Pobreza rural: um dilema histórico. Entrevista especial com Lauro Mattei

“Não há dúvidas de que os principais obstáculos que entravam a realização da reforma agrária no Brasil se localizam em duas esferas: na estrutura política e no sistema judiciário brasileiro”, destaca o engenheiro agrônomo

“A questão agrária brasileira não pode ser relegada a um segundo plano quando se definem e se implementam políticas públicas com o objetivo de erradicar a pobreza, seja ela extrema ou qualquer outra expressão que se queira utilizar”. É com essa declaração que Lauro Mattei retoma o debate da reforma agrária e assegura que, embora o tema tenha ficado esquecido nos últimos vinte anos, ele deve retornar à agenda política do país, pois continua sendo “um instrumento decisivo para alterar o poder político rural que se impõe através propriedade da terra”.

Estudioso da temática há mais de 25 anos, o engenheiro agrônomo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina acompanha o desenvolvimento das famílias que vivem no meio rural e diz que a má distribuição da terra ainda dificulta o desenvolvimento da agricultura familiar no país. “A pobreza rural tem sua maior expressão nos espaços geográficos dominados pelos latifúndios, locais onde se observam elevados índices de concentração da terra”, aponta.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele destaca ainda que os problemas da distribuição de terra são históricos, de ordem política e jurídica. “A atrofia da ordem jurídica sempre impediu que processos reformadores avançassem no Brasil, o que facilitou a constituição de uma das sociedades mais desiguais do mundo”. E dispara: “Particularmente entendo que um país com mais de 90 milhões de hectares de terras improdutivas e com mais de 4 milhões de famílias de sem terras, além de apresentar índices de desigualdades econômicas e sociais alarmantes, não pode prescindir do uso de um instrumento eficaz – como é o caso da reforma agrária – para tentar reverter este cenário, seguindo o exemplo de muitos países que hoje são considerados desenvolvidos”.

Lauro Mattei é graduado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Santa Catarina, possui especialização em Políticas Públicas pela Universidade do Texas. Cursou doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e pós-doutorado na Universidade de Oxford. É professor associado dos cursos de graduação e de pós-graduação em Ciências Econômicas e do PPG de Administração da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Também trabalha como pesquisador do OPPA-CPDA-UFRRJ. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a estimativa da população que vive no meio rural brasileiro?

Lauro Mattei – Antes de apresentar alguns dados cabalísticos sobre a população que atualmente habita o meio rural do país, entendo ser necessária uma breve recuperação do processo histórico que culminou em uma das maiores transformações demográficas em um curto espaço de tempo de que se tem registro na história mundial.

Assim, é importante recordar que, ao se iniciar a industrialização efetiva do país (década de 1950), a imensa maioria dos brasileiros (mais de 70%) residia nas áreas rurais. Menos de 60 anos depois ocorreu uma inversão total desses percentuais, sendo que os dados oficiais recentemente divulgados revelam a existência de uma população majoritariamente domiciliada em áreas urbanas. Dessa forma, o Brasil é um caso excepcional de transformação da situação domiciliar em todo o mundo, não somente em termos da variável tempo, mas fundamentalmente em função da magnitude desse processo. Nesse sentido, entendo ser quase impossível compreender adequadamente a conformação urbana atual do país e todas as mazelas nela representada se não considerarmos os efeitos explicitados por esse fenômeno demográfico.

É nessa perspectiva que tratarei a dimensão demográfica do meio rural atual, chamando atenção que há, no mínimo, duas perspectivas analíticas. A primeira decorre de interpretações oriundas dos dados e estatísticas oficiais. Nesse caso, é sempre bom lembrar a forma com que essas informações são geradas. Mas antes de adentrar nessa essa questão delicada, gostaria de ressaltar que o Brasil tem um dos melhores sistemas de geração de estatísticas do mundo, não deixando nada a desejar em relação aos sistemas existentes em países como França, Inglaterra e Estados Unidos.

