Povos indígenas. Marcados para desaparecerem em pleno século XXI? Um novo ataque genocida à vista?

Análise da conjuntura da questão indígena no Brasil, a partir de notícias de jornais, realizadas pelo CEPAT/IHU

Há uma questão intrigante em algumas iniciativas jurídico-políticas, com fundo econômico, em andamento em nosso país nos últimos anos. Os povos indígenas sofreram diversos golpes ao longo da história brasileira, reduzindo-os de populações, povos e etnias numerosos para cerca de 90.000 a 100.000 pessoas, na década de 1970. Tribos inteiras foram dizimadas, mas outras resistiram. Sofreram, é verdade, todo tipo de marginalização. Até hoje. Gradativamente, e com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), criado em abril de 1972, foram se reorganizando, conquistando direitos e terras e crescendo em número. Isso em plena ditadura militar.

Entretanto, no princípio do século XXI, já restabelecida a democracia, parecem confrontar-se com uma nova onda de ataques aos seus direitos e territórios, ameaçando inclusive sua integridade física. Estaríamos diante de um novo ataque genocida, desta vez perpetrado sob o manto de um governo dito de esquerda e com a omissão (ou o consentimento) da sociedade em geral, particularmente das forças e movimentos sociais de esquerda?

“O governo brasileiro dá mais um passo rumo ao genocídio  dos povos indígenas,  em claro confronto com a legislação nacional e internacional da qual o país é signatário e põe em total insegurança jurídica  as terras indígenas”, escreve, sem meias palavras, o coordenador do CIMI-MS, Egon Heck. Sua indignação tem como pano de fundo a Portaria 303 da AGU (Advocacia Geral da União), de 17 de julho passado. Heck prossegue sustentando que a Portaria 303 “é mais um passo no caminho da extinção de grupos indígenas, na medida em que piora ainda mais a já caótica situação de reconhecimento e demarcação das terras indígenas no país”.

“Está ocorrendo uma verdadeira guerra contra os povos indígenas, a qual é puxada pelos setores que querem explorar as terras indígenas e os próprios povos indígenas do país. Infelizmente, o governo brasileiro e as instituições estão contribuindo nesse processo”, denuncia, por sua vez, o secretário executivo do CIMI, Cleber Buzatto, em entrevista especial à IHU On-Line.

Portaria 303 da AGU, portanto vinda do Executivo federal, é publicada três anos depois do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que homologou a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol em área contínua, para regulamentar a atuação de advogados e procuradores em processos judiciais que envolvem áreas indígenas em todo o país. Na prática, a portaria coloca em vigor as 19 condicionantes pelo STF para demarcação e direito de uso de terras indígenas na época do julgamento. Entre os pontos polêmicos da portaria, estão a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas e a garantia de participação de estados e municípios em todas as etapas do processo de demarcação.

A Portaria 303 proíbe a comercialização ou arrendamento de qualquer parte de terra indígena que possa restringir o pleno exercício do usufruto e da posse direta pelas comunidades indígenas, veda o garimpo, a mineração e o aproveitamento hídrico pelos índios e impede a cobrança, pelos índios, de qualquer taxa ou exigência para utilização de estradas, linhas de transmissão e outros equipamentos de serviço público que estejam dentro das áreas demarcadas.

Entretanto, há uma condicionante, a de número 17, muito preocupante. A portaria também confirma o entendimento do STF de que os direitos dos índios sobre as terras não se sobrepõem aos interesses da política de defesa nacional, ficando garantida a entrada e instalação de bases, unidades e postos militares no interior das reservas. A expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas e de “riquezas de cunho estratégico para o país” também não dependerão de consentimento das comunidades que vivem nas TIs afetadas, de acordo com as regras. Ou seja, se colocada em prática, significa porteira aberta para os interesses do agronegócio. Voltaremos a este aspecto mais adiante.

Acrescente-se que as condicionantes são alvo de ao menos seis pedidos de esclarecimento – os chamados embargos de declaração – que podem resultar na alteração ou até mesmo na anulação de parte dos pontos questionados. Além disso, defensores da causa indígena e juristas têm o entendimento de que as 19 condicionantes se aplicam apenas à TI Raposa Serra do Sol e não a outras situações.

