À procura de uma poeta e da esperança angolana

Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade, 1969

por Susana Moreira Marques

Termina com as eleições de 1992, o reacender da guerra, o fim de muitos sonhos. Mas deixa em aberto a biografia de uma poeta que se confunde com a biografia de um país. Relembramos “Estação das Chuvas”, de José Eduardo Agualusa

Se estivesse vivo, Agostinho Neto, o primeiro presidente da República de Angola, teria hoje 90 anos. Amílcar Cabral, líder do PAIGC [Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde] e uma das mais importantes figuras da luta contra o colonialismo português, teria agora 87. Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade, fundadores do MPLA [Movimento Pela Libertação de Angola], teriam ambos 84. Lídia do Carmo Ferreira era da mesma idade que Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade e conviveu com todas as grandes figuras do nacionalismo africano em Lisboa, na Casa dos Estudantes do Império. Como eles, quis lutar e escrever poesia, não necessariamente por essa ordem. Aos 84 anos, ninguém sabe onde está.

Amílcar Cabral morreu assassinado em Conacri, em 1973, sem ver a independência acontecer. Viriato da Cruz morreu no mesmo ano, em exílio na China, só, amargo, afastado do MPLA de Agostinho Neto. O “Camarada Presidente Agostinho Neto”, morreu em 1979, deixando em curso uma das mais desvastadoras guerras civis do continente africano, e as prisões angolanas – para não falar dos campos de concentração e das valas comuns – cheias de militantes de esquerda, de processos de dissidência e “fraccionismo” dentro do MPLA, como a Revolta Activa [criada por Mário e Joaquim Pinto de Andrade], a OCA [Organização Comunista de Angola] e o grupo ligado à tentativa de tomada de poder de 27 de Maio de 1977.

Mário Pinto de Andrade morreu em 1990, pouco tempo antes da esperança e desilusão das eleições angolanas de 1992. José Eduardo Agualusa era próximo de Mário Pinto de Andrade. Costumavam conversar longamente sobre o país onde tinham nascido, o nacionalismo, a negritude, a democracia. Mário Pinto de Andrade tinha morrido de repente e as conversas tinham ficado inacabadas. Escrever era a única maneira de as completar, e José Eduardo Agualusa, que não podia trazer Mário Pinto de Andrade de volta, criou Lídia do Carmo Ferreira para poder conversar com ela. Lídia do Carmo Ferreira, ao contrário dos companheiros, assistiu às eleições de 1992.

Mário Pinto de Andrade

“Eu tinha ido visitar Lídia, alojada no apartamento de Paulete, e já não voltei a sair. Os tiros pareciam partir de todo o lado.”, escreve o narrador de “Estação das Chuvas”.

“A televisão mostrava imagens da guerra. Miúdos com fitas vermelhas amarradas na testa, walkmans nos ouvidos, pentes de munições cruzados sobre o peito. (…)

Lídia não queria ver televisão. Durante aqueles três dias fechou-se no quarto a escrever. (…) Quando os tiros pararam saí com ela. Fomos a pé até à ponta da Ilha, fingindo que não víamos a cidade arruinada pelos últimos confrontos. A loucura rondava em torno, estendia para nós as suas compridas patas de aranha. O cheiro fez-me lembrar o 27 de Maio. A mesma fúria, a mesma vertigem. (…)

Na praia não estava ninguém. (…) Os caranguejos tinham morrido todos dentro das suas armaduras transparentes. Peixes brancos olhavam para nós com grandes olhos de água. Lídia agarrou-me a mão: “Que país é este?” (p. 263-266)

Foi depois disso que Lídia do Carmo Ferreira desapareceu. O narrador, um jornalista, procurava a história da poeta e relatava o que via.

Um relato da repressão

José Eduardo Agualusa acabava de chegar do Brasil. No seu apartamento de Lisboa, há poucos dias atrás, recebia incessantemente telefonemas com pedidos para falar sobre as eleições angolanas que se realizaram ontem. Ele atendia sempre, porque é preciso sempre falar, afinal grande parte da sua obra é um combate ao silêncio.

Há dois anos e meio que não vai a Angola. Desde “Estação das Chuvas” que as relações entre José Eduardo Agualusa e o poder angolano se tornaram, no mínimo, tensas. Num jornal angolano, após a publicação de “Estação das Chuvas” em 1996, um cronista escreveu qualquer coisa como: “É um traidor à pátria. É traidor logo no nome: Agualusa. É pena que tenham acabado os fuzilamentos.”

Enquanto escrevia “Estação das Chuvas” – era para ele tanto um romance sobre o projecto nacionalista como sobre o que se passou nas prisões angolanas nos primeiros anos de vida de um novo país – sabia que iria ter reacções más, até violentas, mas concentrava-se nas boas: as pessoas que tinham estado presas iriam agradecer-lhe.

Quando os presos políticos foram libertados por José Eduardo dos Santos, depois da morte de Agostinho Neto em 1979, José Eduardo Agualusa estava na universidade em Portugal. Foi, ao longo dos anos, ouvindo os relatos de amigos.

