Maria Rita Kehl: trecho de “As Fatrias Órfãs” (se desejar, baixe o artigo inteiro no final)

Uma vez, indagado sobre sua identificação ao judaísmo, Freud respondeu que se não existisse anti- semitismo, não faria questão nem de circuncidar os próprios filhos; mas diante do preconceito, não tinha outra opção senão a de se afirmar como judeu. Talvez se possa interpretar desta forma a convocação dos Racionais a uma “atitude” que sustente o amor próprio entre os negros contra o sentimento de inferioridade produzido pela discriminação, o que passa pela afirmação da raça – este significante tão duvidoso, que produz discriminação ao mesmo tempo que indica a diferença. [destaque deste Blog. TP]

Função do pai, invenções dos manos

Os “cinqüenta mil manos” produzem um apoio – mas onde está um pai? Qual o significante capaz de abrigar uma lei, uma interdição ao gozo, quando a única compensação é o direito de continuar, “contrariando as estatísticas”, a lutar pela sobrevivência? Surpreendentemente, Mano Brown “usa” Deus para fazer esta função. Embora em nenhum momento fale em nome de igreja nenhuma, Deus é lembrado – mas para quê? “Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor/ pelo rádio, jornal, revista e outdoor/ Te oferece dinheiro, conversa com calma/contamina seu caráter, rouba sua alma/ depois te joga na merda sozinho,/ transforma um preto tipo A num neguinho./ Minha palavra alivia sua dor,/ ilumina minha alma, louvado seja o meu Senhor/ que não deixa o mano aqui desandar,/ ah, nem sentar o dedo em nenhum pilantra./ Mas que nenhum filho da puta ignore a minha lei:/ Racionais, capítulo 4, versículo 3”.

Deus é lembrado como referência que “não deixa o mano aqui desandar”, já que todas as outras referências (“rádio, jornal, revista e outdoor”) estão aí para “transformar um preto tipo A num neguinho”. Deus é lembrado como pai cujo desejo indica ao filho o que é ser um homem: um “preto tipo A”. Pela primeira vez, fez sentido para mim a frase “Jesus te ama”, que vejo freqüentemente colada nos vidros dos carros (embora naqueles casos, a meu ver, o sentido propagandístico, voltado ao aliciamento e domesticação do outro, predomine sobre o sentido de auto-ajuda da utilização de Deus feita por Mano Brown); pois é preciso que o Outro me ame, para que eu possa me amar. É preciso que o Outro aponte, a partir do seu desejo (que não se pode conhecer, mas a cultura não cessa de produzir pistas para que se possa imaginar), um lugar de dignidade, para que o sujeito sinta-se digno de ocupar um lugar.

Não me atrevo a interpretar a religiosidade pessoal, íntima, dos componentes do grupo. Mas sugiro que o Senhor que aparece em alguns destes Raps (junto com os Orixás! ver “A fórmula mágica da paz” – Mano Brown: “agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei para trás”), além de simbolizar a Lei, tem a função de conferir valor à vida, que para um mano comum “vale menos que o seu celular e o seu computador”(“Diário de um detento”, Brown – Jocenir, este último prisioneiro da casa de Detenção de São Paulo). No que depender da lei dos homens, estes jovens já estão excluídos, de fato, até do programa mínimo da Declaração dos Direitos do Homem. A alternativa simbólica moderna, imanente, a Deus, seria “a sociedade” – esta outra entidade abstrata, abrangente, que deveria simbolizar o interesse comum entre os homens, a instância que “quer” que você seja uma pessoa de bem, e em troca lhe oferece amparo, oportunidades e até algumas alternativas de prazer.

A sociedade – temos mais de duzentos anos de Iluminismo nas costas! mas será que o Iluminismo alguma vez falou para a ralé? – é uma instância superior a Deus do ponto de vista da emancipação dos homens, já que existe no reino deste mundo, organizada a partir – supõe-se – das necessidades e acordos estabelecidos entre semelhantes, e maleável na medida das transformações destas necessidades. Mas do ponto de vista dos manos, a sociedade é hostil ou, no mínimo, indiferente. A sociedade “não se importa”, não vai alterar seu sistema de privilégios para incluir e contemplar os direitos deles. A regressão (do ponto de vista filosófico) a Deus faz sentido, num quadro de absurda injustiça social, considerando-se que a outra alternativa é a regressão à barbárie.

Vale lembrar – estarei sendo otimista, interpretando a partir de meu próprio desejo? – que o Deus de Brown não produz conformismo, esperança numa salvação mágica, desvalorização desta vida em nome de qualquer felicidade eterna. Deus está lá como referência simbólica, para “não deixar desandar” a vida desses moços nada comportados que falam numa revolução aqui na terra mesmo (“Deus está comigo, mas o revólver também me acompanha” Ice Blue ao JT, s/d) e lembram sempre: “quem gosta de nós somos nós mesmos” (“Pânico na Zona Sul”).