Em nota, o CIMI caracterizou a Portaria 303 como “um absurdo”, “uma excrescência jurídica”, que deve levar à “conflagração generalizada de conflitos fundiários envolvendo a posse das terras indígenas, inclusive a reabertura daqueles anteriormente solucionados com o ato demarcatório”. Em vez de solucionar de vez os problemas dos povos indígenas, agrava-os.

Na nota, o CIMI também desmascara as intenções e subserviências do governo brasileiro. “A real intencionalidade do Governo brasileiro ao editar a presente portaria não é outra senão a de tentar estancar de vez os procedimentos de reconhecimento de demarcação de terras indígenas no país. Usando uma decisão do STF como subterfúgio, o Governo Federal, mais uma vez, ‘dobra os joelhos’ e, rezando a cartilha do capital ditada pelo agronegócio, tenta pôr uma ‘pá de cal’ sobre o artigo 231 da Carta Magna de nosso país.”

Outras organizações se somam ao CIMI nessa denúncia. É o caso do Instituto Socioambiental (ISA). “O que assusta na portaria é seu autoritarismo. A AGU está se antecipando ao STF e adotando uma interpretação reacionária das condicionantes”, critica Raul do Valle, coordenador adjunto de Política e Direito Socioambiental do ISA. Para ele, a portaria é um retrocesso no posicionamento da União em relação aos direitos indígenas. “A medida retoma um linguajar e uma racionalidade que imaginávamos superados desde o fim do regime militar. Implicitamente, coloca os índios na condição de ameaça à soberania nacional, submetendo aspectos fundamentais de sua vida a uma decisão do Conselho de Defesa Nacional, sem que tenham sequer o direito de opinar sobre o destino de suas terras”, afirma Valle.

Além disso, segundo Raul do Valle, “a portaria atropela boas práticas administrativas que estão sendo construídas a duras penas e que têm como princípio o respeito à opinião e aos interesses dos povos e comunidades indígenas. Adota como regra, como exemplo, as más práticas, que subjugam os interesses dos índios em nome de um suposto interesse do Estado”.

A própria Fundação Nacional do Índio (Funai) divulgou, no dia 20 de julho, uma nota técnica em que afirma ser contrária à edição da Portaria nº 303, publicada pela Advocacia Geral da União (AGU). De acordo com a Funai, com a Portaria 303 a AGU “restringe o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, especialmente os direitos territoriais, consagrados pela Constituição Federal”.

Portaria da AGU viabiliza modelo agroexportador

A Bancada Ruralista não faz nenhum segredo em relação ao seu lobby junto ao governo federal para a aprovação da Portaria 303 da AGU. A Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul, FAMASUL, junto aos Deputados do MS, com apoio da  Presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a Senadora Katia Abreu, assumem que pediram à Advocacia Geral da União, a Portaria 303 para retirar do judiciário os processos demarcatórios e dar poder ao governo para tomar as decisões e resolver os conflitos. (…)

“Para a Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul, a publicação da portaria é resultado de um esforço conjunto da instituição e seus sindicatos rurais, a bancada federal, governos, agentes políticos e vários atores nacionais. A decisão vai ajudar na resolução dos litígios registrados nas propriedades antes pretendidas pelos indígenas”, diz matéria da FAMASUL. A solicitação foi oficializada junto à AGU em novembro de 2011.

A publicação da Portaria 303 é uma demonstração das sensibilidades do governo e sua sujeição às pressões dos fazendeiros e dos grandes proprietários de terras do país. Tem ouvidos para os interesses do agronegócio, mas é surdo aos direitos dos povos indígenas. Quando toca questões de interesse do andar de cima, parece reinar a celeridade, ao passo que as questões relativas aos índios são tratadas com morosidade, lentidão, falta de vontade política, como, aliás, já denunciamos neste espaço em análises feitas em dezembro março passados. O que acaba repontando em aumento da violência contra os povos indígenas.

