Professores Fulni-ô lutam por educação escolar indígena no sertão de Pernambuco

Foto: Renato Santana – Da esquerda para a direita: Almir, Paulo e Idiarrury, lideranças Fulni-ô

Estado interfere e professores indígenas resistem na defesa da prática escolar diferenciada

Renato Santana – de Águas Belas (PE)

Mal o dia começa a abrir seus olhos de luz sobre o mundo, os anciãos Fulni-ô reúnem um grupo com 20, 30 crianças. Entre bocejos e remelas, todos seguem do Ouricuri – ritual e território sagrado do povo – rumo à mata. As vozes ecoam na língua materna, o iatê.

Na terra úmida de orvalho e no frescor do verde, as crianças ouvem os ensinamentos e aprendem a observar a natureza. Conforme mito Fulni-ô, os homens eram animais em tempos imemoriais; entendê-los, portanto, é elemento fundamental da cosmologia Fulni-ô.

Todos os pequenos recolhem lenha, e sabem a razão do trabalho: alimentar a fogueira do Ouricuri durante a noite, quando ao redor dela as crianças sentarão para ouvir as histórias do povo contadas pelos mais velhos e com eles aprender sobre astronomia, valores, filosofia, língua.

O jovem professor Idiarrury Severo de Araújo passou por este processo de aprendizado e, hoje, na Escola Bilingue Antônio José Moreira, entende essa prática como fundamental e parte do currículo da escola indígena de seu povo.

“Lembro de pensar quando eu era pequeno: foi imitando o gavião amarelo e a jibóia que surgiram os guerreiros e caçadores de meu povo. Isso é parte da educação diferenciada, do currículo e da escola”, explica Idiarrury. Para Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco, porém, não é bem assim.

O sentido da escola

A escola Fulni-ô foi fundada em 1988 por iniciativa da própria comunidade, tendo à frente Marilene Araújo de Sá: “Temos que entender que é assim: nós dizemos ao estado como tem que ser a nossa escola. É preciso bater o pé e fazer o que tem que ser feito”, diz a indígena.

Quando a ideia da escola surgiu, ela veio acompanhada da necessidade de preservação da língua, da cultura, além de resignificar tudo o que veio de fora da aldeia no eclipse com as tradições do povo Fulni-ô.

Há oito anos, o estado começou a criar vínculos empregatícios com os professores. Dessa forma, passou a contestar e querer interferir na metodologia e currículo da escola.

“Tínhamos que mudar o nome da escola para homenagear políticos e personalidades do Estado de Pernambuco. Esse não é o perfil da escola”, destaca Idiarrury.

O nome da escola é Antônio José Moreira, homenagem ao professor de iatê e liderança dos Fulni-ô. Não sabia ler e escrever, mas foi um grande professor, conforme seus alunos atestam. Era também poeta e profeta do povo.

Discordâncias e resistências

As polêmicas com o estado se avolumam, de acordo com os professores. Entre setembro e novembro, os Fulni-ô entram na principal prática ritualística do povo: o Ouricuri. Tudo para na aldeia, inclusive as aulas. Por conta disso, o estado alega que a escola não cumpre as 200 horas-aula.

“O Ouricuri faz parte da escola, da educação. O estado não quer entender isso. Com o Ouricuri, passamos muito de 200 horas, porque é nele que nos fazemos Fulni-ô”, protesta Idiarrury.

Os Fulni-ô são o único povo que manteve a língua materna entre os povos indígenas de Pernambuco. No nordeste, só no Maranhão há outros povos com línguas preservadas. Dessa forma, as relações com o estado ganham em complexidade.

Os professores explicam que o estado também exige que todos descrevam o ensinado nas aulas. Surge aí uma profunda dificuldade: o ensino do iatê é intrinsecamente ligado ao Ouricuri, ritual sagrado e secreto; então, como descrever o ensinado se isso interfere numa tradição do povo?

“Tivemos inúmeras reuniões, mas eles não dão ouvidos, porque querem nos assimilar. A língua do nosso povo se proliferando é prova de que nossa pedagogia é correta. Infelizmente, a política de assimilação dos diretórios pombalinos continua, só que os diretores são outros”, ataca Idiarrury.

Escola, território e currículo

A escola é um território dos indígenas, defende Idiarrury. “Territorialidade é um eixo e nele está ligado o território. A escola e a educação são territórios. Dentro do território nós temos o físico, que são as terras, nós temos o mental, o filosófico, nossa cultura material e imaterial, a cosmologia, os costumes. Nossa mente é um território, que ainda querem colonizar. Querem tirar o nosso modo de ver o mundo e querem impor o deles”, entende o professor.

Para Idiarrury, uma das condições estruturantes da colonização é a tomada de território – e perversão da territorialidade. A escola, portanto, quando sofre interferência do estado, tenta ser dominada e colonizada.

“Então, se o estado vem e diz que não podemos contestar suas regras, e diz que as regras do estado é que devem ser estabelecidas, então ele está tomando o que é nosso, e colonizando. Não vamos deixar essa invasão acontecer”, destacou Paulo Pontes Luz Fulni-ô.

Nessa estratégia de resistência, uma das principais lutas dos professores Fulni-ô é pelo currículo. O estado, dizem os educadores, defende que os indígenas é que tem que definir o currículo da escola. Na prática, contudo, isso não acontece.

“Quando nossas propostas são feitas para os regionais, no nosso caso Garanhuns (PE), o estado começa a dizer não para tudo. Por quê? Educação diferenciada se dá pesquisando os valores do povo, entrevistando os mais velhos, aprofundando na história, trazendo as crenças”, defende Idiarrury.

Os professores não perderam tempo e já definiram outro local de aprendizado extraclasse: o conhecimento adquirido no campo de batalha do Brasil branco, que não permite a pluralidade.

http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6103&action=read

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.