“Urânio em Nisa, Não!” em evidência

A apresentação no Cine-Teatro de Nisa, nos passados dias 12 e 13 de fevereiro, do documentário “Urânio em Nisa, Não!”, contou com a presença dos autores do filme – Robert Suchanek e Márcia Gomes de Oliveira –, que em conjunto com António Eloy, trouxeram, do Brasil para Portugal, uma extensão do “Festival Internacional de Filmes sobre Energia Nuclear”, de que foram mostrados em Nisa três filmes especificamente sobre a mineração de urânio.

O documentário que relata a forma como, em 2008, a população nisense se mobilizou para dizer não à exploração da jazida de urânio, assim como destaca as riquezas naturais do concelho, intitula-se com as palavras que deram também nome ao movimento “Urânio em Nisa, Não!”, constitui, segundo os seus autores – que há muito se dedicam à investigação e divulgação de informação sobre o tema –, um “exemplo único, especial que tem de ser mostrado ao mundo”.

Além de “Urânio em Nisa, Não!”, foram também apresentados em Nisa os documentários “Yellow Cake” (sobre o impacto das várias fases da produção de energia nuclear nos EUA, no meio ambiente e na vida das populações) e “A Sede do Urânio por água”, que se debruça sobre a prospecção e exploração de urânio na Namíbia.

Os organizadores do Festival, onde se incluem os autores do documentário sobre Nisa, aceitaram o convite do Jornal de Nisa para uma conversa em que procurámos conhecer um pouco melhor os nossos interlocutores, que partilharam o seu vasto conhecimento sobre mineração de urânio, energia nuclear e os riscos associados…

O que vos levou a interessarem-se por esta temática da energia nuclear e a organizar um Festival especificamente sobre o assunto?

Márcia Gomes de Oliveira (M.G.O.) – O Norbert participou num evento e trouxe filmes. Eu vi um filme aonde uma enfermeira media o nível de radioatividade de crianças em Chernobyl e em lágrimas, dizia: “Isso não pode nunca mais se repetir em lugar nenhum do mundo”. Quando eu vi isso pensei ‘todo o mundo precisa ver esse filme, precisa receber a informação, ser tocado para o que já aconteceu e que de facto não pode se repetir’. O Norbert já tinha uma ideia de um Festival, mas eu já tinha realizado vários eventos dessa natureza, sabia das dificuldades e não fiquei animada em fazer o Festival. Mas fui tocada por esse filme e percebi que a imagem de um filme é o instrumento mais eficaz para esse trabalho. Depois, 99% das informações sobre o tema não estão na língua portuguesa, então a tarefa, que já seria difícil, torna-se muito mais árdua, porque temos que transformar todas essas informações para o idioma português e toda a realidade do universo lusófono para o inglês, para ser percebida no mundo. Isso foi em 2006 e todo o processo de inscrição de filmes foi em 2010, para a 1.ª edição do Festival acontecer em maio de 2011. Fukushima aconteceu quando o Festival já estava em vias de ser realizado e o que aquela enfermeira falou… acabou por acontecer!

Norbert Suchanek (N.S.) – Em 2006 fui convidado para um Encontro Internacional nos Estados Unidos sobre populações afetadas pela indústria nuclear – mineração de urânio, centrais nucleares – onde estavam vários países e não estava nenhum de língua portuguesa… Então ali foi criada a ideia para mudar essa situação e fui convidado para fazer a conexão entre o mundo não português e o mundo lusófono sobre esse assunto…

No Brasil temos duas centrais nucleares e uma outra em construção (…) e o Governo de Wilma quer criar 50 centrais nucleares em todo o Brasil…

M.G.O. – E temos agora o primeiro submarino nuclear do Brasil em construção – o primeiro da América Latina -, que é um sonho dos militares há muito tempo e cujo concurso é de mais de 2 bilões de dólares… E temos a mineração de urânio: o Brasil teve a sua primeira mineração de urânio em Minas Gerais, que alimentou a central nuclear Hangra 1 e 2 e foi abandonada nos anos 90, e agora, desde 2000, há uma nova mineração na Bahia… O Governo já comemora o domínio de todo o “ciclo do nuclear”, desde a mineração até ao funcionamento da central nuclear, até ao enriquecimento do urânio…

E a opinião pública brasileira o que pensa sobre isso? As pessoas têm tomado posições a favor ou contra?

