Conjuntura da Semana. A questão ambiental está no cerne da tensão entre os movimentos sociais e os governos progressistas na América Latina

Nota: Onde se lê PEC 125, leia-se PEC 215. TP.

A esquerda latino-americana no poder continua presa a um modelo reduzido a lógica produtivista, onde o importante é o desenvolvimento das forças produtivas e o crescimento da economia. Essa concepção de matriz marxista aproxima-se do liberalismo, que também quer o desenvolvimento das forças produtivas. Distanciam-se apenas no instrumento de alavancagem do capital, para os primeiros esse papel cabe ao Estado; para os segundos, ao mercado. Nessa lógica a agenda ambiental não tem vez, porque é considerada um freio ao desenvolvimento das forças produtivas.

Com maior ou menor intensidade em todo continente latino-americano movimentos indígenas, camponeses e organizações socioambientais estão se posicionando e se mobilizando contra a execução de megaprojetos – rodovias, hidrelétricas, expansão do agronegócio, mineração, petróleo – que se abrigam sob o modelo (neo)desenvolvimentista. Hoje, no cerne da tensão entre os movimentos sociais e os governos progressistas na América Latina, encontra-se a agenda ambiental.

A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das “Notícias do Dia’ publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, com sede em Curitiba-PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.

Sumário

A ‘esquerda vermelha’ se transforma em ‘esquerda marrom
Conflitos ambientais explodem no território latino-americano
‘A água é mais preciosa que o ouro’. O grito que ecoa em toda a A.L
O caso brasileiro. Esquerda autoritária e perdida na agenda ambiental
Governos da ‘nova esquerda’ presos ao mantra do crescimento

Uma crítica ao modelo (neo) desenvolvimentista
Limites do modelo produtivista e consumista
Desenvolvimentismo e a esquerda. Uma crítica
Rio+20. A falta de ousadia

Conjuntura da Semana em frases

Tuitadas da Semana

Eis a análise.

A ‘esquerda vermelha’ se transforma em ‘esquerda marrom

A esquerda latino-americana é cada vez menos “vermelha” e cada vez mais “marrom”. A afirmação é do sociólogo uruguaio Eduardo Gudynas. Segundo ele, está ficando cada vez mais claro que os governos progressistas ou da nova esquerda se apoiam na exploração de commodities para alimentar o crescimento econômico. Tornamo-nos provedores de matérias primas para a globalização, diz ele.

Rompe-se, assim, o diálogo com o movimento verde e a esquerda de vermelha se transforma em marrom, destaca o sociólogo. O vermelho, cor símbolo da luta socialista, subordina-se à lógica do grande capital e, assumindo o modelo extrativista – primário exportador – provoca grandes impactos ambientais. O marrom é uma referência às crateras a céu aberto provocado pelos megaprojetos em curso em todo o continente.

O modelo extrativista patrocinado pelos governos de esquerda e, também, pelos de direita na América Latina é definido pelo escritor Raúl Zibechi como “apropriação dos bens comuns, direta ou indiretamente, para transformá-los em mercadorias”. O sociólogo venezuelano Edgardo Lander, comenta que “a principal fonte das contradições internas e das decepções com relação aos governos progressistas e de esquerda é que parecem, de fato, dar por óbvio que não há nenhum outro caminho possível senão o de um sistema baseado no crescimento econômico”.

Em praticamente todos os países da região, desde o México até o Chile, comunidades tradicionais e camponesas estão se levantando contra grandes projetos de desenvolvimento e de extração natural que, pegando carona no boomeconômico da América Latina e nos altos preços das commodities, estão promovendo uma nova febre do ouro em paisagens tão distintas como o deserto mexicano e a floresta amazônica, comenta o escritor Tadeu Breda.

A obsessão pelo crescimento, a aposta em megaprojetos e a flexibilização do aparato normativo que protege o meio ambiente está no cerne das tensões sociais que se assiste em todo o continente. Marchas, protestos, ocupações e mobilizações fazem parte do cenário da luta social na América Latina nos últimos anos e, na maior parte delas, o arranque das mobilizações são os conflitos ambientais.

Uma pequena amostra disso tudo se pode ver aqui mesmo no Brasil. A agenda da semana que termina andou às voltas com o Código Florestal, a PEC 125 e a polêmica do relatório que envolve a hidrelétrica de Belo Monte e sofreu tentativa de censura da ministra Maria do Rosário. Em todos os conflitos o denominador comum é a agenda ambiental.

