Inoperância do governo: O cruel é que uns perdem dinheiro. Outros, a vida. Entrevista de Spency Pimentel a Leonardo Sakamoto

“As pessoas questionam muito a forma tendenciosa como esse ou aquele sujeito é chamado de ‘amigo do Lula’ na imprensa, pois isso não é feito quando se trata de políticos de outros partidos. Mas, falta dizer que esses novos ‘amigos do Lula’ são, muitas vezes, inimigos dos povos indígenas, dos trabalhadores rurais, dos quilombolas. O desenvolvimentismo quis convencer a população de que esses atores são aliados, amigos do povo, uma vez que garantiriam o ‘progresso’ para o país. Mas, por acaso eles têm se comportado de forma amigável, no que diz respeito aos povos indígenas e outras populações rurais?”

Essa é a opinião de Spensy Pimentel, doutor em antropologia, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, em Porto Seguro, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo e um dos maiores especialistas na questão indígena do país.

O governo federal acaba de divulgar a homologação de quatro terras indígenas e de criar o Conselho Nacional de Política Indigenista. Contudo, isso não resolve, nem de longe, a dívida com esses povos. O Palácio do Planalto continua evitando resolver as questões fundiárias em áreas de conflito deflagrado, como o Mato Grosso do Sul e adotando um modelo de desenvolvimento onde de ser sustentável.

“Pelo menos por onde passo, o que vejo é um bocado de gente desiludida e desanimada, quando não raivosa mesmo. Não estamos falando de gente que está com raiva do governo porque teve de cancelar a viagem à Disney por conta do câmbio, estamos falando de pessoas que estão perdendo familiares e amigos, estão esperando há décadas pela recuperação de terras das quais foram retiradas em períodos autoritários pelos quais este país passou no século 20. Ou de gente que, mesmo tendo terra, está acossada por grileiros, garimpeiros e madeireiros”, afirma.

Spensy Pimentel falou ao blog sobre o contexto dessas últimas ações divulgadas pelo governo:

Dilma homologou, com alarde, quatro Terras Indígenas no Estado do Amazonas. Contudo, seu governo tem evitado resolver os problemas de áreas com intenso conflito, alguns deles envolvendo mortes por bala ou por desnutrição de indígenas, como é o caso dos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Por quê?

Infelizmente, continua-se a empurrar esses problemas com a barriga – o que é muito conveniente para os ruralistas e, por conseguinte, para se manterem as boas relações do governo com eles. Como ocorre com outros setores, porém, esse pessoal vende a mãe e não entrega. Enquanto o governo alivia, duas CPIs, uma na Assembleia de Mato Grosso do Sul e outra no Congresso Nacional, continuam sendo usadas pelos ruralistas para sua campanha sórdida contra os indígenas e seus apoiadores.

Em Mato Grosso do Sul, até o grupo de elite da polícia local foi recentemente posto a serviço dos ruralistas. Os indigenistas do Cimi [Conselho Indigenista Missionário] estão sendo vigiados e intimidados como se pertencessem a uma organização terrorista. A CPI colhe uma série de depoimentos claramente dirigidos para sustentar uma teoria conspiratória sem pé nem cabeça, de gente que não apresenta provas, mas faz as acusações mais estapafúrdias. Em Brasília, a mesma coisa: só ouvem quem fala o que eles querem ouvir.

Sei que não são só os indígenas. As elites ruralistas locais também estão cansadas da inoperância do governo nesse quesito. Os conflitos seguem sem resolução, e viram um jogo de perde-perde. Todos estão perdendo neste momento, com a ausência do governo federal. O cruel é que um lado perde dinheiro, enquanto o outro perde vidas.

Sei que pessoas como o ministro [da Justiça] José Eduardo Cardozo estão atolados até o pescoço na crise política, mas era preciso encontrar um rol de ações que pudessem ser desenvolvidas de modo emergencial para superar essa pecha que caiu sobre o processo de negociação, agora chamado de “processo de enrolação”.