Dinâmica populacional

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE é o órgão oficial que há muitas décadas vem fazendo o acompanhamento da dinâmica populacional do país. A cada dez anos são realizados os Censos Demográficos, que nada mais são do que uma fotografia momentânea da população residente nas áreas urbanas e rurais. E aqui aparece a questão de fundo, uma vez que a definição do que é “área urbana” e o que é “área rural” não é uma prerrogativa do IBGE, mas sim uma definição político-administrativa das prefeituras municipais. Assim, a cada decênio cabe ao IBGE apenas atualizar as áreas censitárias com base nas informações fornecidas pelas administrações municipais. É nesse momento que – em função de interesses diversos – muitas informações administrativas não correspondem com a realidade.

Essa questão vem sendo amplamente discutida pela literatura especializada, mesmo que ainda não tenha sido incorporada pela metodologia oficial. Apenas destaca-se que, a partir do Censo Demográfico de 1991, foram criadas novas categorias censitárias que buscam atenuar os efeitos perversos das definições meramente administrativas.

É dessa forma que o Censo Demográfico de 2010 mostrou a conformação de uma sociedade brasileira eminentemente urbana, em que aproximadamente 85% do total da população reside em áreas consideradas administrativamente como sendo “urbanas”. Isso implica que a população rural se situava ao redor de 30 milhões de pessoas.

Mudanças em curso 

A segunda perspectiva analítica considera um conjunto de mudanças em curso no espaço rural, com destaque para as novas formas de uso dos recursos naturais, em que o rural passa a ser visto não apenas como local de produção agrícola, mas também para o aumento das relações de proximidade entre campo e cidade a partir de uma heterogeneidade de situações que se ampliam e para as relações mais interativas entre os dois meios geográficos – seja através de novas atividades produtivas que geram novas fontes de renda, seja através de movimentos pendulares de retorno no sentido urbano rural.

Com isso emergiram diversas metodologias alternativas para se delimitar o espaço rural e, consequentemente, a população que dele faz parte. Assim, com base em diversos critérios que também vêm sendo utilizados em outros países (áreas que não recebem os reflexos de regiões metropolitanas; municípios de pequeno porte; e áreas que possuem baixa densidade demográfica), é possível estimar que a população rural atual esteja ao redor de 50 milhões de pessoas, ou seja, quase o dobro daquela contabilizada pelo último Censo Demográfico.

IHU On-Line – O êxodo rural continua sendo um fenômeno presente no país?

Lauro Mattei – O êxodo rural assume atualmente uma característica bem distinta daquela verificada durante o período de modernização da agricultura brasileira. Naquela época (anos de 1960 a 1980), ocorreu um deslocamento massivo da população rural em direção aos centros urbanos em praticamente todas as regiões do país. Esse processo tinha duas vertentes básicas: por um lado, as transformações produtivas na própria agricultura, com a incorporação de modernas máquinas e equipamentos agrícolas e uso intensivo dos insumos químicos, especialmente dos agrotóxicos, e, por outro, a própria industrialização em curso no país que demandava mão de obra em escala ascendente.

A grande crise econômica vivida pelo país a partir da década de 1980 afetou fortemente o setor industrial, com efeitos negativos sobre a possibilidade de alocação da mão de obra rural. Mesmo após a estabilização da economia e recuperação das atividades industriais a partir da década de 1990, a possibilidade de alocação da força de trabalho oriunda das áreas rurais no setor industrial continuou limitada. Isso, porém, devido a um novo fator: a exigência cada vez maior de qualificação profissional.

Como as portas estão cada vez mais fechadas no setor industrial, desviou-se o fluxo da população rural em direção ao setor de serviços. Todavia, como esse é um movimento complexo que envolve o conjunto dos trabalhadores, não há espaço para todos. Decorre daí as taxas de desemprego, subemprego e o trabalho precário e informal, fatos que mantêm uma parcela expressiva da população em estado de pobreza e miséria, tanto no campo como nas cidades.

