Lobby da indústria farmacêutica põe direito à saúde na UTI

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Grandes laboratórios investem em doações para campanhas eleitorais, bancam viagens internacionais para parlamentares e contratam ex-gestores públicos com acesso a informações privilegiadas. A razão é simples: só em 2014, a indústria do setor lucrou 29,4 bilhões de dólares por aqui e a expectativa é de crescimento, apesar da crise. Este texto de Najla Passos, para a Repórter Brasil, é longo, mas importante, pois mostra como funciona o lobby do setor, que atinge diferentes partidos e espectros ideológicos.

Afinal, a única certeza é que, em algum momento da vida (para os sortudos) ou pela vida inteira (no caso da maioria), quase todos nós usam, usaram ou usarão medicamentos.

Lobby da indústria farmacêutica põe direito à saúde na UTI

Por Najla Passos, especial para a Repórter Brasil.

O Brasil é hoje o sexto mercado interno em vendas de medicamentos do mundo, com forte perspectiva de ocupar o quarto lugar já em 2017. Só em 2014, a indústria farmacêutica alcançou lucros recordes de US$ 29,4 bilhões. E a expectativa é que, até 2020, amplie o faturamento para cerca de US$ 47,9 bilhões/ano, segundo dados da consultoria GlobalData. A despeito da crise internacional, o mercado brasileiro de medicamentos é pujante, desconhece recessão há quase 15 anos e estima fechar 2015 no azul.

A indústria farmacêutica sabe que esses bons resultados dependem de momentos de expansão econômica, mas se devem, principalmente, às decisões políticas tomadas nas principais instâncias de poder do país. Decisões como a aprovação da Lei 9.279/96, a chamada Lei de Patentes, que criou forte esquema de proteção para o monopólio de exploração de medicamentos no país e, apesar das mudanças legislativas propostas desde então, ainda favorece os interesses dos grandes laboratórios multinacionais em detrimento daqueles da população brasileira.

É a Lei de Patentes que impede, por exemplo, que um remédio recém descoberto possa ter seu princípio ativo imediatamente utilizado na fabricação de similares e genéricos, com preços mais competitivos. Caso concreto do Avastin, produzido pelo laboratório multinacional Roche e utilizado no tratamento de vários tipos de câncer. Sua patente deveria expirar em 2018, mas as singularidades da legislação brasileira estenderam o monopólio de exploração até 2023. E até lá, como a Roche é a única que fabrica o medicamento, cobra o que quer por ele: hoje, o preço de uma única ampola injetável, de 100 miligramas, é cerca de R$ 1,5 mil. No exterior, a dose do genérico pode sair por apenas R$ 200.

“É a Lei de Patentes que evita a entrada de medicamentos genéricos no mercado, mantém os monopólios dos grandes laboratórios e, consequentemente, faz com que os preços dos remédios fiquem mais caros”, explica Jorge Bermudez, vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, um dos maiores centros públicos de pesquisa e produção de medicamentos do país, que atua no suporte do Sistema Único de Saúde (SUS).

Segundo ele, a redução das brechas para concessão e extensão das patentes, conforme proposto em projetos de lei em tramitação no Congresso, é de vital importância para a saúde da população. “O direito à saúde tem que ser preponderante ao direito comercial”, justifica. Mas a indústria farmacêutica discorda. E para manter seus lucros, investe pesado em estratégias de lobby para convencer os parlamentares a manter a legislação tal como está, ou torná-la ainda mais aberta à concessão de patentes, mesmo que isso represente medicamentos inacessíveis para milhões de brasileiros.

Representação corporativa fracionada

As 259 empresas farmacêuticas que atuam no Brasil se organizam em representações corporativas diversas, que obedecem a crivos específicos. Um dos mais importantes deles é o que coloca em campos opostos os laboratórios multinacionais e a indústria de capital nacional. Os dois grupos possuem bandeiras comuns, como a desoneração dos medicamentos, mas também pautas antagônicas, como a própria Lei de Patentes.

Os laboratórios multinacionais são representados, principalmente, pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), criada em 1990. Presidida pelo ex-governador do Rio Grande do Sul, o jornalista Antônio Britto, representa 56 laboratórios estrangeiros que, hoje, são responsáveis pela venda de 82% dos medicamentos de referência e por 33% dos genéricos disponíveis no mercado brasileiro. São multinacionais grandes, com atuação em vários países do mundo e orçamentos bilionários, inclusive para a prática de lobby.