Num breve olhar para os países vizinhos se vê o mesmo. A questão ambiental está no centro dos conflitos entre os movimentos sociais e os governos progressistas. Tome-se como exemplo o que vem acontecendo no Equador, no Peru e na Bolívia, mas também com grau diferenciado na Argentina, na Colômbia e na Venezuela.

Conflitos ambientais explodem no território latino-americano

Os conflitos ambientais permeiam a conjuntura do continente latino-americano. No Equador, o governo Rafael Correaenfrentou nos últimos dias uma marcha nacional contra suas políticas extrativistas.  O escritor Tadeu Brenda comenta que desde 2009, logo após a aprovação da Constituição Plurinacional, Rafael Correa sancionou uma nova Lei de Mineração que abre caminho para a exploração mineral em grande escala e a céu aberto. A partir de então, o movimento indígena deixou a coalizão política e social que havia possibilitado a vitória do presidente e passou para a oposição.

A ira do movimento indígena se deve ao fato de que Correa assinou recentemente contrato com a empresa mineira Ecuacorriente (ECSA), de capital chinês para a exploração de uma jazida de mineração na Cordilheira de Condor, na fronteira com o Peru, uma das áreas mais ricas de biodiversidade do país.

Trata-se de um dos cinco projetos de mineração considerados prioritários pelo governo de CorreaDecio Machado – citado na reportagem de Claudia Fanti – afirma que “é o primeiro governo que converteu a megamineração em uma atividade estratégica que deixa uma marca sobre o futuro modelo de desenvolvimento equatoriano”.

No último dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o movimento indígena equatoriano iniciou uma marcha nacional contra as políticas extrativistas do governo. A coluna saiu da província amazônica de Zamora Chinchipe, no sul do país, percorreu toda a região andina até a capital, Quito, no norte do Equador, onde chegou no dia 22, Dia Mundial da Água.

Correa, defendendo o projeto, disse que o seu governo alavanca uma mineração responsável social e ambientalmente, repetindo sua frase de que “não podemos ser mendigos sentados sobre um saco de ouro”. Os manifestantes, por sua vez, afirmam que não aceitam “sobreviver em um país devastado nas garras do medo ou da indiferença, um país com realidades paralelas de rios mortos e de rodovias idílicas, de pessoas ‘felizes’ com o seu punhado de dólares dados pelo Estado e de pessoas doentes por causa da contaminação minerária e petrolífera, de pessoas que se consomem no consumismo e de pessoas mortas em vida, sem memória nem identidade, desprovidas das suas florestas e da sua condição humana, entre árvores e animais massacrados”.

O escritor Tadeu Breda comenta: “Todos querem o desenvolvimento do Equador, claro: mas não concordam com os métodos do governo. Avaliam que o extrativismo de hoje é o mesmo que norteia a economia equatoriana desde sempre — e têm a seu lado a verdade histórica de que vender matérias primas para os países ricos pode até ter gerado riqueza, porém jamais trouxe desenvolvimento”.

No Peru, outra marcha nacional, dessa vez pelo direito à água. “A mobilização popular mais importante desde a época de Fujimori”, definiu Hugo Blanco – na reportagem de Claudia Fanti. No centro da marcha que aconteceu entre os dias 1º a 9 de fevereiro está a oposição a Conga, imenso projeto de mineração que prevê secar várias lagoas de Cajamarca, no norte do país. O projeto é liderado pelo grupo Yanacocha, a primeira empresa de extração de ouro na América do Sul e a segunda do mundo. No currículo dessa empresa, destaca-se, durante os últimos meses do governo Fujimori, o devastador vazamento de mercúrio em Choropampa, que custou a vida de mais de 70 pessoas e continua impune.

Rejeitado pelo próprio governo regional de Cajamarca, o projeto Conga, que conta com um investimento de quase 5 bilhões de dólares, ameaça destruir as reservas de água doce da região, produzindo, segundo os estudos de impacto ambiental do Ministério do Meio Ambiente, danos irreversíveis ao ecossistema e contaminando a bacia do rio Marañón, um importante afluente do rio Amazonas. “É um projeto altamente depredador afirmou Gregorio Santos – presidente regional de Cajamarca, que entra em conflito profundamente com o momento que vivemos no mundo, com o discurso do presidente Ollanta Humala” quando, depois de ter dito: “O que vocês querem, ouro ou água?” e ter recebido a resposta clara do povo: “Queremos água”, se comprometeu a “defender os recursos hídricos de Cajamarca”.

