Fawzia Koof: “O Talibã tentou me matar várias vezes”

Primeira mulher eleita para o Parlamento afegão, ela conta como escapou da morte e diz por que é candidata à Presidência

por Rachel Costa, ISTOÉ

Desde o nascimento, a afegã Fawzia Koofi, 36 anos, protagoniza grandes batalhas para sobreviver em meio a uma sociedade extremamente conservadora e machista. Décima nona filha de um casamento poligâmico, em que sua mãe precisava dividir a atenção do marido com outras seis mulheres, Fawzia foi deixada no sol para morrer logo após o nascimento. A razão: meninas não eram bem-vindas dentro das famílias afegãs – representavam apenas um peso a mais para seus pais. Por isso a própria mãe abandonou-a no sol, sobre uma pedra, temerosa de que a filha pudesse vivenciar todas as agruras que ela bem conhecia.

Fawzia, todavia, não morreu. Cresceu, foi a primeira mulher da família a ir à escola, mudou-se para a capital Cabul, estudou inglês e aprendeu que, lá fora, em outros países, mulheres como ela possuíam direitos e podiam lutar livremente por eles. Essa se tornou, então, a bandeira de Fawzia. Em 2005 foi eleita para o Parlamento afegão, no primeiro pleito após 33 anos, tornando-se a primeira mulher parlamentar do país. A luta de Fawzia, porém, não chegou ao fim. O próximo desafio da líder afegã, constantemente ameaçada de morte pelos radicais talibãs, serão as eleições presidenciais, marcadas para 2014. Nesta semana Fawzia estará, pela primeira vez, no Brasil, onde contará sua história de luta e superação no “Fórum Mulheres Reais que Inspiram”. Leia entrevista.

ISTOÉ – Por que a sra. decidiu se candidatar à Presidência?

FAWZIA KOOF – As forças que controlaram o Afeganistão nas últimas décadas estavam destruindo o País e matando pessoas inocentes. Decidi concorrer porque a população afegã precisa de novos rostos figurando no cenário político do país para dar continuidade às alterações que vêm acontecendo nos últimos anos. Os antigos representantes não vão querer fazer as mudanças necessárias nem chamar a população para participar. Para eles, o melhor é que continuemos em silêncio.

ISTOÉ – É possível uma mulher ser presidente em um país como o Afeganistão?

FAWZIA KOOF – Estou em um país extremamente tradicional, onde os direitos femininos são sistematicamente violados e as mulheres foram mantidas longe da política por muito tempo e submetidas a formas de violência diversas. Estamos, porém, em um momento de abertura e de mudanças. Estou preparada para entender essas novas demandas e transformá-las em mudanças efetivas na vida das pessoas.

ISTOÉ – O Talibã tem planejado voltar à cena política afegã. Esse retorno representa um risco? 

FAWZIA KOOF – Sim, principalmente aos direitos de nós, mulheres. Quando eles estavam no poder as meninas não podiam ir à escola, não podiam ir ao médico desacompanhadas, e, se um homem acusasse uma mulher de algo, o Talibã automaticamente se posicionaria a favor dele e contra a mulher. Caso eles voltem ao poder, irão querer que as mulheres retornem para o lar e desocupem os espaços políticos que conquistamos nos últimos anos. Além disso, teremos um retrocesso nas conquistas democráticas. Após o afastamento dos talibãs do poder, conseguimos reinstaurar as eleições e promover nossa nova carta constituinte, ambos processos embasados em preceitos democráticos. Todas essas conquistas dos últimos dez anos serão perdidas, caso eles retornem.

ISTOÉ – Acha possível ter algum diálogo político com os talibãs?  

FAWZIA KOOF – Os Estados Unidos têm tentado essa estratégia: negociar o fim do conflito com os talibãs no Catar (país próximo, mas que não faz fronteira com o Afeganistão). Não sei, porém, qual será a eficiência dessas conversações, pois o Talibã não abandonou as ações violentas desde que foi afastado do poder. Eles seguem promovendo atentados em Cabul e matando pessoas inocentes, crianças e mulheres que nada têm a ver com o conflito. O que precisamos é acabar com o poder do Talibã de agregação de novos membros à organização. Hoje eles ainda conseguem convencer novas pessoas a integrar o grupo. Isso precisa acabar.

ISTOÉ – Os talibãs tentaram assassiná-la. Como foram as tentativas? 

FAWZIA KOOF – O Talibã tenta, sempre, calar a voz das mulheres e uma forma que eles têm para conseguir isso é por meio da execução das líderes que tentem fazer valer suas ideias. Eles já tentaram me matar várias vezes, com duas tentativas mais graves. Em uma, houve confronto entre meus soldados e os talibãs. Na outra, eles tentaram me matar no meu comitê de campanha. Esses foram os casos mais sérios, mas é comum eu receber cartas a cada dois meses do departamento de segurança me alertando sobre a possibilidade de atentados contra mim.

ISTOÉ – Com tantos riscos, por que não deixa o Afeganistão? 

FAWZIA KOOF – Minha vida é no Afeganistão. É mais que uma escolha. Se eu for para a Europa ou para algum outro país estrangeiro, estarei mais segura, mas estarei distante do que está acontecendo com as mulheres e com as crianças que estão aqui, e que são por quem eu batalho. Meu objetivo não é falar sobre a situação da mulher no Afeganistão, é mudar essa realidade. Por isso eu permaneço, apesar dos riscos.