No campo oposto estão entidades que respondem pela indústria nacional. A de organização mais recente é o Grupo Farma Brasil, que representa as nove maiores farmacêuticas de capital nacional. Essas companhias respondem por 36% do mercado total farmacêutico e 53% do segmento de genéricos. Entretanto, como mantêm muitas parcerias com os grandes laboratórios multinacionais, acabam por impor ao Grupo Farma Brasil um posicionamento recuado em relação às pautas públicas que envolvem o seguimento.

Outra é a Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), que tem protagonizado os maiores embates com os laboratórios estrangeiros em defesa dos interesses nacionais. Segundo seu vice-presidente, Reinaldo Guimarães, este seguimento do setor farmacêutico tem peso crescente na economia nacional: responde por 50% da venda de unidades de medicamentos e fatura algo entre 40% e 50% dos lucros totais.

“Um setor tão grande e tão dinâmico quando o farmacêutico apresenta visões que não são unânimes, como em qualquer outro. Por isso, a representação corporativa é muito dividida, atomizada. E existem várias clivagens para defini-la, mas uma muito importante é a que contrapõe nacionais versus internacionais”, esclarece.

Lobby e poder

Para tentar influir nas decisões pertinentes ao setor, esses grupos se valem de variadas estratégias de lobby, uma atividade legal no país, mas não regulamentada. Para o coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), que reúne diversas organizações da sociedade civil, a falta de regulamentação do lobby mantem a prática invisível e gera um déficit democrático para o país. “Enquanto o lobby não for regulamentado, a gente não vai saber quem atua no jogo democrático”, afirma Pedro Villardi, que também é coordenador de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).

O vice-presidente da Abifina admite que a falta de transparência também abre brechas à corrupção. “O sujeito vai lá, promove encontros, apoia campanhas eleitorais, conversa, oferece vantagens. Lobby é isso. E não me parece algo condenável, a não ser quando há troca de favores, quando não se baseia em convicções efetivas sobre as políticas de que ele trata, mas responda a incentivos financeiros para votações em determinados sentidos. Aí fica uma coisa complicada. E isso existe, é evidente que existe”, atesta.

No parlamento, tramitam dez proposições para regulamentar o lobby, todas elas emperradas na burocracia legislativa. É que a regulamentação, a exemplo do que ocorre em outros países, torna a atividade transparente, o que não é interessante para quem faz uso indevido dela. Nos Estados Unidos, por exemplo, os grupos de pressão precisam registrar no parlamento todo o dinheiro empregado em atividades de lobby, o que permite que a sociedade identifique como e porque tais grupos tentam convencer os parlamentares a tomarem determinada decisão.

A organização não governamental Center for Responsive Politics, que edita o premiado OpenSecrets.org e faz o acompanhamento da atividade de lobby naquele país desde 1998, apurou que, só de janeiro a abril deste ano, os diferentes setores da economia norte-americana investiram U$S 3,24 bilhões na atividade. Dentre esses setores, o da Saúde foi o que mais gastou: US$ 134,7 milhões.

Doações eleitorais

Entre as principais estratégias de lobby utilizadas pelo setor está a doação para campanhas eleitorais, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em decisão recente, tomada no último dia 17/9. Em 2014, a Interfarma não doou para as campanhas eleitorais. Ficou intimidada por uma ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF), em 2010, que questionava suas doações para quatro candidatos a deputados pelo Rio Grande do Sul, já que a legislação brasileira proíbe doações de entidades de classe.

A Justiça acabou julgando as doações regulares, por considerar que a Interfarma não se configura como uma representação corporativa tradicional. Mas a entidade preferiu não se arriscar mais por este caminho. Antes disso, porém, usou e abusou da estratégia. Nas eleições de 2010, a Interfarma investiu R$ 1,8 milhão em doações nominais para dois candidatos ao Senado e 18 à Câmara. Do total, oito ainda continuam atuando no parlamento: o senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) e os deputados Saraiva Felipe (PMDB-MG), Osmar Terra (PMDB-RS), Renato Molling (PP-RS), Bruno Araújo (PSDB-PE), Onyx Lorenzoni (DEM-RS), Nelson Marquezelli (PTB-SP) e Darcísio Perondi (PMDB-RS).