A mudança de posição de Humala, que insiste agora em explorar o minério se deve ao fato de que o preço do ouro subiu muito no comércio internacional. Destaque-se que no mesmo Peru em 2009, o governo de Alan Garcíapromoveu uma verdadeira matança de indígenas na localidade de Bagua, na Amazônia peruana, em decorrência dos protestos dos indígenas contra a entrega dos seus territórios a empresas extrativistas transnacionais para a exploração de hidrocarburos, madeira e biocombustíveis.

Na Bolívia, por sua vez, anuncia-se uma nova mobilização em defesa do Tipnis. Nessa crise que envolve o presidenteEvo Morales e o movimento social está a carretera de Tipnis – o projeto de uma rodovia, de 306 km que atravessaria os 1,2 milhão de hectares do Território Indígena e Parque Nacional Isidoro Sécure (Tipnis) onde vivem 13 mil indígenas moxeños, yurakarés e chimanes. As obras do trecho 1 e 3 já estão em andamento. O trecho principal, porém é o 2, que atravessa 177 km do Tipnis. A obra tem um grande interesse geoestratégico para a Bolívia e até mesmo o Brasil, como parte de um corredor de transportes entre o Atlântico e o Pacífico. Os indígenas não aceitam a rodovia e acusam o governo de não tê-los consultado sobre a obra.

Em setembro de 2011, uma Marcha indígena contra a construção da rodovia foi duramente reprimida. A dura repressão à Marcha desatou uma crise sem precedente no governo de Evo Morales e colocou em xeque o governo plurinacional e pluriétnico. Na época, Evo anunciou que estavam suspensas as obras e ao mesmo tempo pediu perdão aos indígenas. Agora, o tema voltou a gerar tensão no país. O Senado boliviano, com o apoio do governo, aprovou a realização de uma consulta para determinar se a rodovia em questão pode ou não atravessar o Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis).

Os indígenas temem aumento da pressão demográfica e da expansão da fronteira agrícola sobre o território. O governo argumenta que os indígenas das terras altas e vales, grupo majoritário, apoiam o projeto e apenas os indígenas das terras baixas são contra. Argumenta ainda que esses indígenas estariam sendo manipulados pelos grupos que fazem oposição ao governo.

O conflito está longe de terminar e na essência opõe modelos e visões diferentes. A Bolívia com a insistência de contruir a rodovia dá mostras de que também sucumbiu ao modelo desenvolvimentista. A elaboração da estratégica econômica na Bolívia tem como um dos principais mentores o sociólogo Álvaro García Linera que é o vice-presidente do país. Linera, marxista, intelectual respeitado, uma espécie de porta-voz autorizado dos objetivos estratégicos da Bolívia já disse que o governo busca “um capitalismo com maior presença do Estado”.

Segundo Tadeu Brenda a melhor maneira de entender as manifestações no Equador, e vale também para a Bolívia,  é ter em mente o conteúdo da Constituição Plurinacional desses países. A Carta garante uma série de direitos inovadores na América Latina. Três deles ganham especial relevância: os Direitos da Natureza, a Plurinacionalidade e o Bem-Viver.

Tais princípios não funcionam independentemente uns dos outros, diz o escritor: “Se a Plurinacionalidade outorga às comunidades indígenas autoridade para exercer sua cultura (língua, justiça, propriedade, economia) dentro de suas terras, os Direitos da Natureza garantem que o meio ambiente sob nenhum aspecto pode ser degradado para além de sua capacidade natural de regeneração. Isso significa, obviamente, um empecilho legal para as atividades econômicas extrativistas, hoje em dia responsáveis por mais da metade do PIB equatoriano. Por fim, o Bem-Viver é o projeto de desenvolvimento que resulta de um sistema que respeita as tradições ancestrais e os ciclos naturais do ecossistema em que se inserem. Daí que a marcha em curso no Equador se oponha prioritariamente às políticas extrativistas patrocinadas pelo governo”, diz ele.

