Entre perdas sociais e ‘necessidades estratégicas’

Foto: Justiça nos trilhos

Julianna Malerba*  

Lívia Duarte**

A frequente comemoração do mercado e do Governo a respeito do aumento da participação da mineração nas exportações e na constituição do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil não é capaz de esconder que o avanço deste mercado resulta no aumento de conflitos socioambientais nos territórios. Para se ter ideia do futuro do setor no país, basta dizer que o Plano Nacional de Mineração prevê investimentos de R$ 350 bilhões até 2030. Seguindo as práticas atuais, não é falso dizer, portanto, que os conflitos socioambientais tendem a se acirrar ainda mais com a expansão da atividade.  Esta é parte do contexto em que surge o debate sobre um novo marco legal que substitua o Código Mineral utilizado hoje.

O referido marco em debate no governo ainda não foi apresentado publicamente pelo Ministério de Minas e Energia. No entanto, baseados em declarações vindas deste e outros ministérios e em documentos como o Plano de Mineração é possível depreender os sentidos da nova lei. Cremos que entre seus objetivos centrais estão aumentar a participação do Estado nos resultados econômicos da mineração e construir mecanismos que garantam a expansão da produção mineral que, nos últimos 10 anos, já alcançou patamares recordes. 

Nada indica mudanças na tradição de distribuição excludente dos lucros e dos impactos negativos da atividade nos territórios. Apesar de também prever um aumento na participação do Estado nos resultados econômicos através da ampliação das alíquotas da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (as royalties da mineração), o novo código, infelizmente, não deve considerar as perdas sociais e econômicas produzidas pela atividade mineral, naturalizando a ‘necessidade estratégica’ que justifica os atuais (e futuros) investimentos públicos e privados no setor.

Não se trata apenas da ausência de mecanismos que garantam critérios e transparência para o uso dos royalties. A construção de um novo marco regulatório abarcará a exploração mineral em terras indígenas e a possível criação de Áreas de Relevante Interesse Mineral sob as quais se estabeleceriam garantias para a realização de atividades mineradoras. Apesar da relevância do tema e dos impactos diretos sobre as comunidades, discussões sobre a lei vêm sendo realizadas pelo governo sem diálogo com a sociedade, embora o setor produtivo tenha participado de algumas reuniões a respeito com o MME, segundo declarações do próprio ministro Edison Lobão.

O tema fez parte das discussões no seminário ‘Novo marco legal da mineração no Brasil’, realizado em Brasília nos dias 10 a 12 de setembro e, para os participantes, a regulamentação da mineração em terras indígenas por fora do debate do Estatuto das Sociedades Indígenas mostra que com o novo código se pretende ampliar o avanço da atividade sobre áreas até então protegidas.

Para as organizações da sociedade civil e movimentos sociais que vivem em áreas afetadas pela exploração mineral presentes no Seminário, tudo leva a crer que o novo marco carece de mecanismos que possibilitem à sociedade discutir a naturalização dessa expansão e as consequências negativas do seu aprofundamento. Parece faltar na proposta em debate no Executivo mecanismos de regulação garantindo a participação efetiva dos grupos diretamente afetados, o que inclui a definição sobre a necessidade dos empreendimentos em seus territórios.

A regulamentação da exploração mineral em terras indígenas sem que seja assegurado aos índios o direito de consentimento e veto tende a aprofundar as ameaças aos seus direitos culturais, econômicos e sociais. Sobretudo diante da atual conjuntura de flexibilização da normativa ambiental (a exemplo da redução de áreas de preservação para construção de hidrelétricas) e de questionamento a direitos adquiridos, como no recente Decreto 303 da AGU, que impõe restrições aos direitos constitucionais dos povos indígenas vedando a ampliação das terras indígenas já demarcadas.

Vale destacar que não são apenas as populações que vivem no entorno das minas e das infraestruturas correlatas as afetadas negativamente pela expansão das atividades minerárias, ainda que sobre elas recaia, muitas vezes, um impacto desproporcional em relação ao conjunto da sociedade. A ameaça de escassez no abastecimento de água nas cidades e a expansão de usinas hidrelétricas, como Belo Monte, na Amazônia, também estão diretamente relacionadas à mineração. Os minerodutos transportam minérios sob pressão de água. Só em Minas Gerais há três minerodutos que escoam minérios até os portos do sudeste. Está prevista a construção de outros quatro. Juntos, eles deverão consumir a 8 milhões de m³ de água por mês, quase a metade do consumo de Belo Horizonte. Outro exemplo é o alto gasto de energia. A Albrás, indústria responsável pela transformação da bauxita em alumínio, para produzir 432 mil toneladas de alumínio consumiu a mesma quantidade de energia elétrica das duas maiores cidades da Amazônia, Belém e Manaus. Ela sozinha responde por 1,5% do consumo de eletricidade do Brasil com seus quase 200 milhões de habitantes.

O que não se discute com a sociedade é que a maior parte da produção mineral brasileira é exportada sob a forma de produtos primários para atender a política econômica de gerar superávit primário e equilibrar as balanças de pagamento em função do aumento da dívida pública do país nos últimos anos. Ao nos manter dependentes da exportação de recursos, essa estratégia reduz as possibilidades de vincular a extração de minérios a cadeias econômicas nacionais e regionais, e garantir, assim, processos de desenvolvimento mais endógenos e comprometidos com a manutenção de dinâmicas socioprodutivas locais.

Não é difícil, portanto, ver a importância estratégica deste debate na sociedade. O ponto de partida, entretanto, não deveria ser dado por um discurso naturalizador da necessidade estratégica de se intensificar a produção mineral do país. Ele deve partir de uma análise que inclua amplos setores da sociedade sobre os fins que orientam a produção mineral brasileira.

Uma parte das análises realizadas durante o Seminário ‘Novo marco legal da mineração no Brasil’ também estão presentes no estudo Novo marco legal da mineração no Brasil: para quê? Para quem? recentemente lançado pela FASE. O trabalho foi organizado pelo núcleo Justiça Ambiental e Direitos e traz artigos de Bruno Milanez, professor da UFJF e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e Luiz Jardim Moraes Wanderley, mestre em Geografia pela UFRJ.

*Coordenadora do Núcleo Justiça Ambiental e Direitos da FASE

**Jornalista da FASE

http://www.fase.org.br/v2/pagina.php?id=3768

Enviada por Leticia Rangel Tura para a lista Justiça Ambiental.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.