MPT pede cassação de “selo social” concedido a usinas pelo Planalto

Sete ações civis públicas citam “problemas, falhas, equívocos e fraudes” no processo de certificação e propõem anulação de selo conferido pela Presidência

Por Maurício Hashizume

Ostentado por 169 usinas sucroalcooleiras de todo o país e apresentado solenemente pela Presidência da República (PR) como materialização de um processo exemplar de “concertação social” (envolvendo poder público, patrões e representantes sindicais), o selo de “empresa compromissada” com a melhoria das condições de trabalho no setor da cana-de-açúcar é, segundo sete ações civis públicas protocoladas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), um poço de “problemas, falhas, equívocos e fraudes”.

Assinadas pelo procurador do trabalho Rafael de Araújo Gomes, as ações pedem a suspensão imediata da divulgação e do uso do “selo de conformidade” tanto pelo governo federal como por sete empresas “certificadas” que se situam no espaço jurisdicional da Procuradoria do Trabalho em Araraquara (SP). Estão entre as usinas citadas pelo MPT: duas pertencentes ao grupo Raízen – em Ibaté (SP) e Araraquara (SP) -; Irmãos Malosso, em Itápolis (SP); São José da Estiva, em Novo Horizonte (SP); Santa Fé, em Nova Europa (SP); Ipiranga, em Descalvado (SP); e Santa Cruz, em Américo Brasiliense (SP).

 O MPT pede ainda a cassação do selo e o impedimento de atribuição de nova certificação antes da análise prévia do conteúdo de fiscalizações realizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e de processos na Justiça de Trabalho, sob pena de pagamento de multas diárias de R$ 50 mil.

As ações baseiam-se em uma ampla gama de irregularidades, relacionadas tanto à forma quanto ao conteúdo: desde a realização de auditorias antes do estabelecimento das regras para a atribuição do “selo social” (sem que fossem seguidos procedimentos mínimos, avaliações dos relatórios formatados pelas consultorias credenciadas e consultas a possíveis denúncias, autuações e pendências judiciais trabalhistas, entre outras lacunas) até a ocorrência de flagrantes violações de normas (como a “validação” de informações não checadas fornecidas pelas próprias usinas que, em alguns casos, incluiu até a “conversão” de dados falsos como reais, a falta de comprovação da composição da equipe de averiguação, bem como o deliberado descaso quanto à participação obrigatória de sindicatos de trabalhadores e também quanto à consulta de médicos de trabalho responsáveis pelos empreendimentos).

Solenidade no Palácio do Planalto: 169 usinas foram certificadas (Foto: Roberto Stuckert Filho/PR)

Mesmo algumas premissas fundamentais do “Compromisso Nacional para a Melhoria das Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar” – acordo tripartite que está na base da concessão do selo -, como a contratação direta de mão de obra rural por parte das usinas signatárias, não vêm sendo cumpridas. Foi constatado pelo procurador Rafael que houve “aprovação” por parte de auditoria privada contratada até quando restou comprovada a contratação indireta (pela empresa rural associada, e não pela usina). Tal conduta de atestar algo irreal como verdadeiro, que envolveu a filial brasileira da renomada consultoria internacional Ernst & Young Terco e a Usina São José da Estiva mereceu a classificação taxativa de “falsidade ideológica” (confira quadro abaixo).

“O selo do setor da cana parece fazer parte de uma estratégia política de negar a existência de problemas trabalhistas em setores considerados sensíveis”, declara o procurador Rafael. Além do compromisso e do selo do setor da cana-de-açúcar, foi lançado um acordo na área da construção civil (que também deve ter um selo), que poderá ser seguido por outro relativo às confecções. “Aparentemente”, complementa, “qualquer setor econômico importante no qual os órgãos de fiscalização [do poder público] tenham flagrado casos de trabalho análogo à escravidão tem [sido envolvido em] um movimento contrário [liderado] por parte do próprio governo federal no sentido de negar, contrariamente aos fatos, a existência de qualquer problema”.

