Ladrões de galinha e o PDRS Xingu, por Claret Fernandes*

*para Combate Racismo Ambiental

Na casa do meu Avô, no interior de Minas Gerais, ladrões de galinha chegavam à noite em grupo e, dividindo-se, uns iam para o terreiro da sala e, enquanto assanhavam os cachorros na frente da morada, que ladravam enfurecidos, os comparsas passavam pelos fundos e faziam uma limpeza. Levavam mais que galinhas: carregavam rapadura, café, feijão, e tudo que achassem pela frente.

Essa encrenca repetiu-se anos a fio, em geral na época de colheita, com relativo prazo entre uma ação e outra para enrolar a memória. Até que um dia eles foram traídos pelo reconhecido chapéu do chefe do bando que, fugindo às pressas, com cães ao seu encalço, e atordoado com disparos de tiros de espingarda para o alto, foi deixado preso na cerca de bambu. E assim o mistério se desfez.

Algo semelhante à tática dos ladrões de galinha vem ocorrendo na região do Xingu, Amazônia brasileira, distante pelo menos três mil quilômetros da casa do meu Avô. É claro que não há cães nesse negócio aqui, – a não ser no seu sentido figurado -, os ladrões são mais robustos, e, os mecanismos de distração do povo, de entidades e de autoridades públicas, os mais variados.

O desvio de foco é perfeito! Graças a isso, Belo Monte caminha ligeira, apesar dos reclamos de atraso por parte do capital, e de forma extremamente arrogante e violenta, provocando retrocesso em direitos históricos dos atingidos e da classe trabalhadora conquistados com muita luta em outras regiões do Brasil.

Retroceder em direito significa inflacionar ainda mais o negócio das barragens.

O fato mais evidente no momento, apesar de ser um entre muitas dezenas, é a situação das famílias na área urbana de Altamira, onde concentra o maior número de prejudicados pela hidrelétrica: foram impostas casinhas de concreto, até hoje existem apenas 800 casas construídas, apenas 400 famílias foram transferidas para os loteamentos novos, a empresa já começa a revelar que ‘não conseguirá’ construir as 4.100 moradias necessárias em tempo hábil e algumas centenas de famílias residentes na área do futuro lago estão fora do cadastro da Norte Energia.

O governo Dilma Rousseff não é monolítico e sua parte ‘má’ vem se tornando robusta; a parte ‘boa’, com alguma sensibilidade social, está vivamente preocupada, mas perde na correlação de forças internas, tanto dentro do próprio governo – onde impera o Ministério de Minas e Energia – quanto dentro do grupo que tem poder de decisão na construção de Belo Monte.

Não seria exagero dizer que não existe uma pinguela sequer na Belo Monte da qual se pudesse dizer: ‘essa foi construída pela Norte Energia porque o governo a obrigou’.  A empresa faz o que quer!

A situação está tão constrangedora que a Presidenta veio por cá em visita ‘escondida’ no dia 5 de agosto, passando direto ao canteiro de obra, sem nada para mostrar do processo redentor antes prometido. Muito ao contrário!

Um dos principais mecanismos de desvio de atenção na região de implantação da barragem de Belo Monte, que corrobora de forma explícita com esse clima de negação de direito e de constrangimento, é o chamado Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu, em vigor desde 2011 até hoje. Ele faz o papel dos ‘ladrões de galinha’ que ficam atiçando os cães na porta da sala.

Idealizado no governo Lula e institucionalizado pelo Decreto 7.340, de 21 de outubro de 2010, o PDRS do Xingu teria como missão ‘implementar políticas públicas’ e fazer com que ‘a implantação de grandes obras de infraestrutura … fosse uma oportunidade para prover uma região historicamente caracterizada pela presença frágil do Estado de políticas públicas…’ (folheto de divulgação). Vendido hoje Brasil afora como avanço na implementação de direitos, ele simboliza e viabiliza o retrocesso.