ISTOÉ – Tem medo de novos atentados?

FAWZIA KOOF – Eles podem acontecer.

ISTOÉ – O que considera suas maiores conquistas no Parlamento afegão? 

FAWZIA KOOF – Pude levar a discussão dos direitos da mulher para o parlamento e conseguimos vários progressos para a população feminina do país. Há agora programas educacionais e de saúde voltados para mulheres e elas ocupam postos de trabalho, estão se inserindo economicamente na sociedade. Além disso, temos buscado melhorar as condições de vida das afegãs presas e promover alterações nas leis que discriminam e oprimem as mulheres.

ISTOÉ – O Afeganistão é um país onde historicamente meninas são desvalorizadas socialmente. Isso está mudando? 

FAWZIA KOOF – Sim. Não apenas na capital Cabul, mas em todo o país as mulheres afegãs estão começando a ter e a exercer seus direitos e a ser mais valorizadas na sociedade. Mas, claro, esse processo não está finalizado e ainda temos muitos desafios. Estarmos no poder é fundamental para a conquista de nossos direitos. Somos nós, mulheres, que estamos trazendo nossas demandas.

ISTOÉ – Quais desafios destacaria? 

FAWZIA KOOF – Precisamos tornar a representação feminina mais forte, porque ainda há uma grande oposição dentro do país às políticas voltadas a conceder maior liberdade às mulheres. As ativistas mulheres também precisam ter mais segurança para fazer seu trabalho. Além disso, há muito que ser feito para reduzir a violência contra mulheres e crianças e para garantir a inserção feminina no mercado de trabalho.

ISTOÉ – O Afeganistão ocupa o topo dos rankings mundiais de corrupção e tem problemas graves de infraestrutura, segurança, saúde e educação. Como se tornar um país moderno?  

FAWZIA KOOF – Penso ser perfeitamente possível. Economicamente, temos recursos naturais e estamos em uma localização geograficamente favorável, em uma posição de ligação entre o Oriente Médio e a Ásia. Nosso potencial minerador, por exemplo, é grande, mas atualmente não temos o devido retorno financeiro por causa da corrupção comum à mineração em nosso país. Socialmente, também estamos em uma fase de mudanças e cada vez mais o povo afegão é capaz de perceber a importância da democracia e da defesa dos direitos das mulheres.

ISTOÉ – A sra. foi a primeira mulher da sua família a estudar. Como isso influenciou sua formação?

FAWZIA KOOF – Estudar mudou completamente a minha vida. A escola me possibilitou acessar a política e conhecer as questões sociais. Foi por estudar que consegui ser a primeira mulher da minha família a entrar para o mundo político. Venho de uma família de tradição política, mas, antes de mim, todos que possuíam esse envolvimento eram homens.

ISTOÉ – Embora tenha iniciado o curso de medicina, a sra. não o concluiu. Por quê? 

FAWZIA KOOF – Estive na faculdade de medicina durante alguns anos, mas não pude completar o curso por causa da perseguição do regime talibã às mulheres, que nos obrigou a parar de estudar. Só mais tarde voltei à universidade e me formei em direito e ciências sociais.

ISTOÉ – E por que decidiu tentar uma cadeira no Parlamento?

FAWZIA KOOF – Como disse, a política era algo presente em minha família. Meus pais e meus irmãos, durante a guerra, sempre estiveram envolvidos em ações políticas. Quando eu percebi, com a retirada do Talibã do poder, que teria uma oportunidade para ser uma mulher dentro do sistema político, resolvi tentar.

ISTOÉ – Seu pai foi uma inspiração para seguir a carreira política? 

FAWZIA KOOF – Sim, claro, ele e meus irmãos, mas acho que tenho também uma influência da minha mãe, que nunca esteve diretamente envolvida no meio político, mas é uma inspiração forte para mim.

ISTOÉ – A sra. tem duas filhas. Sua expectativa é de que elas continuem no Afeganistão? 

FAWZIA KOOF – Quem tem de decidir são elas. Minha preocupação é em dar-lhes oportunidade de estudar e de se preparar para serem possíveis líderes no futuro.

ISTOÉ – Por que decidiu escrever o livro “Às Minhas Filhas, com Amor”? 

FAWZIA KOOF – O livro é autobiográfico. É a história da minha vida e das pessoas que conheci, e mostra a destruição do país e de sua população promovida nas últimas décadas. Ali estão também as cartas que eu escrevi para minhas filhas, textos nos quais descrevo o que espero do futuro e as mudanças que sonho, para que elas compreendam como é importante ter educação e lutar por um ambiente livre de discriminação.

ISTOÉ – Acha que as Forças Armadas americanas devem deixar o país?

FAWZIA KOOF – Infelizmente, a presença das tropas é parte do jogo. Elas dão condições para que consigamos implementar as mudanças necessárias. Ainda não é hora de as forças internacionais saírem, do contrário podemos perder as conquistas que obtivemos na última década.

ISTOÉ – O que pensa da presidenta Dilma Rousseff? 

FAWZIA KOOF – Espero ter uma chance de vê-la. Ela tem se consolidado como um nome importante entre os líderes mundiais e é crucial termos mulheres ocupando esses espaços de liderança, para dar apoio e abrir espaço para as discussões sobre os direitos da mulher também nessas esferas.

Enviada por Ruben Siqueira.

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