‘A água é mais preciosa que o ouro’. O grito que ecoa em toda a América Latina

Retornando aos conflitos quem têm em seu cerne a problemática ambiental no continente latino-americano, também na Argentina, manifestam-se conflitos ligados à atividade de mineração. Em Catamarca, uma das províncias mais pobres da Argentina, a noroeste de Buenos Aires, a população está em pé de guerra. A maior parte das estradas está bloqueada há semanas por centenas de manifestantes contrários à exploração, pela empresa canadense Barrick Gold, da mina a céu aberto “La Alumbrera”. Na província vizinha de La Rioja, os habitantes protestam contra um outro projeto, da companhia canadense Osisko Mining Corporation, em Nevado de Famatina.

Também nos governos da direita, os conflitos ambientais abundam. Na Colômbia, uma grande mobilização popular levou o Ministério do Meio Ambiente a negar à empresa canadense Eco Ouro Minerals a autorização para um projeto de exploração de mineração a céu aberto em Páramo de Santurbán, em Santander, um complexo lagunar que fornece água a uma população de 2,2 milhões de pessoas.

No Panamá, após a mobilização dos povos indígenas Ngäbe-Buglé, que, dos dias 31 de janeiro a 7 de fevereiro, bloquearam a rodovia Panamericana recebendo um forte apoio da população, o governo de Ricardo Martinelli teve que se curvar às reivindicações indígenas, aceitando iniciar as negociações sobre a lei relativa à atividade de mineração e à construção de usinas hidrelétricas.

Crítica é a situação na América Central, onde centenas de projetos de mineração estão à espera de aprovação. Em Honduras, em particular, onde já haviam sido liberadas mais de 370 concessões, foram apresentadas, depois do golpe de 2009, outros 300 pedidos de exploração minerária, também a céu aberto. Na Guatemala, 56 municípios se proclamaram “livres da atividade de mineração” depois de forte pressão popular.

Como se pode perceber pelos acontecimentos citados anteriormente, na América Latina, o boom da mineração gera cada vez mais conflitos. “A água é mais preciosa que o ouro”, esse é o grito de guerra lançado em toda a América Latina por comunidades camponesas, ambientalistas e cientistas que denunciam o impacto ambiental e social da exploração de minas a céu aberto.

O caso brasileiro, esquerda autoritária e perdida na agenda ambiental

PEC 125, Código Florestal e hidrelétrica de Belo Monte, estiveram no centro do debate da conjuntura brasileira na semana que se encerra.

O caso da PEC 125 é emblemático nessa perspectiva. Em uma sessão tumultuada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou na semana que passou o parecer do deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), favorável à admissibilidade da proposta de emenda à Constituição (PEC) que transfere da União para o Congresso Nacional a prerrogativa de aprovar e ratificar a demarcação de terras indígenas.

Caso aprovada em definitivo essa PEC, significará uma verdadeira farra para os interesses de grupos na exploração ainda maior dos territórios indígenas e quilombolas. O secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cléber Buzatto, que acompanhou a votação da PEC com delegações indígenas de várias regiões do país, disse que notícia da aprovação foi recebida com “tristeza e indignação” pelas lideranças, que acreditam que a proposta é inconstitucional. “A PEC rasga a Constituição no que tange o direito dos povos indígenas e quilombolas sobre suas terras tradicionais.”

Cimi acusa o governo de negligência. Para Buzatto, o governo não fez nada para evitar a votação da proposta, pois o líder do governo não apareceu durante a sessão para tentar uma interlocução.  “Nem no momento em que a situação ficou tensa ele apareceu para demonstrar solidariedade. Estamos entendendo que, pelo contrário, ao não agir diretamente, o governo optou pela base vinculada ao agronegócio e à bancada evangélica”.

A aprovação da PEC 125 foi encabeçada pelo mesmo grupo no Congresso que está por detrás da flexibilização do Código Florestal. “Aprovação da PEC 215 – É a mesma turma que está pressionando para votar o Código Florestal”,tuitou o @CimiNacional

PEC 125Código Florestal estão na mesma lógica. O agronegócio quer uma legislação dócil que atenda aos seus interesses econômicos. Nesses temas o governo tem sido omisso. Como destacamos na última análise da conjuntura, a agenda ambiental e a agenda indígena não são estratégicas no governo Dilma Rousseff, não se inserem no projeto de Nação e, pior ainda, estão subordinadas aos setores conservadores.