Situações distintas

Especificamente no meio rural ocorrem situações distintas. Por um lado, a modernização avança em vários setores, particularmente naqueles que estão sendo impulsionados pelo atual “boom internacional das commodities”. O problema está no fato de que são justamente esses setores que menos ocupam gente, uma vez que o processo produtivo é quase todo químico e mecânico. Por outro lado, o setor da agricultura familiar – por ter ficado por longo tempo sem ser priorizado pelas políticas governamentais – ainda é incapaz de gerar uma dinâmica socioeconômica que consiga absorver toda a população rural, especialmente em áreas que apresentam limitações histórico-estruturais, como é o caso da imensa região do Semiárido.

Mas existem outras razões que também explicam o êxodo rural em alguns estados e setores de atividades produtivas. Vou apresentar apenas dois exemplos regionalmente antagônicos, mas que fazem parte de um mesmo modo de produção. No primeiro exemplo, destaca-se a região de integração de suínos e aves no Oeste de Santa Catarina. Sabe-se que, com a reestruturação produtiva dos anos de 1990, as grandes empresas agroindustriais redefiniram suas plataformas produtivas visando ampliar a competitividade. Com isso o processo de integração se tornou verticalizado e passou-se a exigir escalas de produção a que parcelas expressivas de agricultores familiares – antes integrados – não conseguiram mais atender. A essas parcelas restou apenas o caminho da mudança domiciliar, fato este amplamente documentado pelos estudos demográficos catarinenses.

O segundo exemplo vem das regiões produtoras de frutas frescas que abastecem o mercado internacional. Além de esse processo estar cada vez mais assentado em sistemas produtivos ancorados na química e na mecânica, um fato novo passou a comandar o setor: a concentração e centralização do capital. Com isso pequenos produtores com dificuldades de competir nesses mercados acabam vendendo suas terras. Como o nível de geração de trabalho nesse setor é relativamente baixo, resta-lhes apenas o caminho da migração, geralmente em direção às cidades visando buscar novas oportunidades de reprodução social.

Em síntese, o êxodo rural continua existindo no país, porém sua magnitude é totalmente distinta dos períodos anteriores, bem como sua explicitação ocorre distintamente em cada espaço geográfico do país.

IHU On-Line – Quais as políticas públicas necessárias para mudar essa situação do meio rural do país e quais os principais desafios da conjuntura atual do meio rural?

Lauro Mattei – Há exatamente 25 anos (1987) quando iniciei minha carreira profissional como assessor dos movimentos sociais e sindicais rurais, discutia-se um conjunto de políticas de desenvolvimento rural que fosse capaz de articular as esferas da estrutura agrária, da produção e da comercialização agropecuária com políticas voltadas ao desenvolvimento humano dos trabalhadores rurais. Ao longo desse período são inegáveis os avanços nessa direção. Por exemplo, a extensão dos benefícios da previdência social à população rural representou um avanço extraordinário em termos de reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, de uma parcela da população trabalhadora que estava excluída até aquele momento dos mesmos benefícios sociais auferidos pelos demais setores da sociedade.

E qual era o argumento que as forças conservadoras (rurais, urbanas, mídia, finanças, acadêmicos, etc.) utilizaram no início dos anos de 1990 para tentar impedir essa medida elementar de cidadania? Afirmavam que a Previdência Social iria quebrar! Vejam só a hipocrisia brasileira, pois enquanto todos os meses eram transferidos bilhões de dólares do conjunto da sociedade para setores específicos, particularmente para a banca, um simples salário mínimo para uma pequena parcela da população virou o pandemônio durante anos. Hoje está fartamente documentado que a extensão da previdência social aos trabalhadores rurais não somente não quebrou a previdência como foi fundamental para recuperar a economia de uma imensa quantidade de pequenos municípios no interior do país.

A cantilena de sempre

Da mesma forma, o debate sobre a necessária mudança da estrutura agrária do país continua sendo secularmente impedido por essas mesmas forças conservadoras. Continuamos sendo um dos países mais injustos ao apresentar uma das maiores taxas de concentração de terra do mundo.