Mas que não se confunda este “gostar de nós” com uma afirmação de auto suficiência, de um individualismo que só se sustenta (imaginariamente!) nos casos em que é possível se cumprir as condições impostas pela sociedade de consumo – a posse de bens cuja função é obturar as brechas da “fortaleza narcísica” do eu, a alienação própria da posição do “senhor”, que não lhe permite enxergar sua dependência quanto ao trabalho do “escravo”, e a disponibilidade do dinheiro como fetiche capaz de velar, para o sujeito, a consciência de seu desamparo. O mandato “goste de você” emitido pelos Racionais não poderia ser uma incitação ao individualismo mesmo se quisesse, já que estas condições estão muito longe de se cumprir dada a situação de permanente desamparo e falta no real, da vida na periferia – a não ser, é claro, em sua face bárbara, a do tráfico e consumo de drogas.

O traficante representa, nas letras de Brown e Edy Rock, a face bárbara do individualismo burguês: o cara que não está nem aí pra ninguém, que só defende a dele, que não tem escrúpulos em viciar a molecada, expor crianças ao perigo fazendo avião para eles. A outra face é a do otário, o “negro limitado” (título de música – Brown/Rock), a quem falta “postura”, “atitude”, que se ilude pensando que pode se destacar sobre seus semelhantes recusando a raça. etc. “Não quero ser o mais certo/ e sim o mano esperto”, responde Brown ao mano “limitado”. Mais uma vez, uma postura moral se funda sobre a ameaça extrema do extermínio. O “mano esperto” é o que sabe que a opção da alienação – que na miséria da periferia precisa da droga para se sustentar – está sujeita à pena de morte, à lei da selva da polícia brasileira ou destes capitalistas selvagens que são os donos do tráfico: “A segunda opção é o caminho mais rápido/ e fácil, a morte percorre a mesma estrada, é/ inevitável./ planejam nossa restrição, esse é o título/ da nossa revolução, segundo versículo/ leia, se forme, se atualize, decore/ antes que racistas otários fardados de cérebro atrofiado/os seus miolos estourem e estará tudo acabado./ Cuidado!/ O Boletim de Ocorrência com seu nome em algum livro/ em qualquer arquivo, em qualquer distrito/ caso encerrado, nada mais que isso” (“Negro Limitado”).

A insignificância da vida, o vazio que nossa passagem pelo mundo dos vivos vai deixar depois de nossa morte – nós que apostamos sempre em marcar nossa presença deixando uma obra, uma palavra, uma lembrança imortal – isto que a psicanálise aponta como a precariedade da condição humana e que um neurótico de classe média precisa tanto trabalho para suportar, estão dados no dia-a-dia, na concretude da vida no “inferno periférico”(Edy Rock) de onde eles vêm. Portanto, a possibilidade do delírio narcísico-individualista está excluída, a não ser que se encare as conseqüências da opção pelo crime. “Não tava nem aí, nem levava nada a sério/admirava os ladrão e os malandro mais velho/ mas se liga, olhe ao redor e diga/ o que melhorou da função, quem sobrou, sei lá/ muito velório rolou de lá pra cá/ qual a próxima mãe a chorar/ já demorou mas hoje eu posso compreender/ que malandragem de verdade é viver (grifo meu)/ Agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei para trás”…( “Fórmula Mágica da Paz”- Mano Brown).

A outra opção – a primeira, aliás, nos versos da música “Negro Limitado” – é o apelo ao outro como parceiro na construção de outras referências, na invenção de espaços simbólicos que possibilitem alguma independência em relação à sedução do circuito crime-consumismo-extermínio. Assim, o “goste de você” não soa como comando ao isolamento, a um fechar-se sobre si mesmo como resposta para todos os problemas. Pelo contrário, a frase soa como apelo ao outro para que reconheça e valorize a semelhança entre eles.

O apelo ao reconhecimento é geralmente endereçado ao pai. O irmão, o semelhante, será destinatário deste apelo apenas quando o pai dá as costas? Penso que não; o reconhecimento paterno, fundamental para que o sujeito constitua uma certeza imaginária sobre “quem ele é” (para o desejo do pai), pode gerar também um aprisionamento narcísico. O sujeito só começa a se mover de sua posição no triângulo edípico, entre o olhar da mãe que seduz e o do pai que interdita e se oferece à identificação (e ao ideal), quando da entrada de um outro, um irmão (consangüíneo ou não), que abre para a alteridade, para a constatação, em espelho, de sua própria insignificância; mas também para a infinidade de possibilidades subjetivas que se abrem ante a descoberta da semelhança na diferença.

O outro funciona também como parceiro e cúmplice nas moções de transgressão em relação à interdição paterna – e então, de duas, uma. Ou a interdição não se sustenta mais – pense-se no caso de um pai perverso, por exemplo, capaz de manter uma posição autoritária mas incapaz de simbolizar a lei e sujeitar-se a ela – e neste caso os irmãos escapam à função paterna, fazendo sua própria versão do desejo do pai (a père-version a que se refere Lacan) e fundando, na delinqüência, uma gangue; ou a lei se mantém cumprindo sua função mínima de interditar o gozo (aos filhos, mas também ao pai!), mas a aliança fraterna possibilita que os sujeitos explorem e ampliem suas margens, relativizando o discurso da autoridade encarnado pela figura do pai real. É a constatação da semelhança na diferença que se dá com a entrada do “pequeno outro”, que permite ao sujeito separar a lei simbólica – diante da qual todos se equivalem – da figura real do pai encarnado naquele sujeito frágil, arbitrário, limitado e desejante que, mesmo quando se faça respeitar, é incapaz de apagar as diferenças significantes entre todos os filhos que levam o mesmo nome, o seu nome.