Em vez de atestar quadros de “conformidade” que supostamente garantiriam benefícios, a certificação tende a trazer, na visão do membro do MPT que apresentou as ações civis públicas, prejuízos aos trabalhadores. Tais prejuízos, sustenta Rafael, podem decorrer de diversas formas: desde a ocultação de problemas trabalhistas e a ilusão de “regularidade” firmada dentro e fora do país até o desencorajamento do pleito individual contra usinas “compromissadas”, assim como a perda de apoio (social e político) à mobilização coletiva da classe trabalhadora em prol da garantia de direitos.

Comissão
Nacional 
Usina e Auditoria
Irregularidades apontadas* –
Ministério Público do Trabalho
Posições** 
Selo
Concedido 
Santa Fé,
KPMG
Respostas absolutamente idênticas ao questionário de uma outra usina – Ipiranga, em Descalvado (SP) -: indício de “precariedade” da auditoria. Mobilização de apenas um técnico, em descumprimento à exigência de ao menos dois profissionais. Não há data da inspeção e nem entrevista com médico do trabalho  A usina não deu retorno. A KPMG afirma que produziu relatórios de acordo com as normas definidas
Selo Concedido
São José da Estiva,
Ernest & Young Terco
“Aprovação” de terceirização como se fosse contratação direta, prática classificada como “falsidade ideológica”. Ausência de identificação dos dois profissionais (devidamente qualificados) requeridos para a execução da auditoria. Admissão de que não houve checagem das informações dadas pela empresa  Não houve manifestação nem por parte da usina e nem da parte da auditoria internacional

*Seleção de apenas alguns dos inúmeros itens ilegais e controversos destacados nas ações civis públicas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT)
**A Secretaria-Geral (SG/PR) não atendeu ao contato da reportagem

Discursos e ações
Realizada em espaço nobre do Palácio do Planalto em junho deste ano, a solenidade de entrega dos 169 selos de “empresa compromissada” foi brindada com um discurso presidencial no qual Dilma Rousseff entoou louvações à produção do etanol a partir da cana, dando seguimento a posições que vinham sendo defendidas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A chefe do Executivo comemorou a expressiva proporção de matrizes energéticas renováveis obtida pelo país, fazendo referência ao contexto da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), no sentido de “produzir energia limpa, respeitando o meio ambiente e a legislação social”.  Na sua fala, Dilma louvou especialmente a estratégia governamental de “resposta” a duas acusações centrais que pairavam sobre a expansão da monocultura canavieira: o incentivo ao desmatamento de matas nativas (em especial, da Floresta Amazônica), com o Zoneamento Agroecológico (ZAE) da Cana-de-Açúcar, e a exploração de trabalhadoras e trabalhadores em condições análogas à escravidão, com o já citado Compromisso Nacional.

Cortador avança em canavial. (Fotos: Iberê Thenório/Arq. Repórter Brasil)

“Hoje, nós estamos aqui mostrando que a área que produz este combustível, que é (…) renovável, toda a produção sucroalcooleira do Brasil e, sobretudo, a base da produção do etanol, ela é uma das áreas que têm das melhores práticas na relação com os processos de trabalho, com a jornada de trabalho, com a condição de respeito ao direito do trabalhador nesta área”, afirmou Dilma aos satisfeitos usineiros presentes. Ex-ministro na gestão de Fernando Henrique Cardoso e presidente do Conselho Deliberativo da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), Pedro Parente disse que o reconhecimento de “boas práticas” por meio do selo contribui para “derrubar mitos que circulavam há muito tempo sobre esse setor”. Para o executivo, que está à frente da gigante do agronegócio Bunge no Brasil, “a generalização que se observava em relação às relações trabalhistas do setor sucroenergético não era apenas improcedente, mas completamente injusta com a imensa maioria dos empresários”.

