O ex-Procurador Geral da República, Claudio Fonteles, fala sobre o trabalho da Comissão Nacional da Verdade e reforça a importância da mobilização social para uma real superação dos desafios postos. Entre eles, destaca a criação de uma cultura que nunca mais admita o Estado ditatorial e que repense o papel das Forças Armadas. “O fundamental é criarmos uma rede de cidadania de sorte que não só a nossa geração, mas a geração dos meus filhos, dos meus netos, dos meus bisnetos, dos bisnetos dos meus bisnetos”
Vinicius Mansur
Brasília – Cético, mas entusiasmado. Estes dois adjetivos aparentemente paradoxais se misturam quando Cláudio Fonteles analisa a missão da Comissão Nacional da Verdade (CNV), da qual é um dos sete membros. “A CNV em si, por si, sozinha, não vai a lugar nenhum, não vai fazer absolutamente nada, o resultado será zero”, introduz o assunto o primeiro procurador-geral da República nomeado pelo governo Lula, agora aposentado pelo Ministério Público.
O ceticismo é, em parte, prudência diante do enorme desafio posto à CNV e de reconhecimento de seus limites legais. Mas também é uma provocação. “O fundamental é criarmos uma rede de cidadania de sorte que não só a nossa geração, mas a geração dos meus filhos, dos meus netos, dos meus bisnetos, dos bisnetos dos meus bisnetos, ou seja, que crie-se no Brasil uma cultura, que seja internalizada, de nunca mais admitirmos isso”, vislumbra.
O discurso de Fonteles é um apelo à mobilização social. “Caixa de ressonância”, “grande voz dos segmentos sociais”, “motor propulsor”, “rede com capilaridade nacional” são adjetivos recorrentemente projetados por ele à CNV. Diante de uma comissão legalmente circunscrita à narração da violência do estado ditatorial brasileiro e à proposição de recomendações para enterrar-lo, Fonteles sabe que a força vinda de fora da CNV é quem determinará a legitimidade das proposições de seu colegiado e a profundidade com que serão incorporadas política, administrativa e juridicamente pelo Estado. Da mesma forma, reside nesta força a capacidade de mudança em um âmbito tão enfatizado pelo ex-procurador-geral: na cultura,na memória, na consciência histórica da sociedade brasileira. “Se nós conseguirmos fazer algo semelhante com o que os judeus fazem com o holocausto, ganhamos”, idealiza.
Para tanto, a CNV vem realizando audiências públicas em diferentes partes do país, reunindo-se com os mais diversos atores para criação de canais de diálogo direto e motivando a criação de comissões ou comitês locais sobre a temática. Exceto Rondônia e Roraima, todos os estados já criaram uma ou mais instâncias desse tipo.
Para ampliar a divulgação e garantir a memória da própria comissão, Fonteles planeja propor à EBC, órgão público de comunicação, a documentação das atividades do colegiado e a produção e veiculação de programas sobre a temática. A inspiração veio do “Diário da Constituinte”, programa de TV, com áudio também utilizado pelas rádios, produzido pela Radiobrás – o “embrião” da atual EBC. O programa foi criado por decisão da Assembleia Nacional Constituinte, com intuito de ampliar o debate sobre a nova Constituição e foi veiculado entre 1987 e 1988. Com duração de 5 minutos cada, os programas foram transmitidos pelas emissoras entre 12:00 e 14:00h e 19:00 e 22:00h.
Fantasmas atuantes
Dentro da comissão, Claudio Fonteles afirma haver bastante harmonia de trabalho. Porém, elenca algumas adversidades fora dela. Em primeiro, destaca que a tradição do desrespeito às urnas ainda é um fantasma paira sobre o continente, vide as recentes derrubadas dos presidentes do Paraguai e de Honduras e as tentativas de golpe na Venezuela, Bolívia e Equador.
