Portaria da AGU restringe direitos de índios

Por Kenarik Boujikian Felippe* e Marco Antonio Delfino de Almeida**

A Constituição Federal de 1988 é marco fundamental do direito dos povos indígenas, protagonistas das conquistas nela estabelecidas, com o acolhimento do princípio da diversidade e alteridade, consagrando o direito congênito às terras tradicionais.

Mas o mapa de violência contra estes povos remete ao alerta do professor Dalmo Dallari: “o tratamento que vem sendo dado aos índios brasileiros, as agressões às suas pessoas e comunidades, as invasões mais ostensivas e atrevidas de suas terras, as ofensas freqüentes, toleradas ou mesmo apoiadas por autoridades públicas, atingindo a dignidade humana do índio e outros de seus direitos fundamentais, tudo isso mostra a necessidade de um despertar de consciências. Do ponto de vista jurídico, é absolutamente necessário que as autoridades competentes para os assuntos relacionados com os direitos dos índios e de suas comunidades exerçam, efetivamente, suas atribuições legais, pois além das ações arbitrárias os índios estão sendo vítimas de omissões das autoridades”. (Clique aqui para ler mais sobre o assunto)

O fato é que a violação domina a conduta de diversas autoridades de Estado e uma das faces da intolerância é a portaria 303 editada pela AGU — Advocacia Geral da União, órgão que representa a União e que assessora juridicamente o Poder Executivo. A ementa da portaria diz que ela “dispõe sobre as salvaguardas institucionais às terras indígenas”, mas na verdade, passada a leitura da ementa, o que se tem é o revés, seus propósitos são outros: restringir os direitos constitucionais dos índios, desrespeitando a essência da convivência democrática que se reconhece no outro, e cujos direitos devem ser defendidos e não atacados. Distancia-se da concepção do Brasil, como uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, como se estas fossem um punhado de palavras, dispostas aleatoriamente na Constituição Federal .

O art. 231 da CF reconhece a organização social dos índios, seus costumes, línguas, crenças e tradições. Obriga a União a proteger e respeitar todos os seus bens, mas na visão da AGU, este deve ser mero “favor” constitucional, pois a portaria afasta expressas determinações constitucionais relativas ao usufruto dos recursos naturais das terras indígenas; em relação à necessidade de consulta às populações indígenas para aproveitamento de recursos hídricos e para a pesquisa e lavra das riquezas minerais. Traz conceito minorante de terras indígenas, à revelia da norma constitucional. E, como se não bastasse, quer determinar a retroação para afetar os procedimentos finalizados, o que demonstra que para a AGU, o direito adquirido e ato jurídico perfeito, inscritos no rol de direitos fundamentais não se aplicam aos indígenas, se os favorece. Afronta tratados internacionais, especialmente, a convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.

Mais, em verdadeiro desatino, quer que as condicionantes indicadas por um ministro do STF no julgamento “Raposa Serra do Sol”, sejam transportadas para todas as demarcações, entretanto elas se referem tão somente a este julgado e não poderia ser de outra forma, pois além de tudo, o ponto fulcral deste processo era a demarcação integral ou em ilhas.

A Constituição estabeleceu o prazo de cinco anos, pós 88, para que as demarcações fossem realizadas, mas apenas 1/3 das terras foram demarcadas até agora e há processos paralisados há décadas nos tribunais, o que apenas aguça os conflitos que se retroalimentam da inoperância dos poderes da República.

A presteza constitucional tinha a finalidade de construir, no prazo razoável que fincou para as demarcações, um país verdadeiramente democrático e plural, mas a depender da portaria, estaremos retrocedendo ao tempo do descobrimento.

A portaria 303 foi suspensa até o dia 24 de setembro. Espera-se que uma breve reflexão à luz da Carta Magna, da história indígena, da nossa história, faça com que seja revogada, para que a trágica história de espoliação e violência tenha um fim. Os povos indígenas não podem esperar mais.

*Kenarik Boujikian Felippe é juíza em São Paulo e co-fundadora do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.

**Marco Antonio Delfino de Almeida é procurador da República e especialista em Direito Constitucional

fonte: Revista Consultor Jurídico, 20 de setembro de 2012

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