M.G.O. – Historicamente, o tema nuclear é associado à Segurança Nacional; vivemos 20 anos de ditadura e esse assunto, no meio intelectual onde havia esclarecimento, estava sendo proibido…

N.S. – Com a abertura política conseguimos parar a abertura de Hangra 3, em 1990…

M.G.O. – Houve alguma mobilização mas isso foi diminuindo, ao ponto de já começar a ser veiculada a ideia de que o nuclear é limpo. Em 2010, no momento das eleições presidenciais, a candidata do partido verde colocou na TV chamadas contra o nuclear, porque houve Fukushima…

N.S. – Nós fizemos o Festival no Brasil primeiro por causa da ignorância da população sobre o que é radioatividade; a população nunca foi informada sobre esse assunto, todos os filmes sobre energia nuclear foram feitos fora do Brasil…

M.G.O. – O festival tem o nome de “Uranium Film Festival” porque nós queremos popularizar a palavra urânio, porque as pessoas não sabem relacionar urânio com energia nuclear, com contaminação, com radioatividade, com alteração de DNA para futuras gerações… Não existe essa conexão. Este festival presta um serviço público de informação!

Estão já a preparar a 2ª edição no Brasil, em Junho deste ano. Em relação à extensão portuguesa do Festival, é para continuar ou não?

M.G.O.  – A ideia é continuar até porque a cada dia temos mais filmes e mais informação. O Festival tem uma base de 30 filmes para serem vistos, num evento… Estamos buscando apoios, parcerias e pessoas interessadas para que ele se consolide em Portugal, em salas de cinema, com organizações interessadas em receber, organizar e divulgar o Festival.

N.S. – Este festival sobre energia nuclear também tem um potencial turístico porque há várias populações, pessoas a favor do meio ambiente, ecologistas, pessoas que gostam de ver filmes internacionais… No nosso primeiro Festival, em Santa Teresa, também um centro turístico do Rio de Janeiro, tivemos muitas pessoas de vários países…

Como tiveram conhecimento sobre o caso de Nisa e o que é que vos motivou a fazer o filme “Urânio em Nisa, Não!”?

M.G.O.  – Nós estávamos pesquisando sobre o assunto nuclear no Brasil e tivemos acesso a um trabalho científico, se não me engano da Universidade Federal de Pernambuco, que citava o urânio de Nisa. Imaginei Nisa na região do nordeste, mas eu só conhecia a mineração de Minas Gerais e da Bahia… que lugar é esse? Aí chegamos a uma jazida de urânio em Portugal e ficamos sabendo que a comunidade local havia se manifestado contra a exploração da mina. Isso nos chamou muito a atenção, por dois aspetos fundamentais. Pelo facto de uma comunidade se manifestar por si só e pelo facto, essencial para o nosso trabalho, dessa manifestação ter acontecido numa comunidade de um país lusófono. Isso foi muito importante. Conseguimos chegar aqui, fomos recebidos pelas pessoas do MUNN (Movimento Urânio em Nisa Não) em Janeiro de 2009 e realizamos o filme com o intuito que a própria sociedade portuguesa perceba e valorize essa ação e também levar para o Brasil esse conhecimento, fazer essa ponte de comunicação… Imagine a população que hoje vive na mineração na Bahia vendo esse filme! Quando a pessoa assiste um filme e a população é da Suécia ou do Canadá, existe um sentimento de distanciamento, agora quando vê que é uma população que fala a sua língua, isso cria uma relação que é o que faz parte do nosso trabalho, essa relação a partir da comunicação…

Referem Nisa como um caso raro por se ter manifestado. A que acham que se deve esta tomada de posição por parte da população e porque é que é tão rara esta atitude?

M.G.O. – Por si só, a atitude da prevenção é rara, é muito comum “chorar sobre o leite derramado”, agora você ficar atento para o leite ferver no ponto…

N.S. – Isso é que faz do exemplo de Nisa único, especial… É uma história que temos que transportar para o mundo, para apoiar, para criar outros movimentos, porque neste momento temos países como a Alemanha ou a Suíça que estão fechando as usinas nucleares, mas temos um outro movimento em favor de mais mineração de urânio. No Brasil temos duas minerações de urânio, uma em construção e o Governo quer fazer mais três ou quatro minerações de urânio na Amazónia e no Sul do Brasil. Nós podemos mostrar esses filmes nessas comunidades que podem ser afetadas pela mina no futuro. A decisão pode ser feita agora, mas só com informação. O filme de Nisa mostra um exemplo positivo para informar “vocês podem também lutar contra”.

O acidente de Fukushima contribuiu de forma decisiva para alertar para os riscos do nuclear ou pensam que estando o assunto fora da agenda mediática as pessoas tendem a esquecer?

N.S. – O efeito de Fukushima foi muito claro na população da Alemanha, o Governo e todos pensaram à partida em fechar as usinas…

E no Brasil também teve esse efeito?

M.G.O. – Não! Já existe um trabalho, uma construção histórica, de que nós somos diferentes. Chegou ao absurdo de se ouvir que nós fazemos centrais mais eficazes que as do Japão! Eu escutei isso! A indústria nuclear no Brasil está atenta e trabalhando para que não haja essa relação: “nós não temos terramoto então qual é o risco que temos”? É lógico que Fukushima cria uma reação mas não vejo esse efeito…

N.S. – Não, porque no Brasil há ainda essa grande ignorância da população… No Brasil, o efeito Fukushima foi ter acordado o movimento anti-nuclear. Foi um efeito bem interessante. Já foram feitas depois manifestações em Brasília, manifestações no Recife, houve uma caravana anti-nuclear no nordeste do Brasil, onde o governo quer fazer quatro centrais nucleares… Isso foi o efeito Fukushima: um movimento pequeno, mas que está crescendo.

