Turminha do Agito, por Claret Fernandes

Claret Fernandes*, para Combate Racismo Ambiental

O caderno é velho e roto, quarenta folhas, orelha nos cantos, a beirada carcomida pelo suor da mão e a parte da capa, presa ao miolo com grampos enferrujados, rasgada e solta. Há um número de telefone e dois nomes, letra legível, em tinta azul: pai e filha. Acima se lê: Turminha do AGITO.

O desenho da capa tem um endereço certo: agradar a criançada! O fundo é azulado. Sobre um tapete de grama, dois seres se enfrentam, um parecido com touro e, outro, sem semelhança alguma com viventes do mundo real. O touro está enfurecido, com o rabo esticado, as patas traseiras em posição de coice e, as dianteiras, como a voar. Encontra-se no limite máximo de sua capacidade de corrida e de acúmulo de forças para destroçar o inimigo, com os olhos arregalados, bufando de raiva, o único chifre rente à barriga do monstrengo, que se afasta assustado perto de quedar-se num abismo. Algo como uma abelhinha voa, perto da cauda do touro, num riso gaiato e, no céu, cinco pequenas nuvens se movem, sem nenhum sinal de chuva e, o sol, que tudo vê, repara a cena, impassível.

Esse caderno velho, nove anos, guarda uma preciosidade, talvez o único registro feito no calor do momento da chamada Marcha das Águas, com a mensagem ‘água e energia para a soberania do povo brasileiro’. Hélcio, pai da Dayana que faz Medicina em Cuba pelo Movimento dos Atingidos por Barragens, não esconde sua apreensão quando o entrega a Sofia: ‘é uma relíquia!’.  Claro, Sofia entende perfeitamente o recado. E cuida de devolvê-lo o mais breve, intacto.

A Marcha das Águas parte de Ponte Nova no dia 28 de Março de 2006, às treze horas, com trezentas pessoas, que seguem de ônibus até Itabirito, onde pernoitam, e pegam estrada no outro dia (29) a pé, sete e trinta em ponto, caminhando até o Posto Shell, onde cochilam precariamente, já vigiados pela Polícia, e retomam a caminhada às seis horas do dia 30, indo até acampamento improvisado às margens da BR 040, onde passam a noite, saindo às seis e vinte do dia 31 até a sede da Copasa, em BH, entrando triunfalmente na cidade no dia 1º de abril, dia da mentira, para encontrar-se com dezenas de outras organizações mobilizadas naqueles dias na capital mineira por ocasião de reunião do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento,  com seus capachos subservientes instalados, então, na estrutura do Estado de Minas Gerais.

Na passagem por Ouro Preto, no Bairro Saramenha, os marchantes protestam no pátio da Novelis, empresa do Setor de alumínio atualmente em processo de fechamento, com grande dívida histórica  com seus operários e com os atingidos por suas barragens construídas na Zona da Mata mineira. A recepção foi a Polícia, que joga spray de pimento nos olhos de um companheiro. O clima fica tenso, mas sem nenhum incidente mais grave. Os marchantes optam por não ir para o confronto direto já que têm uma agenda pela frente. Não haveria de faltar oportunidade. Por isso, apenas cantam, gritam, depois lancham e seguem adiante.

Em Itabirito, junto à linha de Trem de Ferro, acontece à noite uma celebração com d. Luciano, que chega às pressas, vindo de longe, mas que permanece junto aos marchantes como se nada mais tivesse para fazer. Seu tempo era assim, todo do povo, com especial carinho pelos empobrecidos e lutadores. Nos momentos decisivos – como naquele, pois, sabe-se lá o que viria pela frente -, ele estava sempre presente. Falecido no dia vinte sete de agosto de 2006, hoje tem fama de santo, com processo de beatificação e canonização aberto no dia 27 de Agosto de 2014, na catedral de Mariana, mas em toda a sua vida, e no tempo de hoje, ele tem cheiro mesmo é de profeta e lutador do povo.

Durante a Ditadura Militar, que vigorou no Brasil entres os anos 1964 e 1985, d. Luciano foi uma das principais vozes em defesa dos direitos humanos e, por ocasião da fraudulenta privatização da Vale, em 1997, vendida por 3,3 bi quando seu valor era estimado em 92 bilhões, a voz destoante de d. Luciano, com melindres internos no episcopado, encarados com discrição, sai em defesa da importância estratégica da Vale para o Estado brasileiro, contra a sua privatização.

Voltando aos marchantes, em pernoite no Posto Shell, o que mais incomoda é o farol do carro da Polícia Militar que, durante a noite toda, de tempo em tempo, eram acesos, mirados para o acampamento. Parecia que a intenção era estressá-los ao máximo para que, assim, dessem argumento para a Polícia agir ou se entregassem de cansaço.