Na mesma toada, recentemente começaram a surgir reações contrárias ao apoio governamental à produção familiar, que representa mais de 80% dos estabelecimentos agropecuários do país. Mesmo que os argumentos sejam refinados, a intenção é a mesma cantilena de sempre: o governo está jogando dinheiro fora ao incentivar a agricultura familiar, pois ela não é competitiva para atender aos desafios internacionais do país. No fundo, esse argumento é uma reação à possibilidade legal (Lei da Agricultura Familiar) de se iniciar um processo mais democrático de transferência dos recursos públicos para todos os setores produtivos rurais do país.

Vejamos como essa argumentação aparece nos subterrâneos dos orçamentos anuais destinados à função agricultura. No ano de 2010, por exemplo, a agricultura familiar recebeu ao redor de 15 bilhões de reais, enquanto o setor patronal obteve aproximadamente 100 bilhões. Agora vejamos os dados do Ministério da Fazenda do mês de julho de 2011 sobre a dívida agrícola. Essa dívida atingiu naquele mês cerca de 160 bilhões de reais, sendo a agricultura familiar responsável por menos de 30 bilhões desse total. Talvez essas cifras expliquem por que a “bancada ruralista” sempre age de forma coesa.

Em síntese, o problema me parece estar menos na existência de políticas públicas – afinal existem dezenas delas direcionadas para o meio rural atualmente – e mais no sentido da ineficácia dessas políticas em promover mudanças profundas nas estruturas econômica e política que persistem nas áreas rurais e que acabam subjugando os interesses do conjunto da sociedade aos interesses de uma pequena elite agrária cada vez mais articulada às estruturas do comércio e das finanças internacionais. Os episódios recentes sobre a definição de uma legislação ambiental condizente com os desafios do século XXI (Código Florestal) é o exemplo mais acabado dessa estrutura arcaica de poder político agrário que se explicita no Congresso Nacional.

IHU On-Line – A reforma agrária continua relevante no contexto atual do país? Por quê?

Lauro Mattei – É importante recordar que ocorreu um debate clássico sobre a questão agrária brasileira nas décadas de 1950 e 1960 envolvendo os principais pensadores do país, ao mesmo tempo em que um movimento social (Ligas Camponesas) atuava no sentido de colocar a temática da reforma agrária no centro da agenda pública nacional. Com a implantação do regime militar, esse debate ficou bloqueado por mais de vinte anos, somente retornando à agenda a partir do ano de 1985, quando o governo da Nova República lançou o primeiro plano nacional de reforma agrária.

Nesse período verificou-se que ocorreu uma forte expansão da concentração da terra, a qual é medida pelo Índice de Gini, que na década de 1980 atingiu seu pico ao redor de 0,870. Nas décadas seguintes houve apenas pequenas oscilações, sendo que atualmente esse índice permanece ao redor de 0,8, o que significa um parâmetro extremamente elevado que situa o Brasil no topo da pirâmide mundial da concentração agrária.

Concentração agrária brasileira

Mesmo diante dessa concentração agrária brasileira, uma pergunta tem sido recorrentemente colocada: A reforma agrária ainda é uma questão pertinente para a sociedade brasileira no início do século XXI? Obviamente que se admitirmos a existência da “questão agrária”, então a resposta é positiva, ou seja, a reforma agrária é ainda um instrumento decisivo para alterar o poder político rural que se impõe através propriedade da terra.

Mas há diferentes visões sobre essa temática. Para as organizações dos trabalhadores rurais, a questão anterior não faz o menor sentido, tendo em vista que a reforma agrária continua sendo um tema extremamente atual em suas pautas de reivindicações, com expressão decisiva nas diferentes formas de lutas que são desenvolvidas (ocupações de terras, organização de assentamentos, redefinição dos sistemas de produção, etc.).