Na mesma semana da aprovação da PEC 125, o governo, através da ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário, protagonizou ato vergonhoso e autoritário contra a livre manifestação dos movimentos sociais. De novo, o cerne do embate tem a ver com a agenda ambiental.

A ministra não concedeu a palavra aos representantes da sociedade civil convidados para a reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH). Na ocasião foi apresentado e votado o Relatório de Impressões sobre as Violações de Direitos Humanos da Terra do Meio, no Pará, executada pela Comissão Especial designada pelo CDDPH. Depois de apelar para o regimento interno do conselho, que diz que os presentes só podem se manifestar após a deliberação dos conselheiros, a ministra mudou repentinamente de pauta sem oferecer a possibilidade de fala.

A ministra queria que Belo Monte fosse retirado do Relatório. Em sua opinião, o documento deveria abordar especificamente a questão da violência no campo, e não denúncias de violações de direitos humanos em decorrência da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

“É um relatório sobre violência. A questão de Belo Monte é um capítulo desse relatório. Seria uma irresponsabilidade minha não colocar isso no documento considerando que as pessoas ouvidas, as comunidades indígenas, as entidades da sociedade civil e o próprio Ministério Público fizeram relatos de situações que podem configurar violência atual ou futura relacionada à construção da usina”, disse o jornalista Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil, que integrou e foi designado como relator da comissão especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) que verificou as violações aos direitos humanos na região conhecida como “Terra do Meio”, no Estado do Pará.

Não é de hoje que o governo não aceita e não tolera críticas à construção hidrelétrica de Belo Monte. O megaprojeto é uma dos mais caros do governo ao lado da transposição do S. Francisco que também foi notícia nesses dias. Apesar das reiteradas críticas da Igreja, da comunidade científica, de ambientalistas e do movimento social, o governo nunca aceitou voltar atrás no projeto.

O modelo neodesenvolvimentista que tem no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) sua síntese e se traduz em investimentos em  Infra-estrutura logística (rodovias; ferrovias; hidrovias; portos; aeroportos); Infra-estrutura energética (combustíveis renováveis; geração de energia elétrica; transmissão de energia elétrica; petróleo e gás natural) e Infra-estrutura social e urbana (metro, saneamento, habitação) desenvolve-se de forma autoritária. As vozes que questionam o modelo são taxadas de serem contra o progresso e a distribuição de renda.

Governos da ‘nova esquerda’ presos ao mantra do crescimento

Por trás das palavras de ordem do crescimento econômico, da atração dos investimentos e da promoção das exportações, os governos da América Latina argumentam, diz Eduardo Gudynas, que “o Estado capta parte dessa riqueza para manter a si mesmo e financiar programas de luta contra a pobreza”. Nessa ótica, continua o sociólogo, “a esquerda governante não sabe muito bem o que fazer com os temas ambientais”, acabando por ver neles, ao invés e além de vagas referências à questão ecológica e até de invocações à Pacha Mama, obstáculos ao crescimento econômico e, portanto, “um freio para a reprodução do aparato estatal e a assistência econômica aos mais necessitados”. Assistência que torna os governos cada vez mais dependentes da exportação de matérias-primas.

Como destaca Tadeu Breda, “com algumas pequenas características que mudam de país para país, está cada vez mais claro que os governos da ‘nova esquerda’ e suas políticas neodesenvolvimentistas não conseguiram corrigir as desigualdades mais profundas de nossas sociedades. Mais que isso, não ofereceram alternativas reais de desenvolvimento e bem-estar. Por isso, os povos estão se organizando e falando cada vez mais alto. É preciso escutá-los”.

Segundo a antropóloga Rita Segato na América Latina se tem, “um bloco mais sensível ao bem estar, mas que não consegue pensar a possibilidade de uma transformação, de uma melhoria na situação fora do projeto eurocêntrico. Não há uma ruptura. Ficamos ofuscados porque são governos de esquerda, mas essa novidade não é muito profunda. Entraram para competir, participar da concorrência para emergir como bloco dentro dos mesmos princípios e balizas do capitalismo global”.

Essa esquerda – no poder no continente – continua presa a uma leitura que se reduz à lógica produtivista, onde o importante é o desenvolvimento das forças produtivas e o crescimento da economia. Essa concepção de matriz marxista aproxima-se do liberalismo, que também quer o desenvolvimento das forças produtivas. Distanciam-se apenas no instrumento de alavancagem do capital, para os primeiros esse papel cabe ao Estado; para os segundos, ao mercado. Nessa lógica a agenda ambiental não tem vez, porque é considerada um freio ao desenvolvimento das forças produtivas.

