As “cidades de chocolate” e o racismo na China

Por Eric Vanden Bussche, de Wuhan (China)

Em meados do mês passado, o nigeriano Celestine Elebechi se envolveu numa discussão acalorada com um motorista chinês em Guangzhou, no sul da China. Uma multidão se aglomerou em torno deles e, segundo relatos nas mídias sociais, alguns que assistiam ao bate-boca passaram a agredir fisicamente o nigeriano.

Policiais resolveram intervir e levaram-no para a delegacia, onde algumas horas depois Elebechi viria a, “de repente, perder a consciência” e morrer, de acordo com um comunicado emitido pelas autoridades locais. A sua morte serviu de estopim para uma manifestação reunindo centenas de africanos que protestavam contra a discriminação racial na metrópole chinesa.

Esse episódio expôs as frágeis relações raciais no país, em especial em Guangzhou, onde se estima que haja por volta de 100 mil africanos, a maioria concentrada em distritos apelidados pelos chineses de “cidades de chocolate”. Muitos africanos radicados na China reclamam que são ignorados por vendedores em lojas, enfrentam dificuldades em arrumar taxis na rua e frequentemente ouvem gozações a respeito da cor de sua pele.

O racismo continua sendo tabu, um tema que as autoridades preferem ignorar para não atrapalhar os seus interesses político-econômicos na África como também para mostrar que a China é um país pluralista, onde várias etnias e raças convivem em harmonia. No final dos anos 80, o então chefe do Partido Comunista chinês (PC), Zhao Ziyang, afirmava com orgulho que a discriminação racial existia “em todos os lugares do mundo, exceto na China”. Essa visão persiste entre os chineses até hoje, talvez pela ausência de uma discussão séria no país sobre relações raciais.

O acadêmico Frank Dikotter mostra que, na história da China, raça sempre esteve associada à classe social. Na época imperial, os “intelectuais de rosto branco” (baimian shusheng) encarnavam o ideal de beleza masculina, enquanto os camponeses eram identificados pela pele escura. Com a chegada dos europeus e de seu “racismo científico” no século 19, os chineses passaram a enxergar a geopolítica internacional a partir de uma hierarquia racial, na qual as nações europeias seriam os bastiões do progresso. Por sua vez, a África, povoada por negros “preguiçosos e intelectualmente inferiores”, era caracterizada como a terra do atraso, incapaz de qualquer tipo de desenvolvimento.

A revolução comunista de 1949, porém, tratou de enterrar essa visão geopolítica e erradicar a associação entre raça e classe social. O universalismo da era maoísta considerava a África, a América do Sul e o Sudeste Asiático como um terreno fértil para o fervor revolucionário. Mas, com a morte de Mao Zedong e a abertura econômica do final dos anos 70, as velhas ideias sobre raça e status social ganharam força novamente. Pele branca voltou a ser sinônimo de beleza. E africanos passaram novamente a serem vistos com desconfiança.

Essa mudança pôde ser observada de forma mais nítida no âmbito universitário. As faculdades se transformaram em palco de conflitos entre chineses e africanos em Xangai, Tianjin, Hangzhou e até Pequim. No início de julho de 1979, violentos confrontos entre estudantes chineses e africanos numa universidade de Xangai deixaram 24 chineses e 50 estrangeiros feridos, entre os quais 16 precisaram ser hospitalizados. Os chineses reclamaram que não conseguiam se preparar para os seus exames por causa do barulho no dormitório dos africanos. Estes, por sua vez, se sentiram ofendidos por serem chamados de “diabos negros” (heigui). Durante dois dias, alunos chineses sitiaram e apedrejaram o dormitório. Os ânimos estavam tão acirrados que foi preciso a intervenção do vice-premiê Fang Yi para que os estudantes chineses voltarem às salas de aula.

Na década de 80, incidentes semelhantes ocorreram em outras universidades espalhadas pelo país. Em 1988, por exemplo, estudantes africanos na Universidade de Agricultura de Zhejiang em Hangzhou realizaram um boicote às aulas, enfurecidos com um rumor que circulava pelo campus de que eram todos portadores do vírus HIV. Temendo que o rumor fosse verdadeiro, os administradores da universidade haviam inclusive proibido a entrada de chineses no dormitório dos africanos.

Nem mesmo o estreitamento dos laços entre a China e a África serviu para mudar a visão estereotipada dos chineses em relação aos africanos. Muitas empresas chinesas na África preferem importar a mão-de-obra de seu país ao invés de utilizar braços locais.

Aliás, alguns chineses se preocupam com os efeitos colaterais dessa relação entre o seu país e o continente africano. Nos últimos anos, ouvi repetidas vezes chineses associarem índices de criminalidade em centros urbanos à crescente presença de africanos. “Há mais crimes violentos nos EUA do que na China porque lá há mais negros do que aqui, por isso precisamos controlar a entrada de africanos aqui”, me disse um jornalista chinês. Quando lhe perguntei se não achava seus comentários racistas, ele logo respondeu: “É um fato que negros não têm cultura (meiyou wenhua) e são mais propensos a cometerem crimes”. Para reforçar o seu argumento, ele citou os quase 6.000 nigerianos que se encontram presos na China, a maioria por tráfico de drogas.

Nos últimos anos, porém, alguns episódios estimularam discussões mais amplas sobre relações raciais. Em 2009, a estudante universitária Lou Jing, filha de uma chinesa e um negro norte-americano, provocou um debate sobre o racismo na imprensa nacional ao se classificar para um concurso de canto numa rede de televisão de Xangai. Insultos proliferaram nas redes sociais. “A mistura das raças amarela e negra é muito nojenta,” escreveu um usuário. “Nós, chineses, não queremos ver um pedaço de merda cantando na televisão,” escreveu outro.

Lou Jing, que foi criada em Xangai e sempre se considerou chinesa, expressou a sua mágoa, enfatizando que a repercussão de sua participação no concurso a levou a questionar a sua própria identidade e seu objetivo profissional. “Desde que apareci na televisão, percebi que eu talvez não sirva para ser uma apresentadora de televisão. Muitos acreditam que uma apresentadora de televisão precisa ter pele branca, nariz alto e olhos grandes.”

Apesar dos insultos destilados nas mídias sociais contra Lou Jing, pela primeira vez houve um esforço por parte de formadores de opinião na imprensa nacional em mudar a tônica do debate. Raymond Zhou, Hung Huang e outros colunistas criticaram a posição racista dos seus conterrâneos e elogiaram Lou Jing. Zhou argumentou que a China apenas se tornaria uma verdadeira potência global se os chineses aprenderem a demonstrar maior sensibilidade no convívio com pessoas de diferentes raças. Hung Huang expressou um sentimento semelhante em seu blog: “Nós admiramos raças que são mais brancas do que nós. Esse é um mal profundamente enraizado entre nós.”

Embora essas vozes dissonantes marquem um começo positivo na tentativa de mudar atitudes, a China ainda tem um longo caminho a percorrer.

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.

http://vistachinesa.blogfolha.uol.com.br/2012/07/06/as-cidades-de-chocolate-e-o-racismo-na-china/

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