“Conversei com muita gente. Tive uma namorada que estava ligada ao processo do 27 de Maio – o irmão tinha sido morto – e muitos amigos meus, ligados à OCA e aos Nitistas [apoiantes de Nito Alves, considerado o líder da rebelião do 27 de Maio], tinham estado presos”, diz. “Choravam quando contavam as suas histórias. Era tudo muito intenso e eu estava arrebatado por aquelas histórias da prisão. Tornou-se urgente para mim escrever um livro sobre a repressão.”

De facto, depois da publicação de “Estação das Chuvas”, muita gente lhe escrevia para agradecer. Escreviam com grande intimidade. Do Canadá, recebeu uma carta de um homem que pensava que teriam estado presos juntos. No entanto, dizia, não se lembrava  do nome Agualusa nem reconhecia a cara na contra-capa do livro. Será que Agualusa tinha a dada altura usado outro nome? Estava certo de que se teriam cruzado. Reconhecia várias daquelas situações. Lembrava-se até daquele tenente boére e dos seus cursos de astronomia:

“Pintava as constelações no tecto da cela, servindo-se de uma tinta fosforescente que ele próprio criara com o óleo das conservas de peixe russas que nos davam para o almoço. À noite, quando apagavam as luzes, podíamos ver o universo a brilhar por cima de nós.” (p. 241)

As estrelas no céu da prisão Agualusa tinha a certeza de ter inventado. Mas não tinha inventado os restantes cursos na prisão, incluindo alguns dados pela televisão, uma caixa através da qual os presos diziam o telejornal e outros programas.

Nada daquilo José Eduardo Agualusa tinha vivido, nunca tinha estado preso, mas aquela não deixava de ser a sua história. “Precisava de compreender um determinado passado para me compreender a mim”, diz. Ou, como diz Lídia do Carmo Ferreira em “Estação das Chuvas”: “Escrevem porque precisam de saber quem são.” (p. 238)

Um relato da guerra

“Houve, pois, por toda a praça, um brevíssimo instante de assombro. É assim, pelo menos, que imagino a cena (eu não estava lá). (…)

E então a multidão irrompeu aos gritos e numa explosão de júbilo lançou-se para diante, ao mesmo tempo que a cavalaria avançava para proteger a tribuna. Deitada de bruços, na sua cama de quicombo, Lídia Ferreira sentiu que o ar do quarto se enchia de um violento torpel e que de novo a alcançava o abraço do mar”. (p. 20)

Como o narrador de “Estação das Chuvas”, José Eduardo Agualusa não estava em Luanda quando Agostinho Neto subiu a uma tribuna e proclamou a independência. Eram 00h20 de 11 de Novembro de 1975 e ainda nessa madrugada, Lídia do Carmo Ferreira foi presa. Se não tivesse sido presa – como tantos outros nesses anos, ninguém sabe quantos – talvez a história do país tivesse sido diferente.

Como o narrador de “Estação das Chuvas”, José Eduardo Agualusa estava em Luanda em 92, para cobrir as eleições para o Público. Viveu-se uma enorme euforia e de seguida, quando a guerra recomeçou, uma desilusão que se parecia com o desespero.

“Joãoquinzinho fez um gesto largo, mostrando a casa, com as paredes comidas pelas balas. A cidade apodrecendo sem remédio. Os prédios com as entradas devastadas. Os cães a comer os mortos. Os homens a comer os cães (…) Os mutilados de olhar perdido. Os soldados em pânico no meio dos escombros. (…)

Disse:

–      Este país morreu!” (p. 279)

Em Angola, naquela altura, pensava-se até que morria o mundo. “Estação das Chuvas”, diz Agualusa, é um livro marcado por esse “pessimismo”.

A paz em Angola veio. A democracia e o multipartidarismo nem por isso, não como Lídia do Carmo Ferreira gostaria. A poeta provavelmente não vive em Angola: independente há quase quatro décadas, não é ainda o país pelo qual ela lutou. O seu exílio é possivelmente Portugal: uma pequena aldeia, uma quinta isolada, onde cultive rosas e de vez em quando coma as suas pétalas. Vive afastada da voracidade da actualidade, mas hoje talvez tenha comprado o jornal e ligado a televisão para saber notícias das eleições de 2012 em Angola. Ela deixou de lutar há muito, a não ser que ainda se possa considerar, nos tempos cínicos que vivemos no início de século XXI, que a poesia é uma forma de luta.

Ainda hoje, de vez em quando, José Eduardo Agualusa encontra alguém que pensa ter conhecido Lídia do Carmo Ferreira e ter dados sobre o seu padeiro.

José Eduardo Agualusa nunca escreveu o final da biografia de Lídia do Carmo Ferreira porque queria que os leitores continuassem a acreditar que ela existe, que está viva, ainda. Seria como acreditar que algo sobrevive daquele sonho – que agora parece tão idoso quanto os seus sonhadores – de construir países novos, verdadeiramente novos, como se os seres humanos fossem também eles novos, melhores.

Nota: Todas as citações são tiradas da edição da 4ª edição de “Estação das Chuvas”, de 1999, das Publicações Dom Quixote.

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