Racismo em cena

O tema igualdade racial ainda é uma realidade muito distante no Brasil. Essa afirmação foi constatada na última semana, quando, dando um passo a frente, o Supremo Tribunal Federal aprovou, em decisão unânime, o sistema de cotas raciais para ingresso em universidades federais. Por outro lado, são dados dois passos para trás, casos recorrentes de racismo explícito, como o ocorrido em um cinema na capital federal. A situação parece inacreditável, poderia até ser um roteiro cinematográfico: atrasado para um filme, o psicanalista Heverton Menezes discriminou Marina Serafim dos Reis, funcionária do estabelecimento, que se recusou a atendê-lo na frente dos demais que aguardavam na fila. Em um acesso de fúria, ofendeu a atendente de pele negra, alegando que ela não deveria estar ali lidando com gente, e sim na África, cuidando de orangotangos.

A afirmação chocou os presentes no local, que se mobilizaram e acionaram o segurança do shopping, localizado na Asa Norte. Acuado, o suspeito fugiu, mas as imagens registraram a cena. Sob vaias e acusações de racismo, Heverton correu para o seu carro e deixou o local transtornado. Pudera, pois se enquadrado no crime de injúria racial, previsto no artigo 140 do Código Penal, pode ser condenado de um a três anos de prisão, com acréscimo de multa. A bilheteira, ciente de seus direitos, deu queixa na 5ª Delegacia de Polícia, responsável pelo caso. Em seu depoimento, revelou as barbaridades que foi obrigada a ouvir: “Ele disse que eu era muito grossa e era por isso que eu tinha essa cor. Que ali não era o meu lugar, que eu não deveria estar lidando com gente, mas sim com animal”.

Em sua defesa, o acusado alegou que não foi racista com a funcionária, apenas “descortês”, e afirmou, ainda, que esteve no cinema, novamente, na última terça-feira, e que teria sido bem atendido por Marina – a funcionária negou essa informação. Para justificar seu comportamento na fila do cinema, reafirmou que não tinha sido racista e nem tinha proferido as palavras que a bilheteira e diversas testemunhas ouviram.

Muito pelo contrário, de acordo com sua memória, tinha sido muito gentil com a funcionária e esta, por sua vez, é que tinha sido grosseira e descortês em seu atendimento. Aliás, essa foi a única palavra que ele utilizou para se defender da suposta grosseria com Marina Serafim: “Não entendo por que a palavra ‘descortês’ causou tanto mal-entendido”.

A frieza com que o psicanalista explica o que aconteceu na última semana, nem Freud explica. Porém, o que Heverton Menezes classificou como um simples mal-entendido pode levá-lo à cadeia. Para agravar a sua situação, a Delegacia constatou que não é a primeira vez que ele comete esse tipo de atrocidade. Em 2002, ao tentar furar a fila durante a votação eleitoral, ele ofendeu uma mesária, também por racismo, levando-o a ser indiciado por injúria discriminatória com cunho racial. À época ele teria dito à mesária: “Isso aqui parece uma republiqueta das bananas e você a representa muito bem, sua negrinha”.

Além disso, segundo a 5ª Delegacia de Polícia, já foram abertas nove queixas crime contra Heverton Menezes, dentre elas, três por injúria. Outras ocorrências contra ele envolvem lesão corporal ou desacato à autoridade. Apesar disso, o médico não responde a processo ou sanção judicial. A dificuldade para comprovar os crimes é o principal empecilho para colocá-lo atrás das grades, além do medo que algumas pessoas têm de prosseguir com a denúncia. “Em alguns casos, as testemunhas não comparecem. É difícil”, afirmou Marco Antonio, delegado da 5ª DP.

Mas para Marina Serafim não faltou coragem de denunciar, e certamente ela terá a mesma coragem para ir até a última instância em um processo judicial. Até porque, em sua defesa, ela conta com aliados de peso, como a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial – órgão da Presidência da República, e a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial – do Governo do Distrito Federal, assim como diversos movimentos e entidades não governamentais.

A atitude irracional vinda de doutor em psicanálise, que já foi identificado tanto pela Polícia Civil quanto pela vítima, trás à tona a pergunta: Porque negros, índios, brancos e mestiços, etnias que compõem a sociedade brasileira, que desde suas raízes coloniais é multirracial, em casos como este, não conseguem conviver harmoniosamente?

No Brasil, um dos maiores dramas para enfrentar e equalizar definitivamente esse tipo de atitude, como a do psicanalista, é admitir que somos acometidos pelo racismo velado, aquele que todos sabem que existe, mas que é, geralmente, negado.

A própria psicanálise explica essa dissimulação do racismo por meio do povo brasileiro: “porque somos o povo da cordialidade e da miscigenação”, alega a psicanalista Noemi Moritz Kon, organizadora do encontro “O Racismo e o Negro no Brasil – Questões para a Psicanálise”.

Em seu livro “O que faz do Brasil, Brasil?”, o sociólogo Roberto DaMatta lembra a teoria de outro sociólogo, Oracy Nogueira, que considera o preconceito no Brasil muito mais evoluído que o dos Estados Unidos, por exemplo. Isso porque ele não é fundado apenas pela questão da raça, mas também por origens econômicas. “A consequência disso, sabemos bem, é a dificuldade de combater o nosso preconceito, que em certo sentido tem, pelo fato de ser variável, enorme e vantajosa invisibilidade”. Quando este preconceito invisível se torna visível e vira caso de polícia, cabe à sociedade reunir-se e debater seus princípios e valores, que culminem, sobretudo, no que diz a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu segundo artigo: “Todos são abrangidos por todos os direitos e liberdades estabelecidos na Declaração, sem distinção de qualquer espécie, tais como raça, cor, sexo, língua, religião, política, origem nacional ou social, propriedades, fortuna ou qualquer outro status”.

As cotas, muito mais do que facilitar o acesso a universidades, coloca em debate o racismo no país. A economia posiciona o Brasil como a sexta maior potência mundial, em constante evolução. As condições sociais, também – créditos para o governo de Luís Inácio Lula da Silva, que melhorou a distribuição de renda, aumentando o número de pessoas que ascenderam à classe C. Portanto, este se torna o momento crucial para discutir que políticas afirmativas podem ser realizadas para eliminar esse tipo de ocorrência negativa de cunho racial, como a de Brasília, até que um dia, ao longo do tempo, se possa falar em igualdade de cor, gênero, religião e qualquer outra diversidade que exista.  Um debate que não precisa ter cor e nem ideologia, apenas o propósito de transformar, de fato, o Brasil em um país de todos e para todos, conforme defendia Lula em seu slogan de governo.

Ainda assim, a palavra igualdade soa como uma utopia. O psicanalista Contardo Calligaris explica: “O mito da democracia racial é um mito que serve unicamente aos interesses dos brancos. Os brancos estão perfeitamente tranquilos para dizer que o racismo não existe”.

O caminho adotado então, segundo especialistas, passa pela educação social. Porém, antes disso, o mercado de trabalho deveria reduzir a diferença do salário entre brancos e negros, que cai ano após ano, mas ainda é de 46,4%, segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), divulgados pelo Ministério do Trabalho no último ano. Isso sem citar o agravante de gênero, que faz com que mulheres negras recebam o menor salário médio no Brasil.

http://www.brasiliaemdia.com.br/component/content/article/94-edicao-792/624-racismo-em-cena

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