Dados reunidos pelo procurador Rafael para dar sustentação às sete ações revelam um panorama que vai de encontro às sentenças palacianas e patronais. Apenas no interior paulista sob a alçada da Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região (PRT-15), que engloba a área de Araraquara (SP), existiam (em agosto de 2011) 149 procedimentos – 43 ações, dos mais diversos gêneros, e 106 inquéritos e outras investigações – em trâmite relacionados a empresas do setor sucroalcooleiro que já aderiram ao “Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar”.

No bojo das 43 ações judiciais trabalhistas em curso, 22 são recentes, tendo sido propostas em 2010 ou 2011, isto é, foram apresentadas mais de um semestre após o lançamento do acordo, em junho de 2009. De acordo com o procurador Rafael, as referidas ações e procedimentos relacionam-se a violações trabalhistas graves: “ilícitos relacionados a meio ambiente do trabalho, não fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs), não disponibilização de sanitários, alojamentos precários, excesso de jornada, acidentes fatais, fraudes trabalhistas, não pagamento de salários, assédio moral etc”. Houve inclusive condenações recentes na Justiça do Trabalho, com a imposição de indenizações milionárias a usinas por danos coletivos causados.

Recomendações e representações
A primeira circunstância que gerou a suspeita de irregularidades ao autor das ações foi o fato de que uma usina que havia sido flagrada com trabalho escravo contemporâneo por uma fiscalização da qual o próprio procurador Rafael havia participado consta do rol das primeiras 169 agraciadas com o selo de “empresa compromissada”. Após quitar verbas rescisórias de dezenas de trabalhadores resgatados e ter sido levada a pagar altos valores por dano coletivo, a empresa foi, mediante o descumprimento de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e a consequente perplexidade manifestada pelo procurador do trabalho, apresentada à sociedade como “empregador-modelo”.

Para averiguar as condições concretas em que os selos foram atribuídos, o representante do MPT solicitou a cópia de todos os processos para a Secretária-Geral da Presidência da República (SG/PR), que gerencia o acordo. A partir da análise da documentação referente às usinas fixadas na sua área de atuação, decidiu entrar com os pedidos de cassação dos selos. Ele remeteu ainda cópias dos relatórios de auditoria e demais documentos às Procuradorias Regionais (em São Paulo e em outros Estados) nas quais há usinas agraciadas com o selo, de modo que outras ações poderão ser propostas conforme a iniciativa de cada pessoa dedicada às respectivas jurisdições do MPT.

Outros dois pontos de polêmica consistem na completa inexistência de processo administrativo para a concessão dos selos, que se limitaram unicamente aos relatórios das auditorias contratadas e pré-agendadas pelas próprias usinas, e na desconsideração dos passivos (que poderiam ser apontados por meio da consulta ao MTE, ao MPT e à Justiça Trabalhista) e das denúncias de organizações da sociedade civil, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O primeiro deslize posiciona o procedimento completamente à margem do controle público, infringindo a Lei  n° 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Ambos confirmam, no entendimento do procurador Rafael, que a atribuição do selo é “`um jogo de cartas marcadas`, concebido para dar um `verniz` de credibilidade a uma decisão, supõe-se que política já que certamente não é técnica, de conceder o Selo às empresas do setor, mesmo que contrariamente à realidade”. Um dos problemas ressaltados nas ações diz respeito ao caráter indevido da criação de um selo trabalhista pela União, que bate de frente com a já ratificada Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – referente à manutenção e estruturação da atividade de inspeção do trabalho (que, no caso do Brasil, é atribuição do MTE), não sendo autorizada a criação de outros mecanismos, sem qualquer autorização legislativa, que comprometam a atividade prevista. Para esse tipo de certificação de caráter trabalhista, as usinas poderiam perfeitamente recorrer a iniciativas privadas já existentes como a SA (Social Accountabilty) 8000 ou o selo da Bonsucro (parte do esforço transnacional Better Sugar Initiative), que não suscitam qualquer tipo de incompatibilidade com a fiscalização estatal brasileira.

