Uma introdução ao problemático conceito da caridade

Por Fábio Py Murta de Almeida

Alguém saiu do ônibus vindo, um tanto desengonçado, em minha direção. Sentou-se ao meu lado. Sem problemas, pois em pouco tempo chegaria o ônibus que eu esperava para poder ir à Zona Sul do Rio. Agora, o curioso é que, além de sentar ao lado, o sujeito se aproximou quase que se encostando à minha perna. Comecei a ficar cismado.

Chegou perto a ponto de eu poder escutá-lo, sem que precisasse falar alto ou de gritar. É compreensível, pois a quantidade de carros e obras atrapalha qualquer conversa. Olhando o ilustre desconhecido de rabo de olho, um pouco mais detidamente (sem que ele percebesse), observei que trazia uma bengala na mão. Ora, devia ter alguma dificuldade na visão porque, embora usasse óculos fundos, seus olhos não fixavam num ponto. Concluí que podia enxergar, uma vez que, do contrário, não conseguiria atravessar a rua, saindo de um ônibus, e vir sozinho ao meu encalço. Disfarçando e olhando um pouco mais suas características, percebi que era magro a ponto de os ossos aparecerem; suas veias pareciam querer saltar da pele. Talvez isso fosse até sorte, pois seria mínima a sua preocupação com a moda.

“Percebi que era magro a ponto de os

ossos aparecerem; suas veias

pareciam querer saltar da pele. Talvez

isso fosse até sorte, pois seria mínima

a sua preocupação com a moda”

Na curiosa cena, ele, um meu total desconhecido, cruza as pernas e levanta a voz para que eu o escutasse: “chama o 49”. Ofereço um “como?”, apenas para ver se entendi bem. Sem dificuldade e/ou constrangimento, rompe o silêncio, repetindo: “chama o 49”. Fala sem pedir. Indica o que quer, vai direto ao ponto. Diz o que precisa. Não faz propaganda: tranquilo e resolvido. Antes que alguém crie algum sentimento de contrição, por ter dificuldade de visão, digo logo: não era abatido. Era magro, mas nada de fraco. Sabia o que queria. Mais até do que seu ouvinte-observador. Mesmo nos poucos momentos juntos, posso dizer que ele não era um “coitado”. Tanto é que ele me impõe uma função. Também, ao contrário do que o senso comum cristão-ocidental-capitalista incentiva, não buscava a “caridade”. Como me disse nas poucas palavras, queria (apenas) ir ao restaurante popular. Para isso, o 49 deixaria em frente.

Permitam-me ratificar: de fato, não pediu nada. Não queria vintém. Queria apenas a indicação de/para parar o ônibus. Deve ser por isso que pouco disse. Não deu muita bola para minhas palavras lançadas ao ar. Limitou-se a indicar que ia pegar o ônibus para não andar no Sol, indo comer no “popular” – no restaurante popular. Assim, tive de mudar um pouco de direção. Tinha de me preocupar com o bendito 49, para depois pensar em ir ao meu compromisso, para o qual eu já estava atrasado. Tomei para mim a tarefa, contando os ônibus, para ver se o transporte desejado passava. Daí, em alguns minutos (que mais pareciam horas), depois de vários ônibus, vem o desejado 49. Levanto e faço o sinal para o motorista que percebe o alguém na minha companhia, parando o ônibus de que precisávamos (ele precisava, não eu). Assim, sem pedir nada, sem apoiar, sem pedir a mão, seguiu para o ônibus. O máximo que me disse foi um “Feliz Natal”, ao que eu prontamente respondi.

Levando em consideração o trato com este “quase-amigo”, devo confirmar minha inconformidade com as narrativas do gênero. Isso porque, se fosse um discurso ligado ao senso comum dos proponentes cristãos, diria que a mensagem central do relato é de “ajuda ao próximo”. Fatalmente, sobre o prisma assistencialista-cristão, se diria que devemos ser “caridosos” com os outros, fazendo o bem para os “carentes” e “necessitados”. Neste tal senso, é um imperativo ético uma ação/ajuda como a minha. Afinal, “fazer o bem” é o dever dos homens e mulheres. Contudo, confesso que esse foco não me seduz. Esse não é o tom. Isso porque essa falácia esconde detalhes dos jogos sociais implicados por trás da nomenclatura-símbolo: “caridade”.