Às margens da BH 040, em acampamento improvisado, falta tudo, mas a urgência maior são os banheiros. Durante o almoço, então, destacam-se alguns militantes para negociá-los no posto mais próximo. O gerente não faz acordo. Os marchantes reúnem-se numa grande assembleia e decidem ocupar o Posto, impedindo a venda de combustível. A movimentação é grande, o fluxo de veículos nessa Rodovia é enorme, forma-se uma fila de carros, o prejuízo é evidente.  A consciência de todos os capitalistas é, por demais, sensível no bolso. O Gerente, então, faz contato com o dono Posto, que se desloca às pressas de BH e, não tendo outra saída, libera o espaço. A comemoração é grande! Mas os marchantes, especialmente os mais traquejados, sabem que essas pequenas vitórias são sempre ambíguas, pois, se por um lado animam o povo, por outro enraivam o inimigo, que prepara pancada à altura. Estava claro que a vida na capital mineira, naqueles dias, não seria fácil!

A resposta não tarda! A Polícia, que vem acompanhando a Marcha desde Itabirito, com a desculpa de dar segurança aos marchantes, começa a reagir. Inicialmente, para o caminhão de apetrechos – bolsas, colchões – que ia à frente e despeja tudo no chão. Um desaforo! E quando a Marcha chega próxima ao Posto da Rodoviária Federal, na entrada de BH, quase duas centenas de policiais vêm se deslocando em sua direção, feito onda, armados de cassetete, bombas de gás lacrimogênio, fuzis, e se colocam atravessados na pista, em duas filas, formando uma barreira intransponível.

Sofia sente naquela tática militar uma oportunidade. A barreira policial interrompe todo o trânsito sentido BH, impede a passagem de carros e marchantes, então todos se sentam no meio da pista, apesar do sol a tremer de quente, e vez por outra se levantam e cantam e dançam e dão gritos de ordem. O fato está criado! A imprensa chega e a Marcha ganha repercussão. Os ânimos vão se acirrando, de um lado e de outro.  Destaca-se, então, uma equipe para negociar com os policiais, com presença de padre João Carlos e César Medeiros, à época deputados estadual e federal, respectivamente. Inicialmente os policiais batem o pé e dizem que o pernoite é ali, apontando com o dedo, perto dos apetrechos jogados pelo chão. Mas aos poucos vão cedendo, até sentir a barreira como um tiro no pé, liberar a passagem e fazer-se de amigo, com mil e uma recomendações de segurança. Os marchantes seguem entusiasmados até a Copasa, com um pernoite extremamente precário mas festivo, com forró e sessão de piadas,  enfrentando a noite fria, com vento e água gelados.

A entrada da Marcha em BH, após tantas intempéries, é triunfal. À frente da igreja do Carmo, faz-se reza pelos percalços vencidos e por vencer. Qualquer mãozinha ajuda, até do além. Depois a Marcha segue rumo à Praça Sete, juntando-se a algumas dezenas de movimentos sociais, somando quatro mil pessoas. O destino é a Praça da Liberdade, onde se encontram companheiras (os) em greve de fome desde quatro horas da tarde de quinta-feira por respeito à livre expressão e liberdade de pensamento. Tantas vezes – relatam depois -, insultados pela Polícia, buscando uma desculpa para expulsá-los dali.

A Marcha vai pela Avenida Afonso Pena, toma a João Pinheiro e a escolta policial é reforçada, com cavalaria, cães, motos, helicóptero, muitas viaturas, bicicletas e soldados a pé. Parece praça de guerra! A duas quadras da Liberdade, a Marcha é barrada de novo, um contingente invejável de quase mil policiais fortemente armados, sem contar os soldados à paisana.  Na linha de frente, assemelham-se a estátuas ficadas ali, de tão eretos, não se movem por nada. O risco de massacre é iminente, pois nem um lado nem outro querem ceder, e ambos têm ‘razão’ de sobra.

De novo, d. Luciano entra em cena! Do nada ele aparece e vai serpenteando por entre os policiais armados até varar a barreira, sob o olhar dos militares e do povo, e se encontra com alguém no passeio, num ponto estratégico. É o Comandante geral, de nome Teatine, à paisana. Esse é o homem encarregado de garantir que em oito minutos, no máximo, um batalhão desloque-se para qualquer parte da capital durante a reunião do BID. Após um dedo de prosa – e tiques de nervosismo por parte do Comandante -, ele volta, sobe ao carro de som e anuncia a entrada de 100 pessoas na Praça para resgate dos companheiros em greve. D. Luciano vai junto! Sofia também!

Quando os companheiros em greve se juntam aos manifestantes, é uma festa. Mas enquanto o povo comemora, os policiais babam de raiva, aguardando oportunidade para ir à desforra. Um helicóptero voa baixinho, com seu barulho ensurdecedor e seu vento forte, por vezes, soprando sobre a multidão. Ainda no carro de som, d. Luciano lhe acena com a mão, numa atitude atípica em meio ao clima tenso, arrancando boas risadas e gritos eufóricos entre o povo.