Apesar de viver situação diferenciada, o Brasil não está imune aos “saudosistas” ou protetores do regime militar. A título de ilustração, o membro da CNV lista episódios recentes e um outro nem tanto. Regressa a 1992, quando era consultor jurídico do Ministério da Justiça – cargo ocupado apenas por restringir-se a uma função técnica e porque o então ministro, Célio Borja, havia manifestado seu compromisso de impedir a volta dos militares, faz questão de frisar – e relata uma conversa telefônica presenciada por ele, mas até então não divulgada:
“Um dia, com os cara-pintada [do movimento Fora Collor] lá embaixo do ministério, eu estava despachando com o ministro, no final da noite. Toca o telefone e a secretária diz: ‘é o ministro do Exército’. Me levantei para sair e ele disse: ‘senta, senta’. A ligação foi transferida e ele respondeu: ‘pois não… pois não… pois não’. Disse três ‘pois não’ e respondeu: ‘agora eu digo-lhe o seguinte, ministro. O árbitro sobre se periclita ou não as instituições democráticas de um país é o senhor presidente da República. Digo-lhe mais, o excelentíssimo presidente da República ao fazer esse juízo se louva exclusivamente, repito-lhe, exclusivamente, numa avaliação do quadro que é feita pelo ministro da Justiça, que sou eu. O Senhor quer mais alguma coisa?’ e desligou o telefone. Pois esse homem enquadrou o ministro do Exército. Se esse homem fraqueja eu não sei o que teria acontecido”, revelou.
Entre os episódios recentes, Fonteles cita a declaração do ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, que considerou juridicamente correta a destruição, pelas Forças Armadas, não só de documentos sigilosos, mas também das atas que descrevem o seu teor. Ao solicitar ao Ministério da Defesa, em junho deste ano, documentos referentes ao período de 1946 e 1988, a CNV recebeu como resposta o Aviso 195, expedido por Jobim à Casa Civil em 2010. Nele consta que os militares destruíram os arquivos do período com base na legislação da época. No momento, a comissão se encontra em tratativas com o ministério, agora chefiado por Celso Amorim, para averiguar se de fato não há mais documentos, hipótese que Fonteles acha improvável. No limite, a CNV quer ter acesso aos Termos de Destruição, registro previsto pela legislação da ditadura, que deve conter as assinaturas do responsável pelo ato e de duas testemunhas.
Outro obstáculo está na Polícia Federal, que há três anos criou um núcleo exclusivamente para estudar as ossadas que possam vir a ser ou não de guerrilheiros, mas até o momento não emitiu qualquer parecer à CNV. “O ministro [da Justiça] falou que vai mandar o pessoal da perícia conversar conosco”, informou Fonteles.
A lista de episódios “fantasmagóricos” poderia ser acrescida por organizações sociais com as intimidações sofridas pelo Levante da Juventude – organização que realizou atos contra torturadores da ditadura – e a invasão da sede do grupo Tortura Nunca Mais.
Trabalho
Por sua experiência profissional, Fonteles disse que seu trabalho na comissão está mais voltado para a investigação que resultará no Relatório Circunstanciado, motivo que o leva a frequentar o Arquivo Público ao menos uma vez por semana em busca de registros que caracterizem “as mazelas, barbaridades e o horrível mal que significou o estado ditatorial brasileiro”. “Hoje mesmo vi coisas interessantes, de linha de pensamento, que utilizam a palavra ‘aniquilar’, ‘exterminar’, por exemplo, no caso da Guerrilha do Araguaia” conta.
Por força de lei, destaca Fonteles, a CNV deve apurar os casos daqueles que, por suas atividades políticas, tiveram seus direitos violados por agentes públicos do Estado brasileiro. Por este motivo, ele afirma que casos de violência policial sem conotação política direta ou enfrentamentos com indígenas, quando da construção da Transamazônica, por exemplo, não devem entrar no escopo do trabalho. De outra sorte é o caso da etnia Suruí, que já tem seu caso sob investigação, pois há fortes indícios de que os militares dominaram seu território no sul do Pará para combater a Guerrilha do Araguaia.
As forças da sociedade civil diretamente vinculadas à ditadura terão um capítulo exclusivo no relatório, diz Fonteles. “Há um documento interessantíssimo mostrando militares na Fiesp”, exemplifica.
A investigação é espinhosa e trabalhosa, demandando muito cuidado, relata o ex-procurador-geral, para não adentrar no sofrimento de famílias que já não desejam saber de seus entes perdidos ou para não cair em denúncias-blefe. Uma demanda muito recebida pela comissão são pedidos para rever decisões da Comissão da Anistia. “Isso não nos cabe”, esclarece.
O passo final da CNV será definir uma lista de recomendações com o fim de “prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional”, diz a lei. Fonteles almeja recomendações com aplicação concreta, mas não cita ainda nada específico, se restringe a dizer que é importante trabalhar a ideia de que ninguém é contra a missão verdadeira das Forças Armadas. “Temos que começar a trabalhar uma visão de Exército, uma visão de Aeronáutica, uma visão de Marinha, uma visão de Polícia. Temos que pegar toda a base e propor”, conclui.
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