Sempre à esquerda

João Paulo, editor de Cultura

Não há nada mais velho que a última moda. Do mesmo modo, nada é mais atual que as antigas certezas. Entre as velhas palavras que voltam a ganhar significado na vida política está a esquerda e, consequentemente, seu par antitético, a direita. A crise, em todas as suas dimensões – econômica, social e comportamental –, trouxe de volta o poder heurístico e moral da esquerda como leitura do mundo, interpretação da realidade e perspectiva de transformação. E estamos carentes desses três territórios de humanidade: o olhar, a compreensão e a ação sobre as circunstâncias.

Dois livros lançados recentemente ajudam a pôr em ordem os conceitos e recuperar, se não as certezas, pelo menos dúvidas mais bem arranjadas: A esquerda que não teme dizer seu nome, de Vladimir Safatle (Editora Três Estrelas); e Marx estava certo, de Terry Eagleton (Editora Nova Fronteira). São pensadores insuspeitos em termos de conhecimento, vinculação acadêmica (Safatle é professor de filosofia da USP e Eagleton da Universidade de Oxford), autores de obras eruditas e que nunca se furtaram ao debate. Espécie rara de intelectual público, cada vez mais em falta no mercado das ideias.

A esquerda que não teme dizer seu nome é livro curto e incisivo. Desde o título deixa às claras que o propósito do autor não é apenas defender a esquerda, mas um certo tipo de esquerda, que se ousa ir além de sua tradição. A esquerda que nos cabe hoje responde a novas exigências políticas e econômicas e, por isso, precisa ao mesmo tempo acurar a análise e ousar na intervenção. Ao dizer seu nome, não apenas como esquerda, adianta que algo precisa ser atualizado, revisto. A esquerda mudou, porque o mundo e o capitalismo mudaram, mas se mantém esquerda em sua essência. É esse movimento do surgimento do outro no seio do mesmo que o livro diagnostica com precisão.

Vladimir Safatle inicia seu texto recuperando as duas caricaturas mais conhecidas dos coveiros da esquerda. De um lado há os que se aferram ao irrefletido argumento que defende que a divisão entre esquerda e direita deixou de ter sentido com o fim das ideologias; de outro, os viúvos arrependidos que se regozijam de participar de um mundo em que o paraíso foi alcançado com a democracia representativa e com a entronização do mercado. As injustiças, se há, são fruto da incompetência individual ou alvo de benemerência (por incrível que possa parecer, até o Estado de bem-estar social parece avançado demais).

O que o autor quer recuperar é, em primeiro lugar, o espaço por excelência da esquerda: a política. Quando se fala em desprestígio da política é bom entender que se trata de demonizar certo tipo de política. Não há nada mais político que classificar os movimentos sociais como terroristas, assacar contra direitos sociais e trabalhistas, fechar as instâncias diretas de participação. Nada mais político, nada mais de direita. No entanto, essas e outras ações são feitas em nome de uma visão “racional” ou técnica, que escarnece da dimensão política como reino da corrupção. O retorno à política deve ser feito não a partir de negações, mas da afirmação do que é inegociável. É aí que esquerda precisa dizer o seu nome.

Quando se analisam as crises no Oriente Médio e na Europa – de um lado as inconstâncias da política, no outro as fragilidades da economia –, o receituário da direita quer se confundir com a racionalidade e apontar soluções que são sempre refratárias ao povo. No caso dos países do Norte da África e do Oriente Médio, a intervenção militar; nas situações de crise da economia da zona do euro, os ajustes em torno de medidas de austeridade e retirada de direitos. A capitulação ou o caos.

O livro de Vladimir Safatle é um convite ao exercício da esquerda em duas dimensões. De um lado, a recuperação do que é inegociável, de outro a proposição de novas estratégias que atendam às demandas colocadas pelo nosso tempo. A renovação da esquerda é um projeto em aberto, mas que parte de alguns elementos de base. Para o autor, o que não é passível de negociação, sob o risco de perder sua dimensão fundante, é a defesa do igualitarismo, da soberania popular e do direito à resistência. O progressismo, outro nome sobre o qual se buscou camuflar a esquerda, é fruto de um princípio filosófico (a igualdade), de uma estratégia política (a soberania popular ou a democracia que vai além do Estado do direito) e de um valor moral (o direito à resistência).

Uma das mais interessantes e argutas reflexões do autor se volta para o problema de como pensar as diferenças numa sociedade cada vez mais plural. Para um pensamento que se propõe a defender a igualdade, é fundamental saber avançar além do mero reconhecimento das singularidades, como faz um certo multiculturalismo constrangido. “Há, no entanto, uma crítica esquerdista às sociedades multiculturais que consiste em dizer que elas, de certa forma, não são suficientemente multiculturais. Elas procuram, apenas, atomizar a sociedade por meio de uma lógica estanque do reconhecimento das diferenças que funciona, basicamente, no plano cultural e ignora os planos político e econômico. Uma sociedade verdadeiramente multicultural é uma sociedade radicalmente universalista e indiferente às diferenças.”

Erros e acertos – Terry Eagleton é considerado um dos mais destacados críticos marxistas da atualidade. No entanto, de forma paradoxal, ficou mais conhecido por sua diatribe com os defensores do ateísmo. Eagleton desancou os neoevolucionistas como Richard Dawkins, não pela ciência, mas pela ignorância em matéria de religião. O pensador inglês mostrou que Dawkins e companhia podem entender muito de biologia, mas não sabem nada de filosofia. O fato de Darwin estar certo no que tange aos fatos não torna a teologia um equívoco. Um marxista que crê em Deus, defende a teologia e vê sentido em debater a relação entre fé e razão precisa ser levado a sério.

O livro de Eagleton, Marx estava certo, foi escrito para tirar a caricatura de cena e pôr em seu lugar uma leitura atenta, inteligente e contemporânea do pensamento marxista. Mais que defender Marx das deturpações (coisa que ele não precisa, já que Marx, sempre, escreve muito melhor que seus críticos), o projeto do autor é mostrar a pertinência e atualidade do maior crítico do capitalismo. O método é o da refutação, uma limpeza na área.

A cada um dos 10 capítulos Eagleton desautoriza as críticas apressadas e de má-fé, a começar pela mais radical de todas: a de que o marxismo acabou. Se Marx era útil no tempo da violenta exploração do trabalho, não deixa de ser necessário no momento que tornou a injustiça quase uma segunda natureza, ainda que anódina. Seguem outros ataques e ponderações de Eagleton: a de que o marxismo seria bom na teoria e violento na prática; que seria um tipo incontornável de determinismo; obcecado pelo conceito ultrapassado de classes sociais; defensor de um Estado onipotente e ineficaz; incapaz de alimentar os movimentos sociais contemporâneos; e por aí vai.

Ao final o leitor aprende, entre outras, que Marx alimentava uma fé inquebrantável no indivíduo, desconfiava de todo tipo de dogma abstrato, era cauteloso em relação à noção de igualdade e não tinha tempo para arquitetar uma sociedade perfeita. Marx acreditava em revoluções pacíficas e não se opunha a uma boa reforma. Defendeu as mulheres, a paz mundial e a luta contra o fascismo. Se você concorda com algumas dessas ideias, talvez seja de esquerda e nem saiba. Aliás, não saber a verdade sobre o marxismo é a mais marxista das meias-verdades levadas a cabo pela direita. Ideologia existe é para isso mesmo.

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/08/04/interna_pensar,45581/sempre-a-esquerda.shtml

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