A renúncia à lei humana mais fundamental, que justifica a tortura, destitui seus atores do título de homens para o de executores anônimos. O mal tem força para contaminar a sociedade e submeter o Estado de direito
Jean-Claude Rolland*
A estranheza onde se mantinha Tito por conta de sua identificação forçada com o delegado Fleury o cortava radicalmente de sua comunidade de acolhida, o isolava absolutamente. Os cuidados, a atenção a ele prestados vinham acompanhados, inevitavelmente, por uma espécie de suspeição de que haveria no seu “delírio” algo de simulacro, uma má vontade, uma recusa de viver; tal suspeição não era infundada, mesmo se lhe faltava lucidez. Pois, de fato, Tito não era mais Tito. Ele era (também) Fleury, e isso não era um fingimento, mas o efeito mecânico de uma intrusão do outro, por meio de suas palavras, reduzidas ao seu poder de penetração. A tortura, que abole a capacidade da linguagem de sublimar o real, abole ao mesmo tempo o poder do eu para lidar com o real e sua violência. (mais…)