Contradições 

Já no meio acadêmico residem as maiores contradições deste debate. Uma linha composta por diversos grupos de pesquisadores das áreas das ciências sociais e humanas vem afirmando que o desenvolvimento agrário brasileiro das últimas cinco décadas rebaixou o problema fundiário, fazendo com que a reforma agrária deixasse de ser uma reivindicação nacional e um instrumento decisivo capaz de alterar os destinos históricos do desenvolvimento do país. Com isso entendem que a questão agrária perdeu a centralidade no debate nacional porque deixou de ser um instrumento impeditivo do desenvolvimento social e econômico.

Em grande medida, esses argumentos estão amparados no diagnóstico de que há uma ampla segmentação produtiva regional; de que houve uma redução do papel da agricultura no âmbito das atividades econômicas; de que o atual modelo agropecuário tem capacidade de atender às demandas de alimentos e de matérias-primas; e no diagnóstico de que está havendo uma urbanização da vida rural. Nessa lógica, defende-se uma reforma agrária regionalizada (em áreas de fronteiras agrícolas ou em áreas de conflitos agrários) com capacidade para responder pontualmente aos problemas fundiários localizados.

Uma segunda linha de argumentação é defendida por outro grupo de pesquisadores que passaram a defender uma reforma agrária de caráter mais “social” do que “econômico”, por entender que ela teria a função de gerar empregos, conter os fluxos migratórios e evitar a lumpenização do campo. Nesse caso, o papel da reforma agrária seria o de auxiliar no equacionamento da questão populacional do país, até que fosse completada a transição demográfica iniciada na última década. Para tanto, as políticas de um programa agrário dessa natureza teriam que ser menos produtivistas e mais voltadas ao não agrícola existente no espaço rural.

Obstáculos estruturais 

Finalmente, uma terceira linha de pesquisadores entende que diversos obstáculos estruturais do meio rural continuam a existir devido à existência de uma questão agrária “não resolvida”. Tais obstáculos se situam nas esferas econômica, política, social e cultural e revelam que o desenvolvimento das forças produtivas está travado por normas, costumes, rotinas, relações de poder, entre outras; fatos que decorrem de relações entre os proprietários de terra e o restante da população rural. Essas relações são fortemente marcadas pela condição desigual de acesso à terra e pela desigualdade de renda. Na verdade, trata-se de um grupo que sustenta a ideia de que a não solução da questão agrária continua sendo um impeditivo ao desenvolvimento equilibrado do país.

Particularmente entendo que um país com mais de 90 milhões de hectares de terras improdutivas e com mais de 4 milhões de famílias de sem terras, além de apresentar índices de desigualdades econômicas e sociais alarmantes, não pode prescindir do uso de um instrumento eficaz – como é o caso da reforma agrária – para tentar reverter este cenário, seguindo o exemplo de muitos países que hoje são considerados desenvolvidos.

IHU On-Line – Qual sua análise sobre a atuação do MST na luta pela reforma agrária no país?

Lauro Mattei – Inicialmente gostaria de registrar que, ainda enquanto estudante universitário, acompanhei o surgimento desse movimento no sul do país, o qual logo se transformou em movimento nacional e, sem dúvida alguma, se tornou um dos movimentos sociais mais expressivos do país no final do século XX.

Ao longo desses quase trinta anos de existência do MST tenho tido a oportunidade de analisar as diferentes fases de organização e de concepção desse movimento social. É importante ressaltar a fidelidade que esse movimento sempre teve com a luta pela transformação da propriedade privada da terra, por entender – corretamente em minha interpretação – que esta posse é sinônima de poder político, um poder que no Brasil também é sinônimo de opressão, de crueldade e de assassinatos, os quais permanecem impunes sob o manto do poder Judiciário.

Para mim, uma das grandes virtudes e vitalidade desse movimento foi manter sua rebeldia diante das injustiças e barbáries que se cometiam e ainda se cometem no meio rural do país. Nesse período, as elites econômicas e políticas do país por centenas de vezes tentaram silenciar a luta pela terra através de brutais assassinatos de lideranças, a grande maioria deles sem julgamento até os dias atuais. Mas a cada integrante do MST que tombava sob a brutalidade das forças conservadoras, dezenas de novos membros se juntavam ao movimento, transformando-o na mais expressiva força social que este país já teve em seus cinco séculos de história.

