Ministros divergem sobre banimento do amianto no Brasil

Por Rafael Baliardo*

Os ministros Marco Aurélio e Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, relatores de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que avaliam o banimento do amianto na indústria brasileira, divergiram diametralmente ao proferir seus votos nesta quarta-feira (31/10). As ADIs 3.937 e 3.557 questionam, respectivamente, uma lei do estado de São Paulo e outra do Rio Grande do Sul que proibem a extração, bem como a produção e a comercialização de qualquer produto que tenha o amianto crisotila em sua fórmula.  Ayres Britto rejeitou ambas as ADIs ao passo que Marco Aurélio as julgou como procedentes. Em termos muito reducionistas, Britto levou em conta, em seu voto, o direito à saúde, enquanto Marco Aurélio questionou até que ponto o cidadão necessita de leis que o superprotejam. Foram coletados os votos apenas dos relatores em uma longa sessão de julgamento que se estendeu por toda a tarde até quase às 22h.

De forma mais ampla, os ministros consideraram até que ponto legisladores regionais podem legislar, por meio de leis complementares, em relação ao que disciplina, de forma evasiva e frouxa, a norma geral da União. E, em um segundo momento, avaliaram quão singular é a toxicidade do amianto crisotila em comparação a outros materiais nocivos à saúde, de modo a justificar seu banimento em detrimento do uso controlado e restrito.

A ADI 3.937, sob relatoria do ministro Marco Aurélio, é procedente de São Paulo e foi ajuizada no STF em 2007. A ADI 3.557, que têm como relator o ministro Ayres Britto, é original do Rio Grande do Sul e foi impetrada em 2001. Ambas tem como autor a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), que questiona a constitucionalidade das duas leis estaduais que proíbem, naqueles estados, a produção e a comercialização de produtos que tenham fibras de amianto do tipo crisotila em sua composição. As ADIs sustentam que os diplomas regionais ferem o preceito constitucional da livre iniciativa além de desconsiderar que a fibra pode ser utilizada de forma controlada e segura, a exemplo de outros materiais de risco.

Apenas o uso do chamado amianto branco (crisotila) é permitido no Brasil. O crisotila é considerado substancialmente menos prejudicial do que o amianto anfibólico (marrom ou azul), cuja utilização foi banida em praticamente todo o mundo.  Os críticos da extensão do banimento ao crisotila, no Brasil, afirmam que resta comprovada a ausência de riscos à saúde decorrente do uso controlado do material. Porém, a CNTI alega que as leis estaduais usurpam a competência do que dispõe a Lei Federal 9.055/1995 que bane o uso do amianto anfibólico e impõe uma série de restrições para a utilização do crisotila.

No final de agosto, o ministro Marco Aurélio promoveu uma audiência pública para discutir os riscos à saúde e os aspectos legais e econômicos de se proibir a extração, industrialização, comercialização e transporte do amianto crisotila. Durante dois dias, especialistas e autoridades, entre eles estudiosos estrangeiros em toxicologia ambiental, apresentaram seus pontos de vista sobre o uso da fibra, que está presente em 80% das casas brasileiras, na forma de caixas d’água, e em 50% das residências, como telhado. O risco à saúde decorrente do uso do produto foi virtualmente afastado no que toca seu uso doméstico, mas há controvérsia sobre os riscos potenciais para quem trabalha nas minas de amianto. O Canadá é o único país desenvolvido que ainda produz o amianto do tipo crisotila. No entanto, países como os Estados Unidos e a Alemanha permitem sua importação controlada.

Condomínio legislativo
Durante a leitura de seu voto, Ayres Britto observou que o “condomínio legislativo brasileiro” permite que os estados possam legislar, por meio de leis complemetares, sobre o conteúdo das normas gerais formuladas pela União. “Constitucionalmente, ninguém precisa esperar por ninguem, nem os estados nem a União”, disse o presidente do STF. “A União tem de se limitar às normas gerais. Já aos estados cabem as normas suplementares”, disse. “O que é suplementar? É acrescer. Oferecer suplemento. A competência suplementar é para acudir, suplementar, solvendo potenciais déficits que venham padecer as normas gerais formuladas pela União”, observou.

O ministro lembrou que a Constituição estabelece que cabe a competência concorrente das unidades federativas em caráter suplementar no que se refere à utela do meio ambiente e a questões de caça, fauna e proteção à vida. “O meio ambiente é bem juridico a se enlaçar à saude pública e ao bem estar”, afirmou Britto.

O ministro disse ainda que a Lei Federal 9.055 é, em essência, um diploma proibitivo, tanto que veda o uso de qualquer tipo de amianto por meio de pulverização ou spray, proibindo também sua venda a granel. O ministro mencionou o que entendeu por lacunas da lei federal no que toca às restrições ao uso do amianto crisotila e chegou a declarar que a lei gaúcha é mais precisa no cumprimento de preceitos constitucionais do que a norma federal.  “ [A lei do Rio Grande do Sul] cumpre muito mais a Constituição da República do que a Lei Federal em tema de direitos fundamentais”, disse Britto ao criticar a norma da União.

