Mineradora descumpre acordo com Ministério Público em Conceição do Mato Dentro

Descendentes de comunidades quilombolas, Josefina Pimenta e Pedro se negam a fechar acordo com mineradora sem ter direito a nova propriedade

Empresa não garante posse de terra a famílias desapropriadas para implantação de mineração em Conceição do Mato Dentro

Zulmira Furbino

Pedrinho Surdo (Pedro Simões Pimenta) e sua esposa, Josefina Soares Pimenta, são lavradores e descendentes de comunidades tradicionais quilombolas na área rural da Mumbuca, em Conceição do Mato Dentro, na Região Central do estado. A lida na roça é dura e dá trabalho o dia inteiro. Por isso mesmo, o silêncio na casa de janelas e portas escancaradas, cortado somente pelos latidos de três cachorros vira-latas, soa estranho em plena quinta-feira durante o dia. Lá dentro, Pedrinho e Josefina estão dormindo. O sossego do casal, porém, esconde uma realidade perversa.

Como centenas de outros chefes de família que vivem na região, eles foram obrigados a vender a propriedade onde eles, seus avós e seus pais nasceram e viveram por toda a vida. E correm o sério risco de sair de lá sem a garantia de que serão legítimos proprietários das terras para onde serão transferidos, como já ocorreu com a maioria dos atingidos pelo projeto Minas-Rio da multinacional Anglo American, que tem investimentos estimados em US$ 5 bilhões na extração e transporte de minério em Conceição e na vizinha Alvorada de Minas.

Um acordo amparado pelo Ministério Público Estadual (MPE), pela Defensoria Pública de Minas Gerais e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), feito entre a empresa e os lavradores, obriga a mineradora não só a pagar pela porção de terra que está adquirindo dos legítimos donos, como seria de se esperar, mas também a compensar os proprietários, posseiros e seus herdeiros com terras e casas na microrregião onde sempre viveram. Além disso, eles deverão receber sementes, assistência técnica e cestas básicas por dois anos (R$ 115,2 mil) a partir do momento em que se mudarem. Mas não é isso o que vem ocorrendo.

A maior parte das famílias saiu de suas casas para a nova propriedade com um contrato de comodato – aluguel gratuito – com validade de dois anos nas mãos e não com a escritura da terra para onde estão se mudando. Além disso, quem já se transferiu não tem recebido a assistência técnica prometida. As reclamações são tantas que o Ministério Público Estadual (MPE) vai realizar audiência pública no dia 17 com as comunidades atingidas. Em meio à insatisfação geral, Pedrinho Surdo e Josefina, que puseram 11 filhos no mundo, mostram consciência de seus direitos.

Enquanto esperam o momento de se transferir para as novas terras e a casa nova, a pequena propriedade onde produziam mel, fubá, hortaliças, mandioca, frutas, leite e queijo para sobreviver, a exemplo de sua centenária parentela, está ociosa. O moinho de pedra, que fabricava o fubá, foi assoreado pela atividade mineradora e jogado no meio do mato. As abelhas, cujas colmeias produziam 80 litros de mel ao mês, foram soltas na mata, para tristeza de “seu” Pedrinho Surdo.

“Já recebemos 30% do valor (acertado com a empresa). O preço pago pela nossa terra foi bom. O lugar para onde vamos é até melhor do que esse e a casa também. É menor, mas tem revestimento no chão, não é de chão batido. O problema é que não tem jeito de sair daqui sem ter certeza de que a gente será proprietário dessa terra. Não vamos sair de jeito nenhum”, desabafa Josefina Pimenta. O lavrador João Moreira de Souza e sua irmã, Olendina Moreira de Souza, são analfabetos. Mas também se recusaram a assinar o comodato. Junto com o filho de João, Rômulo Vieira de Souza, eles venderam suas terras e receberam outras da empresa em Curvelo, também na Região Central. Hoje, vivem nessa área sem qualquer garantia de que continuarão por lá dentro de dois anos.

“São 220 quilômetros de Conceição até Curvelo. Se a gente perder essa terra, não temos para onde ir. A empresa ainda não quitou tudo o que deve ao meu pai e à minha tia”, reclama Souza. Segundo ele, a negociação entre a família e a empresa foi feita em agosto de 2011, mas os 30% só foram efetivamente pagos em fevereiro de 2012. “O cheque estava com data de agosto do ano passado. Eles não pagaram juros pelo atraso”, diz.

