Argentina: o preço do horror

Pela primeira vez um tribunal federal argentino declarou que o plano sistemático de aniquilamento da oposição à ditadura – armada ou não – incluiu o desaparecimento não apenas de militantes, mas de bebês recém-nascidos. Até agora, o roubo de crianças era tratado como atos isolados cometidos por um punhado de verdugos especialmente tresloucados. Está comprovado que pelo menos 500 crianças forampassaram por esse procedimento. Delas, 105 foram recuperadas e tiveram suas identidades resgatadas. O artigo é de Eric Nepomuceno.

Eric Nepomuceno

Não foi por acaso que o 6º Tribunal Federal de Justiça, em Buenos Aires, conduzido pela juíza María del Carmen Roqueta, determinou uma sentença de 50 anos de prisão comum, sem privilégio algum, para o general Jorge Rafael Videla, que encabeçou a Junta Militar que em março de 1976 instaurou a mais cruel e sangrenta ditadura da história argentina. É uma sentença pensada e repensada: uma pena inferior permitiria a ele, depois de um certo tempo, pedir liberdade condicional.

Na verdade, pouca diferença faria: afinal, Videla já cumpre duas penas de prisão perpétua como responsável por crimes que vão de seqüestro e desaparecimento de prisioneiros a tortura e assassinato. Mas, ainda assim, a sentença teve um peso específico, e o processo que julgou os responsáveis pelo roubo de 35 bebês, nascidos em cativeiro e cujas mães foram mortas, cria um precedente jurídico importante. 

Foi um processo longo, que se arrastou por um ano e meio e no qual foram ouvidos 200 depoimentos. No final, foi aberta jurisprudência para o crime de roubo de bebês, que certamente mudará o rumo dos outros casos em andamento e dos processos que virão. Pela primeira vez um tribunal federal argentino declarou que o plano sistemático de aniquilamento da oposição à ditadura – armada ou não – incluiu o desaparecimento não apenas de militantes, mas de bebês recém-nascidos. Até agora, o roubo de crianças era tratado como atos isolados cometidos por um punhado de verdugos especialmente tresloucados.

Na sentença da juíza María del Carmen Roqueta, e da qual não cabe apelação, fica reconhecido que se tratou de uma ‘prática generalizada e sistemática’. Que a ‘subtração, ocultação e retenção’ de recém-nascidos obedeceu aos mais altos mandos militares.

A sentença deixou claro que as grávidas eram preservadas. Levadas para cativeiros clandestinos, tiveram assistência médica, foram acompanhadas no parto e puderam ficar duas semanas com seus bebês. Depois, foram assassinadas, e as crianças, entregues a militares, a policiais ou a outros agentes da repressão. Muitos desses bebês acabaram criados pelos algozes de seus pais verdadeiros.

Está comprovado que pelo menos 500 crianças passaram por esse procedimento. Delas, 105 foram recuperadas e tiveram suas identidades resgatadas. O processo contra Videla e outros se referia a 35 desses bebês. Vinte deles, hoje adultos na casa dos trinta anos, prestaram depoimento diante do tribunal. Foram os momentos de maior tensão e emoção: homens e mulheres que cresceram sem saber quem eram, ajudando a condenar quem os criou.

O general Jorge Rafael Videla está com 86 anos. Mantém o mesmo porte ereto, o ar altivo e insolente, os olhos de gelo daquele março de 1976. Sua frase sobre as mulheres que caíram presas estando grávidas, deram à luz em cárceres clandestinos e depois foram assassinadas, varreu o tribunal como um vento polar: ele disse que na verdade eram terroristas que usavam sua gravidez – a expressão exata foi ‘seus fetos’ – como escudos humanos. Sendo terroristas, não poderiam ter outro destino que a eliminação pura e simples.

Assim é esse velhote austero e elegante. Assim foram os tempos vividos durante o terrorismo de Estado implantado pela ditadura dos generais.

A sentença de agora é uma vitória de um grupo de senhoras valentes, um dos pilares básicos que fazem da Argentina o país mais avançado no resgate da memória, no restabelecimento da verdade e na aplicação da justiça: as Avós da Praça de Maio.

É como um jogo de tempos, um encontro das gerações do horror e da esperança. A presidente das Avós se chama Estela de Carlotto, e é quatro anos mais nova que Videla. Já o advogado das Avós nesse processo, Alan Lud, tem 31 anos. Não havia nascido quando a maioria dos bebês tinha sido roubada.

Laura, filha de Estela, foi presa em novembro de 1977. Estava grávida fazia dois meses. Estela conseguiu refazer a trajetória da filha: ela passou por alguns centros clandestinos até que teve um bebê, um menino que quis que se chamasse Guido. Quinze dias depois, seguindo o ritual macabro, foi assassinada. Guido nasceu em junho de 1978. Foi entregue a alguém. Estela até hoje não conseguiu descobrir quem roubou seu neto, derradeiro legado de sua filha morta.

Há toda uma constelação de cúmplices nesse drama: o médico que fez o parto, o cartório onde foi feito o registro fraudulento da criança, o sacerdote que testemunhou tudo. Sim, porque a cumplicidade da Igreja Católica é cada vez mais evidente. Estela tentou e tentou ajuda de sacerdotes. Em vão.

Alguém sabe a quem o Guido de Laura, o neto de Estela, foi entregue. E esse alguém se nega a contar.

Cada vez que Estela conhece algum Guido que tem a idade que seu neto teria hoje, sente um leve tremor.

Cada vez que as Avós da Praça de Maio recuperam um neto, uma daquelas 500 crianças nascidas em cativeiro e roubadas pelos verdugos de suas mães, Estela sente que recuperou um Guido – não o dela, mas é como se fosse.

Diante dessas minas de dignidade e generosa solidariedade, diante desse caudal de valentia e integridade, Videla e todos os outros são apenas sombras abjetas.

Ele, eles, negaram às suas vítimas o mínimo que agora lhes foi concedido: o direito a um julgamento justo, o direito à defesa.

Eles inventaram o horror, os eternos dias de angústia das Avós da Praça de Maio. Com o julgamento e a sentença, estarão pagando o preço desse horror?

Eu acho que não. O verdadeiro preço é pago pelas avós. Pelos netos roubados.

Em algum lugar do mapa anda um Guido que não sabe que é Guido. Que não sabe que é neto de uma mulher íntegra. E que, como ele, há pelo menos 395 argentinos e argentinas que não sabem quem são.

Não sabem que aqueles que chamam de pai e mãe são, na verdade, os ladrões de sua identidade, os rufiões de seus destinos.

 Enviada por José Carlos.

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