O presidente do STF contou ainda que, adolescentente, vivendo no interior do Segipe, costumava observar os operários de uma fabricante de telhas, se referindo ao local como “verdadeira fábrica de adoecimento”. “Eu lembro de pensar:  quando o sol bate de chapa nesses telhados de amianto, não sei se ele está batendo ou apanhando. Eu tinha 18 anos e me permiti fazer esse jogo de palavras”, relatou.

Veneno e remédio
Em voto longo, que se estendeu por quase duas horas, Marco Aurélio avaliou os riscos e benefícios da vedação do uso do amianto no Brasil e considerou o extenso leque de variantes que envolve o tema. O ministro se referiu ainda a outras substâncias de alto risco presentes na indústria e qualificou de “incerteza científica” a controvérsia sobre o tema. Marco Aurélio disse que, frente à omplexidade do caso, o banimento deveria ser discutido no âmbito do Poder Legislativo, “de forma democrática”, e não em decisão judicial.

“Dizia o médico Paracelso, figura suíça do Renascimento, cujo pseudônimo quer dizer superior a Celso, médico romano, que a diferença entre o veneno e o remédio está apenas na dose”, disse Marco Aurélio. “Mas as doses a que a população fica submetida são geralmente insuficientes ao desencadeamento das doenças tipicamente relacionadas ao produto. O risco no campo da saúde pública é corriqueiramente definido por uma função do tempo de exposição e o grau de perigo decorrente do manuseio de certas substâncias”, afirmou.

Marco Aurélio criticou o Poder Público ao fiscalizar de forma insuficiente a utilização de materiais de alto risco no país. “O quadro apresentado pela auditora do Trabalho na audiência pública revela precariedade e descaso da União em um setor de enorme relevância para a saúde pública. Mas não se pode, por isso, colocar a culpa nos particulares e, sim, no Poder Público, que descumpre os deveres previstos na Convenção 162 da Organização Internacional do Trabalho”, disse.

Marco Aurélio citou também decisão, de 1991, do Tribunal de Apelação para o 5º Circuito, nos Estados Unidos, que considerou insuficientes os motivos para o banimento do amianto crisotila naquele momento, bem como não-provada a ausência de riscos dos materiais substitutivos. Para o ministro, é preciso ter cuidado para “não se trocar o certo pelo duvidoso”. “Escolhas regulatórias se dão com alternativas que envolvem riscos”, observou.  O ministro disse ainda que é preciso proceder com a escolha entre “riscos gerenciáveis e não-gerenciáveis”. Marco Aurélio avaliou que não basta “trocar um risco fartamente documentado por um que ainda é desconhecido, de todo, da medicina”.

Sustentações orais
Antes dos votos de Ayres Britto e Marco Aurélio, nove advogados se alternaram na tribuna para defender ou atacar o mérito das ADIs. Sobre a divergência em relação ao assunto, o ministro Marco Aurélio,  ainda enquanto lia o relatório e ao detalhar os trabalhos da audiência pública, afirmou: “A balança da vida tem dois pratos. Entre o banimento total e a situação atual, a virtude está no meio termo”.

O primeiro advogado a falar foi Marcelo Ribeiro, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral, que representa a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria. Ribeiro lembrou que a ADI 4.066, que tramita no Supremo, questiona a constitucionalidade da Lei Federal 9.055 que disciplina a matéria, e que será, na análise daquela Ação Direta de Inconstitucionalidade que o tribunal deverá se manifestar em definitivo sobre  a permissão ou banimento do crisotila no Brasil. “É incabível apreciar-se incidentalmente a lei federal quando há uma ADI para isso”, disse o advogado. Para Marcelo Ribeiro, é a lei federal  que fixa as balizas para o uso do crisotila, e o estados não têm competência para legislar sobre o assunto.

Sobre a má reputação do amianto em termos gerais, o advogado disse que tudo começou com o uso não controlado, há décadas, da substância no hemisfério norte. “Por que tem essa fama péssima? Por que era usado como isolante térmico no hemisfério norte. Era um excelente isolante térmico, para o frio e o calor, porque não queima. Mas era aplicado como spray, por jatos”, explicou. O advogado lembrou ainda que o amianto anfibólico é 500 vezes mais danoso do que o crisotila.

“A suspensão de particulas no ar e o risco de ser inalado é o que pode representar riscos a saúde, entre eles cancêr de pulmão”, avaliou. O advogado lembrou que a lei federal estabelece que o nível de suspensão da substância no ar tem de ser de até 2 fibras por centímetro cúbico, mas que sua produção no país gera 0,1 fibra por centímetro cúblico de suspensão. “O ser humano respira 15 mil fibras de amianto por dia naturalmente”, argumentou Ribeiro. “É o excesso que faz mal”, insisitiu.

“Por isso são os trabalhadores que pleiteam que se continue usando. […]Infelizmente, a Procuradoria do Trabalho e os magistrados querem tirar o benefício dos trabalhadores”, disse.

