Comissão da Verdade só colheu dois depoimentos formais de agentes da repressão

A Comissão Nacional da Verdade ouviu até agora apenas dois agentes do aparato de repressão da ditadura civil militar. O número foi divulgado por Claudio Fonteles (foto), ex-procurador geral da República e um dos sete integrantes da comissão, durante audiência pública no Rio de Janeiro. Os ouvidos até aqui foram o médico legisla Harry Chibata e Claudio Guerra, ex-agente do Dops e autor do livro “Memórias de uma Guerra Suja”

Rodrigo Otávio

Rio de Janeiro – Instalada em maio e com prazo inicial de duração de dois anos, a Comissão Nacional da Verdade ouviu até agora apenas dois agentes do aparato de repressão da ditadura civil militar que durou de 1964 até 1985 no país. O número foi divulgado por Claudio Fonteles, ex-procurador geral da República e um dos sete integrantes da comissão, durante audiência pública realizada na terça-feira (26), no Rio de Janeiro.

“Nós tivemos na verdade dois depoimentos formais, em que as pessoas pediram confidencialidade. Um de Harry Chibata (médico legista), que é um zero absoluto, veio com aquele velho papo ‘cumpria ordens e um perito não faz juízo de valor…’; e de Claudio Guerra (ex-agente do Dops e autor do livro Memórias de uma Guerra Suja), esse realmente abre algumas pistas”, afirmou ele. “Ninguém mais do sistema repressivo e seus agentes se dispôs a falar conosco até agora, o que nós dá uma linha de convocação”, completou.

“Para eu convocar, eu preciso ter base documental forte, é onde nós estamos trabalhando”, continuou Fonteles, revelando o principal obstáculo desse início de investigações da comissão. “Precisamos de toda a documentação para, aí sim, fazer uma inquisição ampla, de maneira que se alguém vier com uma negativa, ou uma evasiva, eu possa ter o documento e mostrar”.

Na busca de dados documentais consistentes Fonteles citou duas linhas de ação tomadas pela comissão. Uma é a atividade em conjunto com o Arquivo Nacional. “Estou lá trabalhando semanalmente. Descobrimos agora um documento que faz ruir por terra a versão da morte do padre Antônio Henrique (assessor de Dom Hélder Câmara) em Pernambuco. Foi uma situação montada com a atribuição a toxicômanos, mas na verdade foram elementos da extrema direita, inclusive com envolvimento da polícia civil”, diz ele, exemplificando um caso que terá reviravoltas a partir da Comissão da Verdade.

A outra frente é a que o ex-procurador considera uma vitória, ainda que parcial, da comissão. “Assumimos deliberação unânime mostrando que é equivocada a concepção do estado brasileiro que reconheceu ter agido legalmente as corporações militares em eliminar documentos e as atas de registro de eliminação desses documentos. Dissemos que isto é ilegal”, afirmou ele sobre a queima de arquivos militares minimizada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva através de ata do ministério da Defesa.

Se a condenação dos expedientes usados pelos militares se configura como uma restauração louvável, não garante o principal, a volta dos documentos, fazendo a Comissão da Verdade em particular e a sociedade em geral reféns de mais um trâmite burocrático, e quiçá jurídico, na busca da verdade histórica. “Encaminhamos um ofício-estudo ao ministério da Defesa mostrando as razões pelas quais consideramos ilegal essa conduta. Esperamos que eles nos remetam a sua posição e aí avaliaremos os caminhos a seguir”, disse Claudio Fonteles.

No Arquivo Nacional, segundo Jaime Antunes, diretor-geral do órgão, e a partir da recente Lei de Acesso à Informação (LAI), a cooperação com a comissão será irrestrita, e tentará recuperar muitos dos documentos militares. De acordo com Antunes, desde que o Arquivo Nacional começou as pesquisas para recolher documentos militares e correlatos, em 2003, foram identificados cerca de 260 órgãos de arapongagem. Desses, 45 de fato tiveram seus papéis transferidos ao Arquivo Nacional, com muitas estatais e ministérios ficando de fora da catalogação.

“A proposta do Arquivo Nacional é realizarmos agora em outubro um encontro em Brasília com todos os chefes de arquivos de ministérios que integram o Sistema de Gestão de Documento de Arquivo da administração pública, no sentido de mostrar a essas pessoas como é que elas podem inquerir o acervo para poder identificar essas massas documentais”, revelou ele durante a audiência, antecipando ser um dos objetivos traçar o começo de uma trilha que leve a documentos de órgãos como o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) ou o CIE (Centro de Inteligência do Exército).

Sociedade civil e MP
Durante a audiência na Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro, diversos membros de entidades da sociedade civil e vítimas de torturas da ditadura militar voltaram a cobrar um maior diálogo com a Comissão da Verdade. As principais demandas são a não limitação das atividades da comissão a dois anos, a divulgação dos nomes dos depoentes na comissão e um roteiro para se acompanhar os passos do Ministério Público a partir das conclusões da comissão.

Aurélio Rios, procurador federal dos Direitos do Cidadão, diz que o MP não está engessado em um prazo de 24 meses para investigações, mas sim ao conteúdo. “Nós não temos esse limite de dois anos. Depois vamos continuar investigando, pode demorar cinco, dez anos, mas continuaremos investigando. Agora, sobre o quê eu ainda não sei. Será sobre o que tiver sido apurado, porque é difícil a gente imaginar quantos documentos serão lidos, serão processados, e quantas informações serão relevantes para uma investigação mais consistente”.

Para ele, o momento é de concentração nas investigações. “O importante para a gente é saber a verdade, identificar os fatos, tentar identificar onde estão as ossadas, o que aconteceu com essas pessoas, quais foram as circunstâncias da morte e do desaparecimento delas, e aí então tomar as providências necessárias. Quais serão? Não sei, vai depender exatamente do que for investigado”.

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