Entrevistas de trabalhadores com a presença da parte do empregador, funcionários de usinas (e não técnicos auditores) a cargo das chamadas de lideranças sindicais (que só estiveram presentes em cerca de 50% das auditorias feitas em São Paulo), e a realização de auditorias durante a entressafra completam o cenário pintado pelo MPT. O controverso panorama joga mais lenha, aliás, na fogueira da existência de um clima de “cabresto político na inspeção do trabalho” voltado para a “tentativa de defender o empregador a qualquer preço” – denunciada pela ex-secretária da área no MTE, Vera Lúcia Albuquerque, que pediu exoneração há pouco mais de duas semanas. Episódios da etapa final da I Conferência Nacional do Emprego e Trabalho Decente (CNTED) também reforçam a mesma linha da supremacia patronal.
Posicionamentos
Desde que foi lançado, em junho de 2009, o “Compromisso Nacional para o Aperfeiçoamento das Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar” vem sendo foco de polêmicas, seja quanto à ausência de itens básicos (prevê a marmita, mas exclui a alimentação) em seu escopo, seja quanto à adesão inicial de três empresas que constavam da “lista suja” do trabalho escravo.

Componentes da Comissão Nacional de Diálogo e Avaliação do Compromisso Nacional, dedicada à coordenação das ações relativas ao mecanismo – incluindo, obviamente, a atribuição do selo -, foram contactados pela Repórter Brasil para apresentar seus posicionamentos acerca do pedido de anulação das certificações. Principal articuladora do selo, a Secretaria-Geral da Presidência da República não respondeu ao contato feito pela reportagem.

A Unica informou que não divulgará a sua posição até que todas as ações sejam apreciadas pela Justiça do Trabalho. A Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), que também faz parte do colegiado, não respondeu à reportagem. Apesar das críticas que tem feito a aspectos do processo, a Feraesp e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que representam os trabalhadores, estiveram presentes na cerimônia que concedeu o selo às 169 usinas.

De todas as sete usinas acionadas pela reportagem, apenas a Usina Irmãos Malosso e o grupo Raízen se posicionaram. Em nome da primeira, Roberto Zanardi afirmou que a empresa ainda não havia sido notificada e que, portanto, desconhecia o teor da ação. A assessoria de imprensa da Raízen também sustentou que a companhia ainda não tinha sido notificada, mas adicionou que o selo de “empresa compromissada” é “mais uma entre diversas iniciativas de aprimoramento de práticas no setor sucroalcooleiro”. O grupo salienta ainda que “não pretende interferir com a atuação das autoridades competentes, mas sim incentivar a indústria como um todo a promover a adoção de melhores práticas trabalhistas no setor”.A KMPG e a Ernst & Young Terco também foram consultadas sobre irregularidades identificadas pelas ações do MPT. A KPMG se limitou a afirmar que produziu relatórios de verificação “de acordo com as indicações e normas estabelecidas no Edital de Chamada Pública n° 01/2011 – SG/PR”, publicado em julho de 2011 e que “como sempre, está disponível às autoridades para prestar eventuais esclarecimentos que sejam solicitados”. Não houve retorno da parte Ernst & Young Terco Auditores Independentes S/S.

Das sete ações civis públicas, três juízes de 1ª instância, até o momento, decidiram não ser a questão de suas competências e remeteram os processos para a Justiça Federal. Em três outros casos, houve designação de audiência para ouvir os réus. A sétima ação ainda não foi apreciada. No que diz respeito aos três casos em que a Justiça do Trabalho não acolheu as ações, o MPT já recorreu de dois e ainda não foi intimado do terceiro.

Quanto às empresas de auditoria, o representante do MPT anunciou que enviará uma representação ao Conselho Regional de Contabilidade de São Paulo (CRC/SP) com relato das irregularidades detectadas. No que toca à indicação de falsidade ideológica, o procurador do trabalho confirmou que pretende representar criminalmente junto ao Ministério Público Federal (MPF).

http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=2123. Enviada por Sonia Mariza Guarani Kaiowá.

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