Regularização do Território das Comunidades Tradicionais ou cooptação e “esverdeamento” da pesca artesanal?

Tania Pacheco

O nosso mundo parece mesmo ser cheio de coincidências interessantes. Nos dias 4 a 6 de junho, cerca de 2 mil pescadores e pescadoras artesanais de 16 Estados brasileiros se reuniram em Brasília para o lançamento da Campanha Nacional pela Regularização do Território das Comunidades Tradicionais Pesqueiras. Reafirmavam, de formas variadas, seu objetivo: poder viver, morar, preservar e trabalhar em suas comunidades –  sejam elas nas margens de rios, açudes, estuários ou do mar –, tendo na pesca artesanal sua fonte de sustento e prática cultural.

Com o lema Território Pesqueiro: Biodiversidade, Cultura e Soberania Alimentar do Povo Brasileiro, o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais estava e está colhendo assinaturas (necessita de 1.385 mil) para propor uma lei de iniciativa popular que regulamente e garanta o direito das comunidades pesqueiras sobre suas terras e suas águas (para mais informações, clique AQUI).

Pois não é que, numa curiosa coincidência, a MMX lançou, exatamente dez dias mais tarde, o que chama de “segunda etapa” do seu Plano Social de Investimento da Pesca Artesanal? O release que está sendo distribuído pela empresa e tem por título “MMX vai financiar projetos de pesca artesanal e aquicultura na Baía de Sepetiba” é bastante sedutor:

“A MMX, empresa responsável pela construção do Superporto Sudeste, no município de Itaguaí, lançou, no dia 14 de junho, a segunda fase do Plano Social de Investimento da Pesca Artesanal. O objetivo do programa é o fortalecimento da atividade de pesca artesanal e aquicultura na Baía de Sepetiba. O edital foi aberto para todas as colônias e associações de pesca e aquicultura artesanal da região, que poderão apresentar seus projetos para financiamento até o dia 10 de agosto.

O programa tem como premissa central financiar projetos que tragam benefícios na organização social da pesca. Serão priorizados [sic] as propostas que tenham foco no fortalecimento do associativismo, dos eixos da cadeia produtiva (produção e distribuição) e/ou da qualificação da gestão. Nesta segunda etapa, a companhia também vai avaliar projetos que gerem renda para jovens e mulheres dos pescadores[sic; grifo nosso. Quem sabe com a MMX elas aprendam algo além de lavar, limpar, cozinhar e cuidar dos filhos, que pelo visto é a ideia que delas faz a empresa?].

Continuando, o release cita explicação do diretor de Operações Portuárias da MMX (“O principal critério para a seleção dos projetos é a coletividade. Queremos financiar projetos que beneficiem a comunidade pesqueira como um todo”), e explica que “as associações vão receber assessoria técnica para escrever e formatar os projetos” [grifo nosso]. A ordem não estaria por acaso inversa? A “assessoria técnica” não começaria talvez “formatando” a cabeça dos pescadores e “das suas mulheres” com relação ao tipo de projetos a serem escritos? Incluindo o fato de que lutar pela Regularização dos Territórios das Comunidades Tradicionais Pesqueiras é algo totalmente desnecessário?

O release informa que na primeira etapa, “a MMX investiu R$ 2,3 milhões em projetos de 11 associações de pesca artesanal”, gastos em “obras estruturais”.  E lista as Associações “contempladas” e as “bondades” recebidas:

  • “Associação dos Pescadores e Lavradores da Ilha da Madeira (APLIM) – A MMX reconstruiu a sede da associação e instalou cozinha industrial, sala de informática, salas para cursos e reuniões.
  • Associação de Pescadores e Marisqueiros de Muriqui (APEMAM) – A MMX construiu um mercado de peixe, com área apropriada para a comercialização com oito boxes, câmara fria, sala de armazenamento de materiais e escritório.
  • Associação dos Pescadores Artesanais de Sepetiba (APAS) – A companhia reformou a câmara fria e comprou um veículo para transporte do pescado.
  • Associação dos Maricultores de Mangaratiba (AMAR) – implantação de fazendas marinhas, com compra de sementes, balsas e long-lines. Os aportes também permitiram a capacitação de todas as famílias de maricultores associadas.
  • Associação dos Pescadores Artesanais do Rio São Francisco (APASF) – Em Santa Cruz, a MMX investiu na construção e instalação da fábrica de gelo e apoio institucional.
  • Associação dos Pescadores e Maricultores da Ilha da Marambaia (APMIM)– construção da sede da entidade e de uma fábrica de gelo.
  • Associação dos Maricultores da Costa Verde de Itaguaí (AMCOVERI) –compra de um veículo e implantação de uma fazenda marinha.
  • Associação Livre dos Maricultores de Coroa Grande (AMACOR) – implantação de cinco fazendas marinhas.
  • Colônia de Pescadores Z-14 – construção de uma fábrica de gelo e aquisição de um caminhão para a comercialização do pescado.
  • Colônia de Pescadores Z-16 – construção de um centro comercial dentro da própria colônia, com máquina de gelo, câmara fria e boxes.
  • Associação de Maricultores do Litoral Sul-Mangaratiba (AMALIS) – Implantação de uma fazenda marinha  para produção de mexilhões e vôngoles”.

Suponho que todas as “fazendas marinhas” sejam rigorosamente ecológicas, mantendo total distância das práticas do hidronegócio, como as da carcinicultura, por exemplo… Também suponho que, paralelamente, a MMX esteja recuperando as águas da baía de Sepetiba das contaminações antigas e tratando de comprar e fechar a TKCSA, para que  o envenenamento não continue a acontecer! Enquanto (claro!) acaba com as vidas das pescadoras, pescadores e outras comunidades do seu “Superporto Sudeste”, mais conhecido como Porto do Açu.

O release das “bondades” da  MMX em relação à “pesca artesanal” informa ainda que “a seleção será feita por uma comissão formada por representantes da companhia e de um especialista da área acadêmica”.

A lista com os nomes dos cooptados será divulgada no dia 24 de agosto. Aliás – outra coincidência! -, dia do suicídio de Getúlio Vargas. Aquele que deixou uma Carta Testamento na qual dizia: “Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. (…) Mas esse povo … não mais será escravo de ninguém”.

E já que estamos no reino das citações, lá vai mais uma, que foi exatamente a epígrafe da minha tese: “A História não é uma velhinha benigna”. Mas cabe a nós aprender com ela, se queremos de fato dar um basta nisso tudo.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.