Sem dinheiro, barco-hospital pode deixar ribeirinhos à deriva

Prefeitura de Santarém negocia a permanência do barco-hospital em abril, na Holanda. Foto: Adhara Luz

Por: Marcelo Pellegrini, Carta Capital

O Brasil enriqueceu e não precisava mais de ajuda – e quem ajudava está agora com problemas em meio à crise financeira na Europa. Com este argumento, a ONG holandesa Terre des Hommes quer encerrar suas operações no País e, com isso, deixar pouco mais de 15 mil pessoas, de comunidades ribeirinhas da Amazônia, sem acesso a atendimento de saúde. A ONG, busca reaver seu barco-hospital Abaré, que atua desde 2006 na região amazônica do rio Tapajós, no trecho que vai dos municípios de Santarém a Belterra.

“Com a crise financeira e o crescimento econômico brasileiro, a Terre des Hommes acha que não deve mais investir no Brasil. O que eles não entendem é que Amazônia não é a mesma coisa que Brasil”, afirma Fábio Tozzi, o médico coordenador da ONG Projeto Saúde e Alegria (PSA), que desenvolve ações de saúde no Abaré.

Com o barco-hospital Abaré, o PSA e as prefeituras de Santarém, Belterra e Aveiro realizam mais de 20 mil procedimentos de saúde por ano, e consegue resolver 93% dos casos. Ou seja, apenas sete em cada 100 pacientes precisam ser encaminhados a centros hospitalares urbanos. “Com o Abaré, conseguimos uma significativa melhora nos indicadores de mortalidade infantil e de qualidade de vida dos ribeirinhos”, diz Tozzi, salientando a importância local do barco.

O anúncio de que o barco deixaria de operar gerou uma campanha organizada pela população local com o slogan ‘#FicaAbaré!’. As manifestações surtiram efeito. Por enquanto o Abaré permanece nas águas do Tapajós, graças a um despacho do juiz Laércio Ramos, da 8ª Vara Cível de Santarém. Ele determinou que o barco hospital Abaré I, de propriedade da ONG holandesa, não poderá deixar o município de Santarém nos próximos seis meses.

Contudo, a decisão judicial é frágil e a permanência do barco na região ainda depende da boa-vontade da ONG, analisa Caetano Scannavino, coordenador geral do PSA. “O barco é de propriedade da ONG holandesa e, se ela desejasse, poderia facilmente derrubar a liminar. No entanto, o barco foi mantido (na região) por mais seis meses e estamos negociando sua permanência”, diz.

Caetano explica que uma das soluções seria a prefeitura de Santarém indenizar a Terre des Hommes pelo Abaré. “Está prevista para o dia 5 de abril uma visita de representantes da prefeitura de Santarém para a Holanda para iniciar as negociações”, conta Scannavino.

Unidade de Saúde da Família Fluvial

Em funcionamento desde 2006, o Abaré tornou-se modelo para a implementação do Programa Saúde da Família Fluvial, uma política pública nacional lançada em 2010, pelo Ministério da Saúde (MS). Assim, por meio da Portaria 2.191, regulamentou-se e destinaram-se recursos federais aos municípios de toda Amazônia e Pantanal interessados na replicação da experiência por meio de barcos-hospitais.

Com isso, o Abaré foi qualificado como a primeira Unidade de Saúde da Família Fluvial (USFF) do Brasil integrada ao SUS. “Nossa ideia é replicar esse modelo e utilizá-lo para interiorizar a medicina na Amazônia e no Pantanal brasileiro”, diz Caetano.

Desde janeiro de 2011, o Fundo Municipal de Saúde de Santarém conta com recursos do Ministério da Saúde próximos de meio milhão de reais anuais para uso exclusivo no custeio da embarcação e dos serviços assistenciais no Tapajós.

O exemplo bem-sucedido de parceria entre o terceiro setor e os órgãos públicos suscitou o aumento da autonomia e responsabilidades das prefeituras (Santarém, Aveiro e Belterra) que fazem uso do Abaré. Hoje, os atendimentos são médicos são de responsabilidade das Prefeituras e seus servidores. Cabe ao PSA apenas a cooperação para as ações complementares de saúde – como campanhas educativas, assessoria à gestão técnica, apoio logístico adicional, articulações com universidades, etc.

Falta de médicos

O Abaré também representa a oportunidade de resolver um problema crônico brasileiro: a falta médicos no interior do País.

Para Luiz Fernando Ferraz da Silva, professor da Faculdade de Medicina da USP, o Brasil tem uma estrutura hospitalar muito desigual e os municípios menores não conseguem oferecer a estrutura que o profissional de saúde precisa para trabalhar. “O clínico identifica a doença e prescreve o tratamento, mas o município não possui infraestrutura para tratar o paciente”, exemplifica.

Além disso, muitos profissionais optam por não deixar os grandes centros urbanos, onde têm acesso à cultura e à atualização profissional. Na tentativa de remediar este problema crônico, segundo Silva, os municípios pagam salários muito superiores (cerca de 50% a mais). “Trava-se uma verdadeira guerra para conseguir o profissional. Mesmo assim o que acontece é o profissional ficar um tempo, fazer um pé de meia e depois regressar ao grande centro”.

“A melhor estratégia para fixar o profissional é a residência médica. Nela o médico começa a mostrar seu trabalho, criar a sua rede de contatos e receber suas primeiras propostas de emprego”, completa.

É sob esta abordagem que o Abaré pretende começar a trabalhar e servir de exemplo para os futuros barcos-hospitalares. “O PSA quer realizar cursos para gestores públicos para barcos-hospitais dos municípios que serão contemplados pelo Programa Saúde da Família Fluvial e iniciar um programa pioneiro de residência médica. Para tanto estamos conversando com a USP e com Universidade Estadual do Pará (UEPA), a única faculdade que oferece o curso de Medicina em Santarém”, adianta Tozzi.

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