Acha que a possibilidade da extração de urânio em Nisa está posta definitivamente de parte ou não?

António Eloy (A.E.) – Definitivo é só a morte. O que é importante dizer é que a extração de urânio, neste momento, não tem condições de viabilidade aqui em Nisa por duas razões.

Uma é porque há forte sensibilidade da população, há um empenho da autarquia em desenvolver a sustentabilidade do concelho e há um projeto que Nisa abandonou e que não quer, que é o da exploração de urânio que é incompatível com todo o desenvolvimento da sustentabilidade, aposta nos recursos endógenos, no desenvolvimento de economia de proximidade, nos recursos autóctones, uma lógica da exploração da natureza de uma forma racional, o desenvolvimento das potencialidades do concelho.

Outra situação que, neste momento, também afasta a perspectiva de desenvolver a jazida é o que se está a verificar com o preço do urânio no mercado internacional, que já chegou a 140 € a onça e está neste momento nos 60 €, o que quer dizer que torna absolutamente inviável a exploração do urânio em Nisa.

A propósito de Almaraz que está aqui tão perto, a central nuclear representa uma ameaça real para esta região?

A.E. – Sim, o risco de Almaraz insere-se num quadro de probabilidade estatística, ou seja, é evidente que quanto mais anos de vida uma central tem, quanto maior é já o seu período de vida, maior é o risco e a probabilidade de haver um incidente/acidente. (…) As centrais foram projetadas inicialmente para um período de vida de 25 anos, que depois foi alargado para os 30 e neste momento já querem alargar para 40. Almaraz é uma central que vem do início dos anos 80, portanto está a chegar aos 30 anos…

Na sessão de apresentação do filme anunciaram que vão candidatar a um prémio internacional o MUNN e a presidente do Município de Nisa. Que prémio é esse e porquê essa candidatura?

N.S. – O “Nuclear Free Future Award” é um prémio para o futuro sem energia nuclear. Foi criado nos anos 90 por um grande ambientalista e jornalista na Alemanha, Klaus Biggert, que criou o 1º encontro mundial com povos afetados pela mineração de urânio (…) São atribuídos cinco prémios centrados nesta área.

Eu conheço esse prémio e achei que em Portugal, Nisa e o MUNN podiam ser candidatos e falei com o António Eloy sobre o que ele pensava sobre assunto…

A.E. – Nós achámos que havia aqui em Portugal várias hipóteses de candidatura – uma hipótese seria Ferrel, em Peniche; outra os mineiros da Urgeiriça. (…) O caso de Nisa, em que há o movimento da população, que é uma impressão digital, é o movimento que reúne todos aqueles que querem opor-se a uma perspetiva de desenvolvimento não adequado do concelho. Também penso que foi importante (e referi que essa ligação seria significativa) que a representante política, a Engª Gabriela Tsukamoto, se tenha oposto e tenha invertido inclusivamente aquilo que eram as orientações da anterior presidência da Câmara – antes de ela tomar posse – que era recetiva à ideia da exploração de urânio no concelho. Ela que se tinha oposto na escola e na sua atividade profissional, enquanto presidente da Câmara tem tido, com todas as precauções que o cargo implica, uma posição de apoio, primeiro limitada pelas razões que implicam precisamente um cargo executivo, e depois com maior empenho, quando achou que as condições objetivas já lhe permitiam ter uma voz mais firme. E tem sido também uma voz muito ativa, seja pessoalmente seja enquanto líder municipal, nesta atividade. Nós pensamos que esta junção do movimento social e de um protagonista político é muito significativo e mostra também uma identidade da terra e da comunidade.

Aqui em Nisa a luta tem de ser fortificada. Eu sou um pessimista, mas um pessimista é um otimista informado (…). Temos de continuar a dar informação, temos que continuar a manter-nos vigilantes, porque nada é definitivo.

Quanto mais se desenvolver a sustentabilidade local, os recursos locais, mais difícil vai ser introduzir a mineração de urânio, porque a mineração de urânio destrói isto tudo… Destrói o queijo, os enchidos, os passeios, o Geopark… destrói tudo o que se está a construir!

Teresa Melato
[Publicado na edição de 24 de fevereiro de 2012 do Jornal de Nisa (n.º 34, II Série)]
http://www.jornaldenisa.com/noticias/atualidade/2095-uranio-em-nisa-nao-em-evidencia.html
Enviada por Lúcia de Oliveira Fernandes.

 

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