Sobre e junto a ela argumenta-se que é um valor imprescindível ao cristão. É que o caso do quase-amigo (e também, de todos os casos) bem pouco de substancial promove em termos de melhoras para o outro. Isso porque a “caridade” é um conceito que possibilita ao outro a migalha, um nada da parte daquele que tem. A equação é a seguinte: os que tanto têm normalmente dão algo como “favor”, mantendo a sonegação de todos os direitos que os menos favorecidos têm. Concordando com isso, Michel Lowy(1) é um dos que acreditam que o conceito de “caridade”, cunhado pelo complexo de tradições religiosas de traços cristãos, é um conceito importante para a manutenção do modus de vida liberal-capitalista. Por trás dele há a sonegação dos direitos mais básicos da humanidade, em prol de poucos que muito têm.

Anexada à ideia-símbolo de “caridade”, se ambienta a percepção do valor pró-ativo da “ajuda”. Principalmente nas religiões de traços cristãos, é imperativo ser um “ajudador”. Interessante é isso, pois, pensando em direitos humanos, tal título é difícil de ostentar, visto que já nasce caduco. Só seria válido se permitisse ao sujeito (e todos os quase-amigos imagináveis que passam por nós todos os dias) os mesmos direitos que os meus. Que, além de comer também nos restaurantes não-populares, todos pudessem ir e vir, sem precisar anunciar, ainda que nos sussurros, sua gritante necessidade. Assim, não basta apenas buscar “ajudadores”, que sejam cooperativos na ínfima ação de colocar alguém no ônibus, mas sim permitir acessos iguais. Isso sim seria digno de ser chamado de “ajuda”, pois transformaria a situação de meu quase-amigo e de todos os demais. Exigência demais?!

“Hoje, após tal

experiência, vejo quão

sério é a qualificação da

“caridade”. Ela que é

carregada como slogan

por diversas tradições

cristãs responsáveis em

aprofundar e ampliar dia-

a-dia mais e mais a

desigualdade social”

Penso que não, pois, embora admita que sem tal contato pequeno e rápido jamais eu poderia ultrapassar o medíocre mundinho de mim mesmo, olhando mais detidamente para as pessoas e suas questões, vejo que, como eu, elas também merecem a dignidade de uma vida bem melhor. Só pude olhar esse detalhe por que um “quase-amigo” cruzou minha história pela manhã, deixando-me desconcertado. Assim, agradeço a ele por ajudar na aproximação de detalhes pelos quais eu nunca havia adentrado. Hoje, após tal experiência, vejo quão sério é a qualificação da “caridade”. Ela que é carregada como slogan por diversas tradições cristãs responsáveis em aprofundar e ampliar dia a dia mais e mais a desigualdade social – marca do sistema capitalista no qual estamos chafurdados. Ao invés de permitirem mais acessos, como correntemente afirmam, suavemente ajudam a manter um status quo já mundializado, onde há um verdadeiro acinzentamento na percepção de que milhões de sujeit@s, pesso@s, coleg@s, quase-amig@s e amig@s têm diariamente suas vidas sonegadas.

Enfim, nessa linha de raciocínio, a “caridade” e seus conceitos afluentes não são um conjunto de idéias restauradoras e dignas da humanidade, mas apenas fazem parte das formas mais belas e dóceis de não se re-ver um sistema onde apenas uns poucos amigos – uma certa elite – se (a)firmam. Atentando para uma lógica de adormecimento para amplos direitos recusados, justamente por conta de um sistema capitalista-cristão, permito-me por hoje pensar em tom de denúncia, já que a estratégia das elites brasileiras e mundiais, ao usarem o conceito de “caridade”, permitiu isso, uma vez que o utilizaram e utilizam apenas para docilizar os corpos e amansar as vidas, com pequenas acomodações, numa farsa forjada para a justificação de um admirável modo de vida “caridoso” do capitalismo globalizado.

1 – Michel Lowy, “Ética católica e o espírito do capitalismo: o capítulo da sociologia da religião de Max Weber que não foi escrito”, Cultura Vozes, Petrópolis: Vozes, v.92, nº01, 1998, p.86-100.

Fábio Py Murta de Almeida é professor de história da Faculdade Batista do Rio de Janeiro (Fabat) e articulador do blog Hyperlink

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