AM – “A difícil demarcação da terra dos índios mura”

Família de indígenas mura, de Autazes: dificuldade na demarcação. Foto: Bruno Kelly

Por Elaíze Farias

Autazes é um município do Amazonas que tem uma peculiaridade: um bairro indígena em plena zona urbana. Pantaleão, como é chamado, não era para ser um bairro. Mas uma terra indígena reconhecida, demarcada, regularizada e homologada. Antes de Autazes surgir, Pantaleão já existia. Ali vivem e viviam os índios muras e seus ancestrais.

Conheço outra terra indígena no Amazonas localizada próxima da zona urbana, Umariaçu, em Tabatinga, que está em situação bem melhor do que Pantaleão, diga-se, pois há muito tempo (depois de muita luta, com direito a massacre de índios tukano) foi homologada pelo governo federal.

Se fôssemos resgatar a história de Pantaleão e Umariaçu, teríamos que lembrar o histórico de ocupação, de massacre, de saques e roubo dos territórios indígenas pelos invasores. Mas vou me limitar à situação recente dos índios mura de Autazes.

A população de índios mura é uma das mais mencionadas na historiografia amazônica. No senso comum, os mura recebem todo tipo de rótulo, de indolentes a bravos. Mas dentro da etnologia, é uma etnia pouco estudada. E, no mosaico estudos e obras sobre indígenas ameríndios da Amazônia, os mura acabaram se tornando o patinho feio da etnografia.

Muitos antropólogos, sobretudo os que aportam na Amazônia vindos de outras instituições do país, preferem estudar o “índio primitivo”, o “índio de verdade” (como gosta de dizer a mídia), o “índio com cara de índio”, “o índio que não perdeu suas raízes”. Não é à toa que falou-se em Amazônia (ou Amazonas), todo mundo quer ir para o Alto Rio Negro, ou para o sul do Amazonas (sim, é uma provocação de minha parte).

Os mura brigaram por mais de dois séculos, antes de declinar ao poder do colonizador europeu (mas venderam caro a derrota). Enquanto outros povos já haviam desaparecido ou sido subjugados, os mura continuaram com “suas guerrilhas”. Não é fácil derrotar os mura, portanto. [Estou sendo bem resumida neste relato sobre o histórico do mura; apenas para contextualizar um pouquinho o leitor]

Ataques

Nos últimos 40 anos, contudo, os mura que vivem na região de Careiro, Careiro da Várzea e, sobretudo, Autazes, passaram a sofrer toda sorte de ataques contra a regularização de seu território. Não tem sido fácil. Os mura têm que lidar não apenas com os não-muras ou não-indígenas com os quais convivem (os chamados mestiços, os regionais e, principalmente, os pecuaristas, muitos dos quais que ocuparam suas terras irregularmente), mas especialmente contra a letargia, a demora, e por que não, o descaso da Fundação Nacional do Índio (Funai).

A área onde vivem os índios mura está ficando cada vez mais reduzida. Ilhas mesmo. Você pega um rabetinha (canoa com motor) e vai navegando pelo rio. Vê uma terra mura aqui, e ao lado, uma terra ou uma fazenda, um sítio, qualquer coisa assim, de um fazendeiro “branco”. E logo adiante, novamente uma terra ocupada por índios mura. Mas notamos sempre que as fazendas são em extensão muito superior.

E, a cada ano que passa, a cada demora da Funai em desatar esse nó, resulta em redução das terras dos mura. Resulta também em mais hostilidade e em discurso anti-indígenas, a maioria das vezes fruto da desinformação.

É o caso do release divulgado na semana passada pela Secretaria Estadual de Produção Rural do Amazonas (Sepror). No texto, produtores rurais se queixam do fato de a Funai estar “reivindicando” terras “há anos ocupadas pelos produtores”. Sugere o texto que as terras são dos produtores e este direito estaria sendo tirado.

A mobilização dos produtores está sendo tão (bem) articulada (e apoiada pela Sepror, a ponto do órgão ter escrito um release, ou seja, uma nota oficial, em favor dos produtores) que alguns representantes do segmento já encaminharam seus protestos à Procuradoria do Estado. Querem apoio oficial.