Eles ajudam a reforçar a chamada “bancada dos medicamentos”, uma estrutura informal que, segundo críticos, auxilia os grandes laboratórios internacionais a defenderem seus interesses no parlamento. Embora advogue interesses ideologicamente identificados com a direita, é uma bancada apartidária. Na campanha de 2010, também receberam doações da Interfarma políticos de partidos que se classificam como de esquerda, como os ex-deputados Cândido Vaccarezza (PT-SP) e Manoela D’Ávila (PC do B-RS).

Contrapartida da indústria nacional

A indústria nacional atua tanto para reforçar as representações dos laboratórios multinacionais quanto para defender interesses próprios. Como as maiores empresas farmacêuticas brasileiras lucram com as parcerias firmadas com as estrangeiras, é do interesse delas que o setor prospere. Mas também há aquelas empresas de capital nacional mais voltadas à produção local que advogam interesses antagônicos.

Traçar a linha que diferencia umas e outras é sempre uma tarefa complexa, principalmente devido à falta de transparência nos dados relativos ao lobby no país. “De uma maneira geral, os laboratórios internacionais querem impor regras de patentes muito duras e os nacionais já são mais flexíveis, já aceitam dialogar”, explica o vice-líder do PT na Câmara, deputado Paulo Teixeira (PT-SP), autor de um projeto de lei que proíbe a concessão de patentes de segundo uso, ou seja, não garante o monopólio para a empresa que já produz um medicamento e descobre que ele serve também para curar outra doença. Uma pauta, portanto, que interessa tanto à indústria nacional quanto aos usuários de medicamentos.

Nas eleições passadas, as empresas de capital nacional doaram nominalmente para 27 candidatos à Câmara Federal, fora os repasses direcionados aos partidos. Destes, 19 foram eleitos. A Hypermarcas foi a que mais investiu (R$ 6,2 milhões), seguida pela Geolab (R$ 1,39 milhão), Eurofarma (R$ 1,02 milhão) e União Química Farmacêutica Nacional (R$ 890 mil).

Os deputados que mais receberam contribuições do setor foram Arlindo Chinaglia (PT-SP), o candidato derrotado por Eduardo Cunha (PMDB-RJ) na disputa pela presidência da Casa, Newton Lima (PT-SP), autor do projeto de lei que muda a Lei de Patentes de forma a facilitar o acesso ao medicamento, mas que não conseguiu se re-eleger, e o atual presidente da Frente Nacional pela Desoneração de Medicamentos, Walter Ihoshi (PSD-SP).

A indústria nacional também fez doações generosas para a presidenta reeleita, Dilma Rousseff (PT), que recebeu um total de R$ 6,7 milhões de seis laboratórios. Nenhum dos laboratórios de capital nacional doou nominalmente para a campanha do principal concorrente, o senador Aécio Neves (PSDB), mas a Hypermarcas contribuiu com R$ 5 milhões para o comitê financeiro da campanha para a presidência do PSDB e a Eurofarma, com R$ 200 mil. O PSDB Nacional recebeu R$ 1,64 milhão em doações de cinco laboratórios e o PT Nacional, R$ 1,08 milhão de quatro. O apartidarismo dos investimentos, portanto, foi evidente.

Viagens internacionais

Com o recuo nas doações para campanhas eleitorais após 2010, a Interfarma desenvolveu outras estratégias para influenciar os deputados. Entre elas, uma parceria com o Brazil Institute do Woodrow Wilson International Center for Scholars, com sede em Washington, que entre 2011 e 2013 patrocinou a viagem de 32 parlamentares aos Estados Unidos e à Europa para participarem de seminários sobre Ciência & Tecnologia e Inovação.

O diretor do Brazil Institute é o jornalista brasileiro Paulo Sotero, que, de 1990 a 1996, quando o Brasil discutia os termos da sua abertura econômica, atuava como correspondente do jornal Estado de S. Paulo na capital norte-americana e produzia as notícias relativas às questões de patentes e propriedade intelectual. É ele o organizador do livro O Congresso Brasileiro na Fronteira da Inovação, que narra a experiência da parceria Brazil Institute e Interfarma.

Conforme Sotero esclarece no livro, a parceria realizou três conferências acadêmicas no Wilson Center, do Massachusetts Institute of Technology, no Brazil Institute do King’s College, de Londres, e no Instituto das Américas, sediado na Universidade da Califórnia San Diego. Além de fazer um tour pelos países que visitavam, os parlamentares de cada grupo participaram, em média, de 40 horas de conferências sobre os mais diversos aspectos das políticas públicas sobre inovação, patentes e pesquisa clínica.