Também integrante da família Pimenta, Antônio Pimenta e seus irmãos são herdeiros de terras quilombolas, junto com um grupo de outras 58 pessoas. Ele e o irmão, além de outros parentes, se recusaram terminantemente a assinar qualquer contrato com a empresa e permanecem em suas terras. “Dentro do grupo da Ferrugem (comunidade da Serra da Ferrugem), sou o único morador que ficou.”

Resposta
Em resposta a esta reportagem, a Anglo Americam afirma que todas as obrigações assumidas em relação aos contratos de compra e venda dos imóveis estão sendo cumpridas rigorosamente. Segundo a empresa, caso haja qualquer consideração ou discordância quanto ao cumprimento de alguma condição, o lavrador que se sentir prejudicado deve procurar a empresa para falar do seu caso especifico, para que as explicações pertinentes sejam prestadas.

A multinacional se recusa a falar sobre a oferta de comodato. “A Anglo American não comenta os termos dos contratos que firma por tais contratos estarem amparados por cláusulas de confidencialidade e seus termos e condições dizerem respeito às partes contratantes. Caso algum dos contratantes tenha alguma dúvida ou questionamento em relação ao seu contrato, pedimos que entre em contato e exponha a sua dúvida ou questionamento.”

Quanto à falta de prestação de assistência técnica, a multinacional anglo-australiana sustenta que “as obrigações contratualmente assumidas estão sendo cumpridas na sua integralidade”.

Comodato no lugar da escritura

No contrato de comodato proposto à família Moreira – e que não foi assinado pelos remascentes das famílias tradicionais da região –, a Anglo American afirma que é “legítima proprietária e única possuidora” do imóvel rural Fazenda Forquilha, em Curvelo, para onde foi transferida. O documento afirma que o contrato vale pelo prazo de dois anos, contados a partir da assinatura. Findo esse prazo, “a área será devolvida pelo comodatário (Rômulo, sua tia e seu pai), nas mesmas condições em que foi entregue, independentemente de notificação judicial e extrajudicial.

No parágrafo seguinte, a empresa afirma que encerrado esse prazo, o contrato não será renovado de forma automática. A parte interessada na prorrogação deverá comunicar formalmente sua intenção à outra parte. O documento diz, ainda, que se a área não for desocupada no prazo estipulado, haverá multa diária de R$ 500 a ser paga pela família à empresa até a data da efetiva desocupação. Se eles tivessem assinado o documento e isso ocorresse, os lavradores pagariam multa e correção monetária sobre a dívida.

Em troca aos pequenos lavradores que assinaram um papel semelhante, e que já se mudaram ou se mudarão em breve, como um casal de pequenos produtores rurais que pediu para não ser identificado, a empresa diz que os beneficiários podem praticar na área todos os atos inerentes à qualidade de “possuidor” – e não de proprietário – e se compromete a fazer a “transferência de titularidade tão logo isso seja possível”.

Apuração

O promotor de Justiça da comarca de Conceição do Mato Dentro, Almir Geraldo Guimarães, afirma que as irregularidades serão apuradas e que o Ministério Público Estadual (MPE) discorda do termo de comodato que vem sendo assinado pelos superficiários que venderam suas terras à Anglo American e que receberam terrenos em outros locais. “Comodato significa empréstimo e todo empréstimo um dia terá que ser devolvido”, lembra. Segundo ele, o contrato não cumpre o termo de compromisso assinado com os atingidos e não é reconhecido pelo MPE como um instrumento jurídico de transferência de terra. “Só a escritura definitiva garante a propriedade.”

PALAVRA DE ESPECIALISTA » Direito garantido pela Constituição

Maria Elisabete Gontijo dos Santos – socióloga do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva
“Comunidades tradicionais, descendentes de quilombolas, como é o caso da maioria dos grupos atingidos pelo projeto da Anglo American, têm direito ao seu território garantido pelo artigo 69 do Ato das Disposições Condicionais Transitórias da Constituição Federal, que dá a elas a posse e o título da terra. Nesse caso, existem questões históricas, culturais e sócioambientais envolvidas. As comunidades vivem na região de Conceição do Mato Dentro há mais de 100 anos e não foram instaladas ali artificialmente. Trata-se de territórios historicamente ocupados, resultado de um processo de resistência à escravidão. Essas comunidades vivem em harmonia com o meio ambiente. A transferência para outros locais desagrega essas pessoas, que perderão uma cultura que vem passando de geração para geração.”

http://www.em.com.br/app/noticia/economia/2012/04/01/internas_economia,286600/mineradora-descumpre-acordo-com-ministerio-publico-em-conceicao-do-mato-dentro.shtml

Enviada por Pablo Matos Camargo.

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