No release, a secretária em exercício da Sepror, Tanara Lauschner, dá uma declaração demonstrando a sua total desinformação sobre o processo de demarcação de uma terra indígena: “Nessas localidades são produzidos laticínios e verduras, por exemplo, e algumas dessas propriedades são inclusive financiadas com recursos do Governo Federal”.

O release cita nove comunidades que estariam sendo alvo “da reivindicação” (as aspas são minhas): Nova Aliança, Jacaré, Purupuru, Miriti, Jatuarana, Cicoima, Mutuca, Paraná do Jenipapo e Cumá. Não vou entrar no mérito da situação fundiária destas terras, mas seria bom esclarecer que, independente do interesse meramente econômico (Tanara diz que as “áreas são de suma importância para o Estado, pois já que há produções agrícolas”), a população de índios mura habita o local antes mesmo dos produtores agrícolas chegarem na região.

Não foram poucos os conflitos entre índios e não-índios em Autazes (antes mesmo desta virar cidade) e Careiro (há também mura em Borba, Itacoatiara e Manacapuru). Décadas atrás, houve quase uma guerra, na qual os índios queimaram um rebanho dos fazendeiros em represália contra a invasão de suas terras.

Conflito

Em 2010 estive em Autazes para fazer uma matéria sobre este conflito. Na época estava ocorrendo uma verdadeira campanha anti-mura nos meios de comunicação daquele município e de Manaus. Soube depois que esse ataque começou quando uma antropóloga da Funai apareceu por lá para iniciar (novamente) estudos de campo para futura demarcação e esta presença despertou a desconfiança e a ira dos produtores rurais e dos pecuaristas. E, por consequência, de toda a população da cidade. Ouvi relatos de que essa antropóloga chegou a ser ameaçada por fazendeiros.

Lembro bem que recebia releases quase diariamente falando “dos riscos que a demarcação das terras poderia trazer para a economia da cidade e do Estado”. Sem falar nas entrevistas dos representantes dos produtores rurais. Curioso é que nenhum índio, uma liderança sequer, era ouvida.

Foi quando o jornal bancou a nossa ida (minha e do fotógrafo Bruno Kelly) ao local para ver o que realmente estava acontecendo. Conversei com indígenas de Pantaleão, falei com lideranças que nasceram antes de Autazes existir, fui em algumas comunidades.

Curioso é que quase não tive contato com os representantes da oposição à demarcação. Tive dificuldades de encontrá-los. Fui na prefeitura, e não encontrei o prefeito. Na Câmara, a mesma coisa. Consegui falar apenas com um vereador, presidente da Câmara na época, que foi o mesmo que articulou a realização de uma “audiência pública” para discutir o que ele chamava de “legalidade” da demarcação. O vereador apareceu quase meia-noite no hotel onde eu estava, para “falar com a repórter”. Claro que eu o ouvi e seu posicionamento foi publicado na reportagem.

Retornando a Manaus, entrei em contato com a Funai (a coordenação regional me orientou procurar a presidência, em Brasília). Depois de muito insistir, consegui falar com a Leila Sotto-Maior, na época responsável (não sei se ainda é) por esse processo de demarcação. Era setembro de 2010. Ela me disse que tudo estaria finalizado até novembro daquele ano. Depois, nova data: ao longo de 2011. E, pelo visto, nada avançou.

Alguma coisa está acontecendo lá por Autazes. Alguma “movimentação” (como os índios dizem) da Funai. Se sim, nada foi divulgado. Independente disto, os produtores que não são bobos nem nada, já estão se articulando. E, até o momento, só eles têm tido voz. A Funai, até o momento, não se manifestou.

Acredito que é preciso iniciar um diálogo sim, entre todos os envolvidos, para quem nem produtores rurais nem população mura saia prejudicada. Mas que todos sejam ouvidos. E não apenas um lado.

Publicado originalmente no blog da Autora (http://acritica.uol.com.br/blogs/blog_da_elaize_farias/dificil-demarcacao-terra-indios-mura_7_781791816.html).

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