Patrimônio político

É justamente esse patrimônio político e social que tanto incomodou e ainda incomoda as elites brasileiras. Quem quiser provas disso basta ler os editoriais recentes dos três principais jornais do país, todos eles condenando o movimento de forma sumária, como se a estes meios de comunicação estivesse dado o direito de julgar o que é bom ou ruim para o país e/ou para a sociedade.

Esse mesmo procedimento também aparece nas formas de representação política das elites brasileiras em todas as esferas públicas. Assim, das câmaras municipais às assembleias legislativas estaduais e Congresso Nacional, a estratégia é sempre a mesma há aproximadamente trinta anos : combate sem fim ao MST. No fundo, o que precisamos entender é que não se está apenas tentando combater o movimento dos sem terra, mas sim combater a luta pela reforma agrária.

É exatamente nesse contexto que as ações do MST se revestem de importância social e política, pois elas desvelam uma realidade social, econômica e política que sempre se buscou acobertar. Por isso, vejo com extrema preocupação comportamentos que começam a aflorar também na academia brasileira, cuja argumentação está indo na mesma direção da argumentação das elites anteriormente mencionadas.

Ressalto que a importância fundamental desse movimento está no fato de conseguir mostrar que a luta pela reforma agrária não deveria ser apenas uma bandeira dos trabalhadores rurais sem terra, mas do conjunto da sociedade brasileira. E isso decorre de um fato óbvio: todas as nações que fizeram a reforma agrária foram capazes de gerar também enormes benefícios para todos os segmentos sociais.

IHU On-Line – Quais os principais obstáculos para a realização da reforma agrária no Brasil?

Lauro Mattei – Parece-me que não há dúvidas de que os principais obstáculos que entravam a realização da reforma agrária no Brasil se localizam em duas esferas: na estrutura política e no sistema judiciário brasileiro.

No primeiro caso (a ordem política), observa-se que desde o processo colonizador existe uma continuidade que liga o passado ao presente, ou seja, que liga a sociedade agrária (passado) à sociedade industrial (presente). Essa abordagem evolutiva apresenta um conjunto de elementos da formação histórica que vão marcar toda a trajetória do desenvolvimento do país. Do descobrimento aos dias atuais algumas marcas permanecem intactas e atuando, inclusive, no sentido de perpetuar esse processo. Um primeiro aspecto a ser registrado nessa direção é a natureza exploratória dos recursos disponíveis no território. Se no passado colonial o caráter dessa exploração se encontrava assentado na grande propriedade privada da terra e no trabalho escravo, hoje ele permanece amparado na grande propriedade privada das terras e na propriedade privada dos demais meios de produção e encontrando no trabalho livre seu substrato de acumulação e de valorização.

Passado X presente

Esse movimento condicionou e ainda condiciona a vida material do país. Os traços gerais dessa materialidade econômica se circunscreviam – no passado colonial – à produção do excedente para exportação. Isso levou à organização de um sistema produtivo assentado na exploração agrícola em larga escala e nas monoculturas. No tempo presente, a exploração econômica agrícola continua organizada da mesma maneira e cumprindo – certamente de forma mais consistente – um papel decisivo no conjunto da produção econômica do país. Ao mesmo tempo, a evolução industrial mostrou uma trajetória semelhante, considerando-se que as grandes empresas dominam com frequência cada vez maior a lógica produtiva nacional.

A partir daí se estabeleceram relações de dominação que se perpetuam no tempo. Mesmo que de vez em quando se esboce um movimento de mudança, normalmente isso ocorre no sentido de preservar regalias e vantagens de uma determinada camada social sobre os demais. No passado colonial esse aspecto se explicitava na figura do coronel, o qual se sentia no direito de usar e abusar das camadas submissas em proveito próprio ou de seu grupo social.

No presente essa dominação política se explicita cada vez mais na defesa de interesses de castas privilegiadas que, sob o desígnio do interesse nacional, nada mais fazem do que defender seus próprios privilégios. A ação da bancada ruralista desde a Constituinte de 1987, tanto no Congresso Nacional como nas distintas estruturas governamentais, é o exemplo mais puro dessa forma de representação política.

