Quilombo Maria Rosa, racismo e políticas públicas

Por Bruna Romão da Agência USP de Notícias

A titulação que constitucionalmente atribui a remanescentes de quilombos a propriedade e uso de suas terras representa, para moradores da comunidade quilombola Maria Rosa (Iporanga / Vale do Ribeira), uma importante conquista, tendo lhes possibilitado permanecer nas terras que suas famílias tradicionalmente habitam há 300 anos. Apesar disso, essa política pública não é acompanhada de instrumentos que auxiliem os maria rosenses a construir um discurso coletivo potente contra a ideologia racista presente na sociedade brasileira.

A psicóloga Eliane Silvia Costa observou esses dados ao longo de quatro anos de visitas e entrevistas com habitantes do quilombo, as quais foram base para a tese Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira. O trabalho, defendido no Instituto de Psicologia (IP) da USP sob orientação da professora Ianni Regia Scarcelli, teve por objetivo identificar possíveis relações entre a identidade racial dos quilombolas e a política de titulação de terras.

A identidade racial e o racismo institucional

No estudo, a psicóloga detectou como a comunidade lida com a identidade racial negra, cuja representação no Brasil é permeada pelo “racismo institucional” que, reproduzido histórica e cotidianamente, coloca o negro em uma posição de inferioridade político-social. São estratégias de discriminação e opressão impressas na estrutura social, que agem sobre todos os brasileiros independentemente da intenção explícita de uma ou outra pessoa. “É propagado em ações político-institucionais que primam pelos interesses e privilégios materiais e simbólicos do grupo racialmente dominante”, explica Eliane.

No quilombo Maria Rosa, esse racismo institucional é refletido pela pobreza notória marcada pela falta de recursos estruturais como estrada, escolas e casas de boa qualidade, luz para todos e trabalho assegurado. “Sobretudo, falta uma política pública articulada entre os diferentes níveis governamentais e voltada para a temática racial que lhes dê o devido apoio”, completa Eliane. Uma política pública que levasse em conta este elemento ajudaria os quilombolas a lutar contra a ideologia racista.

O recebimento do título jurídico de “quilombo”, relata a psicóloga, até convocou a comunidade a pensar sobre sua identidade racial e a assumir formalmente a ascendência negra escrava, mas ainda falta auxílio para o fortalecimento psíquico e social dos moradores a respeito de sua negritude. “Reconhecer politicamente não significa necessariamente se apropriar de forma consistente desse lugar, do ponto de vista subjetivo. Entre o âmbito jurídico e o individual-grupal há lacunas”, explica.

A ausência de um elemento que lhes apoie e de um discurso coletivo não significa, porém, que os habitantes do quilombo Maria Rosa não estejam atentos às desigualdades que vivem e aos caminhos para enfrentá-las. Seu laço com o local onde vivem e realizam seus ritos e práticas referentes à vida comunitária é o que lhes dá, neste contexto, o suporte para enfrentarem e tentarem transformar o traumatismo das marcas cotidianas deixadas pelo escravismo e ligadas ao racismo institucional.

Entre os maria rosenses, os sentidos atribuídos à identidade racial variam de acordo com suas histórias e referências familiares, e o modo como processam as marcas das estratégias de dominação. Há grande multiplicidade nos significados dados por eles a palavras indicativas de raça ou cor. Por exemplo, ao mesmo tempo em que uns se autoproclamam pretos, outros rejeitam a palavra por acreditarem estar ligada a objetos, não a pessoas. Para estes, o correto é o uso de “negro”. Outros, fazendo uma releitura da lei que criminaliza o racismo, têm medo de, ao falar “preto” ou “negro”, causarem constrangimento a outros e serem presos. “Branco” pode ser o inimigo opressor ou, por outro lado, alguém a quem se ama.

A palavra “moreno” também é polissêmica: podendo indicar tanto negação da negritude, quanto sinônimo humanidade, intermediação entre o claro e o escuro referir-se aos “não-brancos” em geral. Há ainda alguns que temem usar os termos negro ou preto e, ao assumir essa negritude, serem escravizados. Segundo a psicóloga, as palavras usadas ou silenciadas para definir para o forasteiro sua condição racial funcionam como uma manobra dos quilombolas frente à humilhação e violência impostas histórica e cotidianamente, contendo-a.

O recebimento do titulo

O medo da escravização também esteve presente quando os habitantes do bairro Maria Rosa decidiram solicitar o título de quilombo à Fundação Instituto de Terras de São Paulo (ITESP), responsável pela titulação em São Paulo. “Quilombo era visto pelos maria rosenses como alguma forma de extensão do escravismo”, explica a psicóloga. De acordo com ela, isto é reflexo do silenciamento quanto ao passado escravista do Brasil.

A decisão foi tomada para que pudessem continuar naquele território, de onde vinham sendo convocados a se retirar desde a década de 1960, por pressão governamental e ambientalista, por intermédio de leis ambientais que os proíbem de realizar sua atividade de subsistência mais tradicional, a roça de coivara – plantio caracterizado pela derrubada de matas nativas e queima de vegetação. Houve também a remarcação do Parque Estadual Intervales, que se apropriou de parte do território da comunidade, que foi recuperada com a titulação.

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