O Judiciário, por sua vez, também continua ausente, apesar de centenas de ações envolvendo conflitos de terra entre indígenas e fazendeiros dependerem de uma atitude mais decisiva desse poder para serem resolvidas (nem se o governo federal realmente quisesse poderia resolver tudo sozinho).

Dilma também criou o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) com caráter consultivo e não deliberativo. Ou seja, sem poder de decisão como tantos outros conselhos e comissões que existem na esfera federal e que, não raro, servem mais para mostrar que o poder público “dialoga” do que para resolver problemas. Que ações poderiam ser adotadas para garantir o empoderamento político dos povos indígenas?

Os indígenas são mais um dos tantos setores que padecem com a falta de representatividade política nas esferas federais. O país precisa urgentemente de mudanças no seu sistema político. Não faltam somente representantes dos povos indígenas, faltam mulheres, faltam negros, faltam trabalhadores em instâncias como o Congresso e o Judiciário, de modo geral. Cabe às organizações indígenas indicar de que forma ocupariam lugar nas discussões do Legislativo, não sei dizer qual seria a solução que elas apresentariam neste momento – mas é fato que existe um problema.

O que tenho certeza é que, se o Legislativo fosse mais plural, se o Judiciário fosse mais plural, se o “governo democrático-popular” fosse mais plural, os povos indígenas, como tantos outros grupos, teriam muito menos problemas neste país.

Enfim, velhos tempos em que o PT apresentava o Orçamento Participativo como uma ação modelar das suas administrações locais. Vamos lembrar, essa dimensão do programa petista sumiu das discussões já na campanha de 2002, e nunca mais a democracia participativa pareceu ser uma dimensão fulcral no quadro de propostas do partido.

A política de desenvolvimento brasileira tem relegado a segundo plano a cidadania de povos tradicionais, que são removidos e ignorados sem muito pudor. Os indígenas ainda acreditam no governo mesmo depois de Belo Monte, do Tapajós, de Dourados, do Jaraguá…?

Pelo menos por onde passo, o que vejo é um bocado de gente desiludida e desanimada, quando não raivosa mesmo. O que é preciso entender é que não é uma raiva como a raiva ultraconservadora que está nas ruas. É uma raiva digna, uma raiva justa, porque as muitas ações e inações equivocadas do governo nesse campo estão gerando mortes, estão deixando sequelas.

Não estamos falando de gente que está com raiva do governo porque teve de cancelar a viagem à Disney por conta do câmbio, estamos falando de pessoas que estão perdendo familiares e amigos, estão esperando há décadas pela recuperação de terras das quais foram retiradas em períodos autoritários pelos quais este país passou no século 20. Ou de gente que, mesmo tendo terra, está acossada por grileiros, garimpeiros e madeireiros.

São pessoas que esperavam de um governo do PT muito mais afinco na defesa de seus direitos. Infelizmente, o que viram foi um governo chamando de herois, de aliados, de amigos a latifundiários, usineiros, empreiteiros, banqueiros. As pessoas questionam muito a forma tendenciosa como esse ou aquele sujeito é chamado de “amigo do Lula” na imprensa, pois isso não é feito quando se trata de políticos de outros partidos. Mas, falta dizer que esses novos “amigos do Lula” são, muitas vezes, inimigos dos povos indígenas, dos trabalhadores rurais, dos quilombolas.

E esse é o problema, que é central na teoria política, como você sabe. O desenvolvimentismo quis convencer a população de que esses atores são aliados, amigos do povo, uma vez que garantiriam o “progresso” para o país. Mas, por acaso eles têm se comportado de forma amigável, no que diz respeito aos povos indígenas e outras populações rurais?

Destaque: Indígena tenta impedir reintegração de posse no Amazonas. Foto vencedora do Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos, categoria Fotografia – Luiz Gonzaga Alves de Vasconcelos, Jornal A Crítica (2008).

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