O imbróglio do PDRS Xingu é uma coisa bem arquitetada. Com o objetivo aparente de trazer desenvolvimento para os 11 municípios da área de influência de Belo Monte (Altamira, Anapu, Brasil Novo, Gurupá, Medicilândia, Pacajá, Placas, Porto de Moz, Senador José Porfírio, Uruará e Vitória do Xingu – aproximadamente 400 mil pessoas), ele tem uma estrutura ‘democrática’ – até elogiável se tivesse inserido noutro contexto – e dispõe de um orçamento de 500 milhões a serem gastos num período de 20 anos, portanto 25 milhões ao ano.

O que parece detalhe são duas informações importantes: o tempo de duração do Programa é maior do que o tempo de construção da hidrelétrica e todo o seu recurso sai do bolso do povo brasileiro, através da conta de luz.

Nos anos de 2011 e 2012, a Norte Energia participou diretamente na execução dos projetos aprovados no PDRS Xingu, gastando 50 milhões, e fez a festa, colando sua imagem ao que se convencionou chamar desenvolvimento. Seus representantes apareceram algumas dezenas de vezes na foto, na reformazinha de uma escola ou na entrega de um equipamentozinho a uma prefeitura, associação ou sindicato.

Poderia haver alguma boa intenção nos idealizadores do PDRS Xingu, mas os capitalistas, representados na Norte Energia, não perdem tempo, e apropriaram-se dele num momento oportuno, e lhes foi extremamente útil.

Insatisfeitos, políticos de carreira da região resolveram mudar as regras e contrataram a empresa privada PM21 com a tarefa de montar e gerenciar os projetos e, curioso, os gastos em 2013 pularam para 40 milhões, coincidentemente às vésperas das eleições de 2014. É sabido que esse tipo de negócio nessas circunstâncias tem a função de formar caixa de campanha e de turbinar candidaturas interessantes para a manutenção do status quo.

Nessa nova ‘metodologia’, o PDRS Xingu continua cumprindo o seu papel de desvio de foco. Pessoas liberadas pelo Programa, pelas gestões municipais dos mais diversos partidos ou por entidades alinhadas realizam reuniões nas cidades e vilarejos e, enquanto os 11 municípios, as várias entidades e autoridades disputam entre si um curso de capacitação, um poço de água, a construção de um hospital, uma verba gorda para consultoria ou a doação de moto, carro, a barragem segue em frente.

Os próprios coordenadores do PDRS Xingu sabem, desde sempre, que o Programa não dá conta de resolver questões estruturantes crônicas da região. Hoje a tendência é a alegação de que o recurso é pouco para resolver os problemas e, então, se prioriza o gasto com consultoria para montar projetos; diz-se que depois se buscam os recursos, sabe-se lá onde. Apenas uma dessas consultorias relativa a estradas vai custar RS 3.563.850,00. É possível prever que empresas de consultoria ficarão mais ricas e algumas centenas de projetos de papel ficarão amontoados, aguardando financiadores.

Outra questão que trava o Programa é o despreparo de boa parte dos gestores públicos. Por vezes muitos deles não compreendem nem os conceitos. No dia 18 de Julho, por exemplo, em Brasil Novo, numa reunião do Programa, alguns secretários municipais e vereadores confundiram ‘estruturante’ com ‘estrutura física’ e reivindicaram construção de uma sede para a secretaria de educação e outra para a Câmara Municipal. É bom lembrar que Brasil Novo, prejudicada por Belo Monte, tem seríssimos problemas no abastecimento de água, tanto em qualidade e quantidade, e na assistência à saúde. Seu único hospital, que era privado, fechou as portas no início desse ano.

Em meio às espertezas e despreparos, o Programa cumpre sua função principal, que é ser Boi de Piranha, entretendo o povo. Lideranças caolhas, e oportunistas, sentem-se satisfeitas, e se acham na condição de gestores de recursos quando, na verdade, estão disputando os fiapos de carte restantes nos ossos, já babados, lambidos, e alguns até jogados fora. Políticos de carreira atrelados fazem algum caixa de campanha. É isso!

Mas a única beneficiada de verdade com o PDRS Xingu é a Norte Energia, o capital.  A barragem, essa máquina de fazer dinheiro, está quase pronta. E o Programa, que não lhe custou um centavo, deu visibilidade à empresa em toda a região e ainda lhe rendeu um ar de filantropia mesclado com política pública terceirizada. Esse foi o seu melhor quinhão, ainda mais numa região de resistência história a barramentos no Xingu.

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