Da Liberdade, os marchantes retornam à Praça da Assembleia, onde pernoitam em acampamento improvisado. A Praça é o único lugar que lhes resta, pois, de forma abrupta e sem explicação convincente, as portas tanto da Prefeitura de Belo Horizonte quanto do Governo de Estado lhes são fechadas.

O dia dois de abril é todo de formação! No dia três, exatamente às dez horas e onze minutos, a mobilização segue pela Avenida Barbacena rumo à Praça Sete para encontrar-se com os outros movimentos e seguir até o Expominas, local da 47ª reunião do BID. Mas em frente ao edifício-sede da CEMIG, a marcha é interrompida. Acontece algo como estouro de boiada e, num átimo, sob a senha ‘viva o Cruzeiro’, a CEMIG é ocupada. Dá-se acirrado conflito entre policiais e povo. Uma sanfona, que ia tocando no carro de som, é destroçada na força do cassetete. O sanfoneiro, um jovem de Sem Peixe, na marcha pela primeira vez, safa-se das pancadas e desaparece. Em menos de oito minutos, chega um batalhão de soldados, que reprime covardemente e, ao final, fica o saldo de alguns policiais levemente feridos e manifestantes machucados, com sete companheiros presos e torturados. Sofia lê na arrogância dos policiais o sentimento de desforra.

Após o confronto direto, mas ainda em clima de guerra, é um deus nos acuda para localizar os detidos. As informações são desencontradas. De novo, autoridades amigas se envolvem e, à noite, são todos liberados. No dia quatro, os manifestantes, sob o faro atento da Polícia, se movimentam o dia todo e, pelas vinte horas desse dia, expulsam a TV Globo, que faz matéria caluniosa sobre os detidos e sobre a manifestação popular. No dia cinco de abril, a Carta do 1º encontro dos movimentos sociais mineiros é lida, aprovada e divulgada primeiro entre os marchantes, depois para autoridades e imprensa. Um trecho diz: ‘Desde o início, contatamos a PBH (Prefeitura de Belo Horizonte), o Governo do Estado e a UFMG para liberação de espaço para o evento… Para nosso espanto, nos últimos dias, todos os pedidos foram negados… O mais chocante é o contraste: de um lado, tudo para o BID… de outro lado, a negativa total para os movimentos… O Estado coloca todas as suas instituições a serviço dos interesses do grande capital’.

Em seguida, os marchantes realizam passeata pelas ruas de BH com encerramento místico na Praça da Assembleia, fechando esses dias de luta com chave de ouro, num clima de animação e sentimento de vitória.

Após ler refletidamente aquele caderno antigo, Sofia tem saudade de tudo aquilo, então guarda cuidadosamente o caderno, vai ao computador e clica ‘Reunião do BID em BH’. Seu corpo sofre um leve calafrio, pois aquilo ainda lhe é muito vivo. A tela se abre, ela vê fotos dos policiais, de d. Luciano e dos manifestantes, identificando uma e outra pessoa. Ela sorri por ser parte dessa história, mas, principalmente, por perceber uma conexão entre esses enfrentamentos e o resultado das últimas eleições em Minas Gerais, animada com a recém-anunciada Secretaria do Desenvolvimento Agrário para cuidar da Agricultura Familiar. Os enfrentamentos ajudaram a fortalecer um processo de luta unitária, com o encontro dos movimentos sociais na sua 6ª edição, previsto para os dias 1º a 3 de maio de 2015.

Uma curiosidade ronda a cabeça de Sofia. Então ela vai novamente ao Google e clica ‘Pimentel’. Lê, atentamente: ‘Fernando Pimentel, formado em Economia Política pela PUC Minas, Mestre em Ciência Política pela UFMG, Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio no Governo Dilma Rousseff (janeiro de 2011 a 12 de dezembro de 2014) e Prefeito de Belo Horizonte para o Mandato de 2005 a 2008’.

Sofia se benze três vezes, como a expulsar um mau pensamento, pois nota que Pimentel era o Prefeito de Belo Horizonte, eleito pelo Partido dos Trabalhadores, por ocasião da reunião do BID e dessa histórica repressão aos movimentos populares, propugnada pelo Governo Aécio Neves. Lembra a prepotência em Belo Monte sob a batuta de governos desenvolvimentistas, a entrevista de d. Erwin no Site do MAB, o roubo nas contas da Cemig e da Copasa com a precariedade de seus serviços, os apagões usados como desculpa para amolecer, ainda mais, os licenciamentos ambientais de interesse capitalista, e sente que há razões de sobra para muita luta pela frente! E apenas diz, de si para si, meio reticente: ‘Pimentel é governador… Não haverá de ser mais assim, com massacre!’.

Na dúvida, porém, uma convicção: a turminha do AGITO, o povo organizado, precisa estar na rua.

*Missionário na Arquidiocese de Mariana e militante do MAB

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