Fiz esta longa passagem para dizer que a fratria não é convocada a operar só na falta do pai. Mas quando ninguém nessa vida encarna o pai, quando é preciso apelar ao “Senhor” para imaginar que “alguém” (no eixo vertical da constituição subjetiva) me ama e me proíbe abusos, o reconhecimento entre irmãos se torna essencial. Até mesmo para sustentar a existência deste Deus, aliás, que se não fosse o significante de uma formação simbólica ( portanto coletiva ), seria o elemento central de um delírio psicótico. Além disso, na falta do reconhecimento de um pai, é a circulação libidinal entre os membros da fratria que produz um lugar de onde o sujeito se vê, visto pelo olhar do(s) outro(s). Prova disto é a grande importância que a criação de apelidos adquire nos grupos de adolescentes por exemplo, como indicativos de um “segundo batismo”, a partir de outros campos identificatórios por onde os sujeitos possam se mover, ampliando as possibilidades estreitas fundadas sobre o traço unário da identificação ao ideal paterno. As identificações horizontais talvez permitam a passagem da ilusão de uma “identidade” (em que o sujeito se acredita-se idêntico a si mesmo, colado ao nome próprio dado pelo pai) à precariedade das identificações secundárias, a partir de outros lugares que o sujeito vai ocupando entre seus semelhantes, e que o apelido dado pela turma é capaz de revelar.

Quando os Racionais apelam a que os manos se identifiquem com a causa dos negros, estarão propondo um campo identificatório – com sua diversidade de manifestação singulares – ou a produção de uma identidade, com sua camisa-de-força subjetiva? “Gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee,/ Zumbi, um grande herói, o maior daqui./ São importantes pra mim, mas você ri e dá as costas/ então acho que sei de que porra você gosta: / se vestir como playboy, freqüentar danceterias/ agradar os vagabundos, ver novela todo dia, / que merda!/ Se esse é seu ideal, é lamentável/ é bem provável que você se foda muito/ você se autodestrói e também quer nos incluir/ porém, não quero, não vou/ sou negro, não vou admitir!/ De que valem roupas caras, se não tem atitude?/ e o que vale a negritude, se não pô-la em prática?/ A principal tática, herança da nossa mãe África/ a única coisa que não puderam roubar!/ se soubessem o valor que a nossa raça tem/ tingiam a palma da mão pra ser escura também!” (“Júri racional” – Mano Brown) . A questão é complicada. Uma vez, indagado sobre sua identificação ao judaísmo, Freud respondeu que se não existisse anti semitismo, não faria questão nem de circuncidar os próprios filhos; mas diante do preconceito, não tinha outra opção senão a de se afirmar como judeu. Talvez se possa interpretar desta forma a convocação dos Racionais a uma “atitude” que sustente o amor próprio entre os negros contra o sentimento de inferioridade produzido pela discriminação, o que passa pela afirmação da raça – este significante tão duvidoso, que produz discriminação ao mesmo tempo que indica a diferença.

Mas quem sabe se possa mesmo ultrapassar esta limitação imaginária, este suporte físico – cor da pele – que produz simultaneamente a identificação e a discriminação racial? Quem sabe a multidão de admiradores dos grupos de Rap não estarão tentando dizer, como os estudantes parisienses em maio de 68, quando o governo tentou expulsar Daniel Cohn-Bendit sob a alegação de não ser um cidadão francês – “somos todos judeus alemães”! – e explodir a fronteira da raça pela via das identificações com as formações culturais: somos todos manos negros da periferia? Finalmente está claro por que posso me autorizar a falar de, ou mais, a falar com, os manos dos Racionais. Pois se a afirmação dos campos identificatórios (estou recusando propositalmente o termo identidade) não produzir laços sociais, afinidades eletivas que incluam o semelhante na diferença (tornando obsoletos os traços da raça, ou do sexo, por exemplo), há sempre de produzir isolamento entre os grupos e, num sentido ou no outro, discriminação. Que a auto-estima e a dignidade dos rapazes negros da periferia não dependam da aceitação por parte da elite branca, não significa que não produzam outros laços, outras formas de comunicação, inclusive com grupos mais ou menos marginais a esta própria elite. Neste caso, a identificação que começou passando pela cor da pele, ampliou-se para abrigar outros sentidos: exclusão, indignação, repúdio à violência e às injustiças, etc. Não somos “todos” pretos pobres da periferia, mas somos muitos mais do que eles supunham quando começaram a falar.

Trecho postado por Oswaldo Conti Bosso no Portal Luis Nassif: http://blogln.ning.com/profiles/blog/show?id=2189391%3ABlogPost%3A1005355. Enviada por José Carlos.

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