Uma crítica ao modelo (neo) desenvolvimentista. Limites do modelo produtivista e consumista

Há uma crescente percepção, mesmo entre economistas de mercado, que os custos ambientais do modelo desenvolvimentista não podem ser ignorados.

Entre eles, encontra-se Eduardo Gianetti da Fonseca. Fã da economia de mercado, o professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) de São Paulo, alerta para os impasses do modelo produtivista e consumista. Segundo ele, é preciso uma mudança nos valores e na forma de produzir e consumir. Senão, diz o economista, a conta recairá sobre o meio ambiente. “E o ambiente não aceita desaforos”.

Gianetti é categórico nas suas críticas ao “custo ambiental das escolhas de produção e consumo”. Num contexto em que economistas e governantes comemoram o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), ele afirma que “a medida do PIB é muito burra, porque ela apenas registra o que passou pelo sistema de preços, sem saber o que, de fato, está acontecendo com a vida das pessoas”.

Na opinião de Gianetti, “a necessária transformação desses padrões de consumo, na direção da sustentabilidade, só será possível se os custos ambientais forem incorporados a um sistema de preços que hoje ignora a destruição do planeta.” Para ele, “os países que estão chegando tardiamente à festa do consumo não vão poder participar. Gostemos ou não. E o dilema é saber como compatibilizar as aspirações da nova classe média que surge no mundo, com os limites do padrão que nos foi vendido pelo projeto iluminista de progresso”.

Os governos alinhados à esquerda não têm conseguido propor alternativas que desvinculem a cidadania do exercício de consumir. O padrão do “american way of life” continua sendo a aspiração da emergente classe média mundial e “o cálculo da saúde econômica dos países tornou-se cego aos problemas ambientais que afetam a vida das sociedades hoje”.

Márcio Pochmann, outro economista reconhecido por sua análises do mercado de trabalho, soma-se àqueles que percebe a necessária revisão do padrão de crescimento do consumo material global. Sem isso, diz ele, o processo de mudanças climáticas dará continuidade, prejudicando principalmente os mais pobres, sempre mais vulneráveis aos efeitos da crise ecológica. Na opinião de Pochmann, “a perspectiva das nações não ricas para enfrentar a crise ecológica global não pode ser a mesma defendida pelos ricos”.

O jornalista e ambientalista Washington Novaes, que há muitos anos alerta para os riscos do modelo produtivista-consumista destaca que “o consumo global já está acima de 30% além da possibilidade de reposição planetária; em que já se perdeu também mais de 30% da biodiversidade total; e ainda é preciso avaliar as consequências de a população mundial caminhar dos 7 bilhões de indivíduos de hoje para 9 bilhões, pelo menos, até 2050.”

Apesar de todas as implicações citadas anteriormente, a lentidão dos governos latino-americanos, para o enfrentamento dos problemas ambientais, persiste. Movimentos sociais, pesquisadores e comunidades indígenasvêm se manifestando contrários aos grandes projetos de hidrelétricas, de extração mineral e da pífia política ambiental na América do Sul, que insiste em seguir o receituário predatório dos ditos “países desenvolvidos”.

Desenvolvimentismo e a esquerda. Uma crítica

Nestes últimos anos, a América Latina tem contado com um grande número de governos provenientes de partidos de esquerda ou, ao menos, em oposição à tradicional direita. No entanto, a dificuldade de mudança estratégica na agenda desses novos líderes políticos, tem demonstrado a fragilidade nas tomadas de decisões que ultrapassem o prisma desenvolvimentista, bastante desconjuntado das atuais demandas socioambientais.

No Brasil, segundo José Luís Fiori, nos anos de 1950, três instituições tiveram um papel central para o chamado “desenvolvimentismo de esquerda”. Primeiro, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que apoiou a eleição deJuscelino Kubtischek, em 1955, numa perspectiva etapista para se chegar à revolução socialista. A segunda instituição foi o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que reuniu um número expressivo de intelectuais de esquerda para um projeto nacional-desenvolvimentista. Por fim, as contribuições da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), que também influenciou fortemente o pensamento da esquerda desenvolvimentista, embora nunca tenha sido uma instituição de esquerda. Nos anos de 1970, eclodiu a Escola de Campinas, um centro de estudos econômicos que participou ativamente na formação do Plano Cruzado.

