessoas pela cor é inútil. O racismo também começa aí. Todas as raças são mistura.” O Felipe vai na mesma linha. Para ele, os números não passam de truque para inchar as estatísticas: “os mestiços são considerados no momento de contar, pois são 50% e os negros só 9%”, diz. A Paula também acha que pardo não é negro. Para ela, “pardo é misto, é híbrido, é mestiço”. E o Ewerton provoca: “É a resposta mais superficial, é um ‘jeitinho’: no lugar de tentarmos fazer pretos, brancos e pardos conviverem, vamos espalhar que todo mundo é marrom. Genial!”.

O Flavio, por sua vez, responde, explicando de onde vem o conceito de “pardo”. Segundo o leitor, o termo “passou a ser utilizado no censo de 1872 com o único intuito de apurar quantos negros eram livres e quantos eram ainda cativos. Os negros ainda cativos eram classificados como pretos (miscigenados ou não), e os negros nascidos livres ou forros eram classificados como pardos (miscigenados ou não). Somente em 1950, quando teve início a auto-declaração, o termo ‘pardo’ passou a constar definitivamente das opções censitárias; mas sempre destinado a afrodescendentes. Desta forma, pretos são os negros com os caracteres africanos típicos (miscigenados ou não), e pardos são os negros cuja miscigenação é mais facilmente perceptível em sua aparência. Logo, pardos sempre foram e continuam sendo membros da população negra.”

E a Carmen explica: “O critério correto utilizado pelo IBGE para se referir à autoclassificação de cor/raça contempla 5 tipos: branca, preta, parda, amarela e indígena. […] Mudar o critério significa impossibilitar a comparação. […] O movimento negro luta para que a sociedade reconheça que mais da metade da população brasileira é negra. De acordo com a militância, os NEGROS são os PRETOS + PARDOS.”

De fato, o tema da desigualdade racial ainda divide opiniões no Brasil. Exibindo uma face miscigenada e afro-brasileira for export e com uma sociedade que internamente despreza e desqualifica o negro, é longo o caminho que o país tem que percorrer para ser, de fato, uma “democracia racial”.

*Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.

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