Coube ao procurador do Estado de São Paulo, Thiago Luiz Sombra, atacar o uso do amianto crisotila no Brasil. Para o procurador, a lei paulista tem efeito vinculante à norma federal, lembrando ainda que, em 2006, a Organização Mundial de Saúde reconheceu que todos os tipos de amianto causam a enfermidade conhecida como abestose. O procurador rebateu também o argumento de que o banimento provocaria prejuízos financeiros e desemprego na indústria. “Das 19 empresas afetadas [pela lei paulista], 17 adequaram sua linha de produtos aos substitutivos do amianto,  não representando qualquer risco ao pleno emprego”, disse.

O advogado do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração de Mineriais Não-Metálicos de Minaçú (GO), Antonio José Teles de Vasconcelos , falando pela procedência das ADIs , disse que também não há certezas sobre a extensão dos riscos à saúde oferecidos por subsitutos do amianto, como o polímero de plástico, polipropileno, que por ser biopersistente, pode impor danos permanentes à saúde, afirmou o advogado. Vasconcelos disse também que estudos ainda terão de  ser feitos para assegurar o grau de segurança no uso dos substitutivos do crisotila.

 “Existe um terror grande nesse apecto do amianto. Chega inclusive aos depósitos dos materiais de construção”, disse Vasconcelos. O advogado observou ainda que a mineração e a industrialização do amianto no Brasil é regido por normas rigorosas e que os operários do setor possuem a “prerrogativa exclusiva de paralisar a produção em vista da suspeita do menor problema técnico”.

Na mesma linha, o advogado Carlos Mário da Silva Veloso, filho e epônimo do ministro aposentado do STF, que representa o Instituto Brasileiro do Crisotila, afirmou que substâncias usadas na indústria como o níquel,  o carvão, o  cromo, minerais radioativos, mercúrio e benzeno também oferecem riscos significativos e nem por isso sua utilização é proibida. “A vida contemporânea reclama uma convivência com materiais que, se não manipulados de forma controlada, podem trazer malefícios à saúde”, disse.  Para o advogado é “mito” que apenas em países em desenvilvimento se usa amianto.

Amici curiae
O advogado da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT),  entidade que entrou como amicus curiae no processo, Roberto Figueiredo Caldas , disser ser “ unanimidade nos órgãos públicos internacionais” a adoção de iniciativas de substituição do amianto por outros materiais. Em seu voto, o ministro Marco Aurélio fez uma ironia dizendo que se recusava a usar o termo amicus curiae por que “eles só dão trabalho à corte”.

“Não se pode fazer pensar que toda letalidade é apenas daquele tipo alibólico”, afirmou. O advogado lembrou que, nos Estados Unidos, o amianto crisotila é usado apenas na indústria bélica e na produção de freios especiais, sendo que seu uso está restrito a  apenas 15 mil toneladas por ano. Roberto Caldas disse também que  a Organização Mundial de Saúde contabiliza 107 mil mortes decorrentes do amianto a cada ano.

Também contrários às ADIs, os advogados Mauro de Azevedo Menezes, da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto( ABREA) e Oscavo Cordeiro Corrêa Netoda Associação Brasileira das Indústrias e Distribuidores de Produtos de Fibrocimento  (Abifibro), repetiram que a Organização Mundial de Saúde e a Organização Internacional do Trabalho reiteraram que toda espécie de amianto é “altamente nociva”. “A última racio do amianto é a morte de trabalhadores atados a um tubo de oxigênio”, disse Menezes.

O advogado da Abrea observou que muitas das fabricantes que se servem da substância procedem com a celebração de acordos extrajudiciais antes do adoecimento de seus funcionários. Menezes disse que, por se deparar com essa realidade no cotidiano, magistrados e procuradores do Trabalho resolveram entrar como amicus curiae nas duas ADIs.

O sub-procurador-geral da República Francisco de Assis Vieira Sanseverino observou que, em parecer anterior, o Ministério Público Federal tinha entendimento pela procedência de ambas as ações. Contudo, o atual procurador-geral, Roberto Gurgel, reformulou o posicionamento do MP, concluindo pela improcedência das ações.

Para Sanseverino, é preciso que o Judiciário prestigie mais leis locais em detrimento da centralização de poder pela União. “A partir de 1930, no Brasil, temos uma tendência centralizadora”, afirmou ao observar que a Carta de 1988 estabeleceu a competência concorrente dos estados por meio de Leis Complementares. “Salve menor juizo, a lei federal é lei de proibição”, disse.  O subprocurador observou que, frente à dúvida e a tantos estudos com conclusões antagônicas, cabe a in dubio prosociedade, ou seja o banimento do amianto crisotila para evitar riscos.

Antes do encerramento da sessão, o ministro Gilmar Mendes, que não votou, observou que ficou claro que o diploma federal “não permite a proteção devida” que devia reger a disciplina da matéria. Na linha do ministro Marco Aurelio, Gilmar Mendes observou que uma decisão pelo banimento poderá dar margem para que se estenda proibições análogas, afetando até mesmo a “paz federativa”, frente a insegurança promovida pelo déficit normativo.  “Vamos substituir o achismo do legislador pelo nosso achismo?”, questionou. “Se é para dar palpite, que seja o legislador, que pode fazer um experimento e voltar a atrás”, disse.

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*Repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Enviada por Zuleica Nycz.

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