Atrofia jurídica 

Obviamente que essas posições sempre encontraram e continuam encontrando eco e respaldo no poder Judiciário. Historicamente, a constituição dessa estrutura de poder nunca deixou de ser a representação legal de interesses de grupos privados, como se estes fossem os interesses do conjunto da sociedade. Se no passado colonial sua formação decorreu dos interesses das elites ligados ao império lusitano, no presente republicano o poder Judiciário nada mais é que a síntese da representação jurídica das camadas sociais elitizadas que dominam os diversos setores econômicos e que se revezam no exercício do poder político de forma secular.

É essa atrofia da ordem jurídica que sempre impediu que processos reformadores avançassem no Brasil, o que facilitou a constituição de uma das sociedades mais desiguais do mundo.

IHU On-Line – Qual o cenário atual da pobreza rural no Brasil?

Lauro Mattei – Em primeiro lugar, gostaria de deixar bem claro que as concepções sobre pobreza não podem ser reduzidas apenas à esfera monetária (renda per capita familiar). Entendo ser necessário um olhar mais profundo sobre diversos fatores relacionados às privações, os quais podem explicar de forma mais contundente as causas estruturais que estão na raiz de geração do fenômeno da pobreza.

Por isso, falar da pobreza rural requer situar o debate numa perspectiva histórica, o que pressupõe entender a conformação histórica e social do país e suas particularidades, especialmente nas áreas rurais. A partir daí é possível afirmar que a pobreza rural não pode ser concebida como um fenômeno natural, pois se trata de um processo sócio-histórico construído pelo homem e que tem na ordem estrutural o seu determinante fundamental.

Do ponto de vista histórico, é fundamental observar que a estrutura da economia agrária brasileira prevalece até o tempo presente, ou seja, um sistema de produção dominado pela grande propriedade da terra, pelas monoculturas e pela produção voltada fundamentalmente aos mercados internacionais, o que modernamente está sendo denominado de “agrobusiness”. Impulsionado recentemente pelo boom mundial das commodities, esse modelo de desenvolvimento excludente aprofunda suas raízes seculares no meio rural do país e caminha para consolidar os interesses de um setor (o agrobusiness) como se esses fossem os interesses do conjunto da nação.

Pobreza rural 

Combinando um conjunto de mecanismos antigos (concentração da terra; uso intensivo de tecnologias modernas; relações exploratórias de trabalho; concentração dos recursos públicos) com um novo discurso e novas formas de ação (domínio político no Congresso Nacional; imposição dos interesses de classe como se fossem interesses da nação; articulações com demais camadas das elites do país), busca-se desqualificar o problema da pobreza rural sob o argumento de que o “modelo do agrobusiness” está sustentando a economia e demais setores da sociedade brasileira.

Mesmo que se procure minimizar o problema, a pobreza rural ainda é extremamente expressiva no país. Os dados da PNAD (IBGE, 2009) revelaram que 8.4 milhões de pessoas que faziam parte da população rural total (30.7 milhões de pessoas) eram classificadas como pobres (renda per capita mensal de até 1/2 salário mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 207,50); e 8.1 milhões de pessoas eram classificadas como extremamente pobres (renda per capita mensal de até 1/4 salário mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 103,75). Isso significa que no ano de 2009 aproximadamente 54% da população rural total era enquadrada como pobre. A distribuição espacial da pobreza rural revela que 53% do total de pessoas classificadas como pobres viviam no Nordeste, sendo que a mesma região respondia também por 70% do total de pessoas extremamente pobres.

IHU On-Line – A formação histórica da economia rural brasileira continua sendo um dos principais fatores responsáveis pela pobreza rural?