Indigenistas e ambientalistas são unânimes em afirmar que a Portaria atende a um pedido dos grandes fazendeiros deste país e a seus interesses de exploração desenfreada dos recursos naturais, às custas da marginalização de grupos humanos, especificamente os povos indígenas. Em nota, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-COIAB sustenta que “a finalidade é remover os chamados obstáculos ao desenvolvimento, com a incorporação de novas terras para o agronegócio e facilitar o acesso e a super exploração dos recursos naturais”. “As terras indígenas e a luta dos povos indígenas para manterem seus projetos próprios de vida resistem contra essa perspectiva insustentável do ponto de vista social e ambiental. Na região sul da Amazônia, por exemplo, é facilmente percebível como as terras indígenas aparecem como verdadeiros oásis verdes em meio a terra arrasada pelo latifúndio, sem florestas e sem gente”, acrescenta a nota da COIAB.

De acordo com Cleber Buzatto, secretário executivo do CIMI, “a portaria abre, digamos assim, as ‘porteiras’ das terras indígenas para serem exploradas de diversas formas seja pelo Estado brasileiro seja por empresas particulares, no sentido de viabilizar infraestrutura para deslocamento de commodities agrícolas até os portos do país, e para viabilizar a exploração mineral ou exploração de recursos hídricos para produção de energia. Portanto, essa portaria pretende viabilizar justamente o modelo agroexportador vigente no país”.

Mais grave ainda, destaca Buzatto, é o fato de que “há um ataque duro e lastimável por parte do Executivo, que está usando a Portaria 303 como um instrumento de ataque aos direitos dos povos indígenas, atingindo as terras já demarcadas no país”.

Suspensão ou revogação da portaria?

Por pressão do movimento indigenista, a Portaria 303 foi, no dia 25 de julho, suspensa até setembro. A revisão da data de entrada em vigor das regras foi confirmada pelo advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, e atende a uma reivindicação da Fundação Nacional do Índio (Funai), que se manifestou contrariamente à portaria argumentando que a norma restringiria o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, especialmente os direitos territoriais, consagrados na Constituição Federal. Luís Adams, porém, esclarece que não está disposto a rever a Portaria. “Não pretendo rever a Portaria. O que devemos é estabelecer uma vigência mais adiante, no futuro, para permitir que a Funai possa promover algum diálogo com as comunidades sobre o assunto e ouvi-las sobre aspectos da portaria”, disse.

Mas, fica a pergunta: é suficiente suspender a Portaria para solucionar o problema ou ela deve ser revogada? Diante da insuficiência da suspensão temporária, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-COIAB, em nota, “exige a imediata revogação da Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU) que orienta os órgãos do governo federal a aplicar as condicionantes decididas pelo Supremo Tribunal Federal na demarcação da TI Raposa Serra do Sol/RR, para todas as terras indígenas do país. Somente a SUSPENSÃO dos efeitos como anunciado, não é suficiente. Exigimos sua revogação”.

Isso porque, segundo o secretário executivo do CIMI, Cleber César Buzatto, a Portaria “não tem fundamentação legal” e caso seja consolidada criará uma “situação de vácuo jurídico e de grande insegurança jurídica e política”.

Cenário de retrocessos

Para o coordenador do CIMI-MS, Egon Heck, com a entrada em vigor da Portaria 303, “todo o trabalho realizado há vários anos e décadas será jogado na lata do lixo, pois o que querem fazer prevalecer sobre os direitos constitucionais são os interesses do grande capital nacional e internacional”.

De fato, excetuando alguns avanços – como a recente decisão da Justiça Federal de retirar os não índios da Terra Indígena Marãiwatsédé, no nordeste de Mato Grosso, homologada em 1998 através de um decreto presidencial, mas cujo conflito remonta aos anos 1960 –, os povos indígenas vêm acumulando ultimamente mais derrotas que vitórias.

São sinais disso: a aprovação no Congresso do Código “Florestal” ruralista; da PEC 215, que dá ao Legislativo a competência de decidir sobre as demarcações de Terras Indígenas; e da Medida Provisória nº 558, que altera o limite de oito unidades federais na Amazônia. A aprovação da PEC 215 é outro sinal evidente da omissão do Executivo federal. Sem falar da inglória luta dos indígenas contra a construção de hidrelétricas no coração da Amazônia.

Enviada por Pablo Matos Camargo para a lista CEDEFES.

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