Neste início de século, em que governos progressistas se encontram no poder, para Fiori “o ‘desenvolvimentismo de esquerda’ estreitou tanto o seu ‘horizonte histórico’ que acabou se transformando numa ideologia tecnocrática, sem mais nenhuma capacidade de mobilização social”. A agenda neoliberal provocou um deslocamento do debate para o campo da macroeconomia. Na análise de José Luís Fiori, “o ‘neo-desenvolvimentismo’ acaba repetindo os mesmos erros teóricos do passado e propondo um conjunto de medidas ainda mais vagas e gelatinosas do que já havia sido a ideologia nacional-desenvolvimentista dos anos 50”. Portanto, ao que parece, a esquerda continua relutante em abandonar a velha cartilha, num momento em que a sociedade global precisa reinventar-se para dar conta de garantir o futuro das gerações.

Analisando a esquerda mundial, num de seus artigos, Immanuel Wallerstein destacou que um dos debates cruciais, de hoje, justamente acontece entre a perspectiva do desenvolvimentismo e o da prioridade na mudança de civilização, ligada aos riscos ambientais mundiais. Essa questão, por exemplo, “está presente na América Latina, nos debates fervorosos entre os governos de esquerda e os movimentos indígenas – por exemplo, na Bolívia, no Equador, na Venezuela”.

Impõe-se, portanto, a seguinte questão: como superar as seculares mazelas sofridas pelos povos latinos, numa perspectiva que ultrapasse o discurso desenvolvimentista, além do crescimento econômico baseado no consumo predatório?

Na opinião de Carlos Chacho Alvarez, secretário-geral da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração), no momento atual, “a maioria dos países latino-americanos voltou ao exercício de pensar em si por si mesmos, de estabelecer estratégias de desenvolvimento a partir de suas próprias necessidades e de seus interesses reais”. Ao partir de uma postura positiva, em relação ao momento pelo qual passa a América Latina, Alvarez defende que o projeto de desenvolvimento para o século XXI, nessa região, deve contar com o domínio da política e da democracia sobre o mercado, favorecendo a diminuição da pobreza e da desigualdade.

Tomar decisões políticas que rompam com o velho desenvolvimentismo economicista, atendendo as demandas históricas de uma população excluída de seus direitos sociais, políticos e civis, e agora, ambientais, continua sendo um desafio para os países latino-americanos.

Rio+20. A falta de ousadia

O debate da superexploração dos recursos naturais e os seus limites se dá no contexto da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento, a Rio+20 e não há muito otimismo com o que vem pela frente. O economista Ricardo Abramovay, destaca que no documento de contribuição brasileira à Conferência, o país não consegue fugir de “uma verdadeira apologia à maneira habitual de se conduzir os negócios, o chamado ‘business as usual’”.

E faz um questionamento: “se o país que vai abrigar a conferência não ousa apontar horizontes inovadores em suas posições, como esperar que a própria reunião desperte entusiasmo proporcional ao que deveria ser a sua importância?”

Segundo Abramovay, “é preocupante que em vez de preconizar rígidos critérios socioambientais na exploração de energia, commodities agrícolas e minerais, o documento brasileiro (mas isso aparece também em outros textos da conferência) insista no temor de que estes critérios possam ser usados, no comércio internacional, como barreiras não tarifárias”.

Se o país anfitrião parece não estar muito seguro do papel crucial que poderia assumir neste momento, simultaneamente à Conferência Rio+20, a Cúpula dos Povos, que ocorrerá no Aterro do Flamengo, com aproximadamente 10 mil pessoas, prepara-se para ser um espaço bastante propositivo. Diante do marasmo dos debates “oficiais”, movimentos sociais de todas as partes do mundo procurarão respostas concretas para a resolução dos problemas socioambientais.

Como ponderou Fátima Mello, membro do comitê facilitador da sociedade civil para a Rio+20, “a ONU só fala em combater a pobreza, mas não fala de combater a riqueza. O que nós vamos debater na Cúpula dos Povos é a tese da justiça ambiental. Esse conceito significa que existe uma imensa desigualdade nos impactos ambientais desse modelo de desenvolvimento.”


http://www.ihu.unisinos.br/noticias/507830-conjuntura

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