Lauro Mattei – Caio Prado Júnior costumava resumir esse debate através da seguinte expressão: “somos hoje o que nós éramos ontem”. Na verdade, ao discutir a formação histórica da economia rural brasileira, esse autor entendia que a mesma se assentou em três pressupostos básicos: monocultura em grandes propriedades; relações de trabalho escravocrata; e produção voltada para o exterior. E é a partir desses três elementos que podemos encontrar os determinantes da pobreza rural, inclusive nos dias atuais.

Diversos estudos realizados recentemente em diferentes regiões do país comprovaram uma questão indiscutível: a pobreza rural tem sua maior expressão nos espaços geográficos dominados pelos latifúndios, locais onde se observam elevados índices de concentração da terra. Nestes locais, as privações (água, terra, mercados, bens públicos) destacam-se como determinantes essenciais da pobreza rural. Em todos esses espaços verifica-se um fenômeno correlacionado: as microrregiões com maior concentração de terras são exatamente aquelas que apresentam os maiores índices de pobreza rural.

Além disso, no caso brasileiro a pobreza rural também está fortemente associada ao rápido processo de industrialização e de urbanização do país ocorrido a partir da segunda metade do século XX, o qual revelou uma grande contradição: por um lado verifica-se que ocorreu uma forte expansão da produção física de mercadorias em todas as atividades econômicas, mas por outro foram estabelecidos mecanismos que restringiram o acesso a esse conjunto de bens produzidos, o que proporcionou um alto grau de exclusão social, cujo resultado mais visível é a existência até os dias de hoje de elevados índices de pobreza.

Por mais que as teses “produtivistas” defendam que o país já resolveu o problema da produção agropecuária sem precisar fazer qualquer reforma em sua estrutura agrária – porém sem resolver o problema da pobreza –, trata-se de afirmar que a questão agrária brasileira não pode ser relegada a um segundo plano quando se definem e se implementam políticas públicas com o objetivo de erradicar a pobreza, seja ela extrema ou qualquer outra expressão que se queira utilizar.

IHU On-Line – Que cenários se vislumbram para o meio rural do país nos próximos anos?

Lauro Mattei – Vimos que o desenvolvimento rural brasileiro, especialmente no pós-guerra, foi implementado de forma subordinada aos interesses dos grandes proprietários que faziam da exploração extensiva das terras e da exploração intensiva da mão de obra a essência do seu processo de acumulação de riqueza. Esse modelo produtivo assentou-se no paradigma da “Revolução Verde” que, em essência, buscava a artificialização do ambiente natural, de tal forma que o homem fosse capaz de dominar as variáveis naturais e, com isso, homogeneizar os sistemas produtivos para facilitar sua manipulação. A consequência foi que aos poucos os tradicionais sistemas de exploração agrícola foram sendo substituídos por grandes explorações com monoculturas mecanizadas, tornando a atividade agrícola dependente de fatores externos a ela. Ao mesmo tempo buscou-se reduzir ao máximo a dependência do fator de produção relativo ao trabalho humano.

Paralelamente a isso, observa-se que parte da agricultura tradicional seguiu a lógica das policulturas e da diversificação produtiva, combinando a produção agrícola com a criação de animais. Nesse caso, observa-se que a diversidade de culturas se contrapõe ao modelo da monocultura. Para isso, predominam unidades produtivas com uso intenso do trabalho familiar e com menor dependência de insumos externos. Quando apoiado adequadamente, este sistema responde com significativos aumentos de produtividade e de produção, conforme foi recentemente documentado pelo Censo Agropecuário do IBGE (2006).

Sistema dual 

Com isso conformou-se um sistema dual de desenvolvimento rural, porém com enormes diferenças entre si. Teoricamente essa diferença poderia ser reduzida, caso as políticas públicas fossem direcionadas no sentido de combater essas contradições. Todavia, em função da realidade econômica e, especialmente, da forma de representação política atual, imagino um cenário futuro em que essas distâncias tendem a se aprofundar. E uma das principais razões que suportam essa hipótese diz respeito ao fato de que a questão da reforma agrária praticamente saiu da agenda de prioridades do atual governo.

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/509986-pobreza-rural-um-dilema-historico-entrevista-especial-com-lauro-mattei

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.