Dos 32 parlamentares que a Interfarma levou para viagens ao exterior, 19 continuam atuando com mandatos, como os senadores Jorge Viana (PT-AC) e Paulo Buaer (PSDB-SC), além do deputado Walter Ihoshi (PSD-SP), aquele mesmo que recebeu contribuições para a campanha eleitoral de laboratórios nacionais e preside a Frente Parlamentar para Desoneração dos Medicamentos.

Propinas e ‘mensalões’

Não existem provas de que o pagamento de propina faça parte das estratégias utilizadas pelo setor farmacêutico para convencer os parlamentares a abraçarem seus projetos. Entretanto, há denúncias na praça. Em fevereiro de 2013, a revista Veja publicou uma gravação, feita em Belo Horizonte (MG), em que o deputado Saraiva Felipe (PMDB-MG), ex-ministro da Saúde do governo Lula (2005-2006), admitia receber dinheiro de um grande laboratório nacional e da representação coorporativa dos multinacionais.

Ao interlocutor, ele explicava: “Você me ajuda e, se der certo, eu te dou não sei o quê; e a outra forma é como eu trabalho para a Interfarma e a Hypermarcas: nós damos uma ajuda mensal e você, diante das demandas, encaminha aqui e ali”. Na gravação, Saraiva Felipe revela também que tinha boa relação com Dirceu Barbano, o então presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o órgão responsável pela fiscalização dos medicamentos no país. “O Dirceu Barbano me ajuda muito. Tenho bom acesso a ele”, alardeava.

Saraiva Felipe participou de uma das viagens internacionais promovida pela Interfarma e recebeu R$ 150 mil de doação da entidade na campanha eleitoral de 2010. Reeleito, cumpre hoje o 6º mandato como deputado. À reportagem, a Superintendência da Polícia Federal na capital mineira disse que, “até o presente momento, não recebeu da autoridade competente requisição oficial para instauração de eventual inquérito policial”.

Porta-giratória

Porta giratória é a expressão coloquial usada para classificar a contratação de ex-gestores públicos pela iniciativa privada ou vice-versa. No Brasil, a prática também não é crime: são poucos os cargos públicos que exigem do seu ocupante uma quarentena mínima de quatro meses, após a demissão. Por isso, a porta-giratória é muito utilizada pela indústria farmacêutica para influir nas decisões do país, já que os ex-gestores públicos trazem com eles não só acesso privilegiado às instâncias de poder, como também um acúmulo de conhecimento do modus operandi do órgão em que atuou.

Foi o que aconteceu com o ex-presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, demitido do órgão em outubro de 2014 e contratado pela Interfarma em maio deste ano. Barbano é aquele com quem o deputado Saraiva Felipe afirmava ter boa relação na gravação divulgada pela revista Veja em que o parlamentar admitia receber propina da representação corporativa dos laboratórios multinacionais.

O maior exemplo de porta-giratória praticada pela Interfarma, porém, diz respeito à contratação do seu próprio presidente, Antônio Britto. Jornalista, atuou em veículos como o jornal Zero Hora, no Rio Grande do Sul, e a TV Globo, na capital federal. Convidado para ser o secretário de Imprensa do então presidente eleito Tancredo Neves (PMDB) em meados dos anos oitenta, foi o porta-voz das informações médicas que precederam a morte prematura do político. Pelo mesmo PMDB, candidatou-se a deputado federal e foi eleito em 1986.

Em 1994, foi eleito governador do Rio Grande do Sul, que transformou em laboratório de implantação das políticas neoliberais tão em voga no período. Só deixou a vida pública em 2002, quando decidiu trabalhar para a iniciativa privada. Portanto, Britto já tinha profundo conhecimento dos caminhos da política quando assumiu a Interfarma, em 2009. Na lista de beneficiários das doações eleitorais e das viagens da entidade é possível visualizar, inclusive, vários dos seus colegas políticos gaúchos.

Procurado pela Repórter Brasil por meio da sua assessoria de comunicação, o presidente da Interfarma não aceitou conceder entrevista. Também não indicou outro representante para explicar o posicionamento oficial da entidade sobre as diferentes estratégias de lobby por ela utilizadas para convencer os parlamentares a assumirem a defesa das suas pautas de interesse.

 

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