Estado contra o Estado: a guerra do Rio de Janeiro

Igor Vitorino da Silva (*)

O que estamos assistindo no Rio de Janeiro é o Estado contra ele mesmo. Se a luta é do bem contra o mal como argumenta a mídia, então é possível afirma que o mal nasceu do bem. Quem hoje que aparece impondo as armas da vitória e é aplaudido por parte da população, que durante anos viveu aterrorizada e submetida a arbitrariedade da segmentos da polícia e de traficantes, é o mesmo que durante anos deixou essa a população a sua própria sorte, o Estado.

A mídia apresenta todo cenário da guerra do bem contra o mal, como se o mal, suposto por ela, se fizesse sozinho, como se os traficantes nascessem geneticamente preparados para serem o que são. Não há perguntas, somente certezas, principalmente de que o Estado está retomando o poder, que ele mesmo havia abandonado no passado. Ninguém se questiona como traficantes historicamente apropriaram das favelas? Como esses jovens optaram pelo crime? Qual seria a responsabilidade do Estado no patrocínio da realidade atual? Por que o poder policial recuou no passado desses territórios? Como toneladas de armas e drogas hoje exibidas para os holofotes da mídia chegaram no alto dos morros? Como o dinheiro do tráfico é lavado no mercado financeiro? Diante do espetáculo dos tanques ocupando “o território largado pelo Estado” essas são questões parecem infantis ou coisa de quem defende “bandidos”, pois sua simplesmente sua enunciação ofuscaria os gritos de vitória e de paz proclamados pela mídia.

Olhos moralistas da imprensa conversadora fixam-se à constatação que de os traficantes tinham casas luxuosas (piscina, banheira, etc.), centenas de motos roubadas ou toneladas de armas, como se eles não fossem alvo, também, do consumismo do mundo contemporâneo, que inclusive, é patrocinado por essa mesma imprensa. Enquanto, ela perde-se no julgamento moral dos hábitos de consumo dos traficantes, não aparece no seu discurso, que se proclamam o verdadeiro, uma linha de discussão sobre quem apropria-se dos ganhos tráfico, de como as fortunas obtidas no tráfico se transformam em consumo no mercado legal, de como compram a apartamentos, carros, etc. Nem sequer uma tocam na possibilidade de está correndo um a reorganização geopolítica do crise, tendo como foco fim da hegemonia do Comando Vermelho frente jogo de aliança entre facções Amigos do Amigos – Ada, Terceiro Comando e as milícias, como aponta o professor José Cláudio Alves da UFRRJ.

A corrupção que drena grande parte dos ganhos do tráfico e expressa uma rede social que articula agentes do Estado, organizações criminosas, sociedade civil é esquecida diante da saturação de imagens de guerra confortante, no sentido de exibir o triunfo das forças policiais sobre o mundo da bandidagem, como se questão do tráfico pudesse ser resumida ao território da favela. Em nenhum momento, se especula quando ocorrerá as estratégia policiais de inteligência para ocupação de bancos, prédios de luxo, escritórios que auxiliam a cadeia da corrupção?

Sob sons das rajadas de metralhadores abafa-se uma historia longa de desprezo social. Aqueles homens filmado em fuga, compreendidos como materialização do mal, são de alguma maneira um resultado de um Estado que lhes negou moradia qualidade, escola, oportunidade de vida, justiça e dignidade social. São vítimas de uma sociedade que agora clama por sua eliminação física, fechando os olhos ao uso ilegal da “força do monopólio da força”, mas que cotidianamente afirma que só se é alguém quando se é consumidor, quando se tem dinheiro, que valor social do indivíduo está no que ele consome e exibi. Invisíveis para sociedade do consumo esses jovens encontram sua visibilidade pelo poder das armas e pela violência, como nos denunciou Luiz Eduardo Soares. Eles se materializam espaço social materializando a negatividade social(terror), uma das únicas formas de serem vistos e reconhecidos por uma sociedades que nunca os viu.

Eles são aqueles que estiveram nos sinal de trânsito limpando para-brisa ou vendendo doces, experimentaram olhares de desprezo, nojo, asco, indiferença. São aqueles que incomodavam o sossego dos clientes de bares, boates e restaurantes, e foram insultados ou agredidos. São aqueles que foram chamados de escória e levaram bofetadas das forças policias corruptas, que conhecerem bem cedo o “bom tratamento” das delegacias, das antigas Febens, juizados da infância e da juventude e do sistema prisional. São aqueles aprenderam no corpo e na alma que a Lei no país não igual para todos, que há cidadãos mais iguais que outros, que a posição social e o dinheiro definem a forma de tratamento dirigida ao cidadão, que sua liberdade tinha um preço. Não tendo motivo nenhum acreditarem e defenderem o Império da Lei, pois ela desde que nasceram nunca lhes foi favorável, aliás sempre lhes foi negada.

Agora, eles aparecem no cenário de guerra como se fosse produção de si mesmo. Um mal que a sociedade deseja extirpar como se ela não tivesse o produzido ou como não fosse parte dela. O pior como se Estado, representado pelas forças policiais, não tivesse nenhum dedo de participação na construção dessa situação, como se os anos de ausência de políticas de segurança e pela manutenção de medidas emergenciais não contassem como causas estruturantes dessa tragédia.

É justamente aí que mora o grande perigo de acreditarmos que a solução dessa suposta “guerra” está na eliminação do suposto mal, e não numa discussão pública profunda dos fundamentos da nossa vida social, sem uma da problematização da fragilidade dos direitos civis no Brasil e sem o reconhecimento da dificuldade do Estado Brasileiro de submeter todos os brasileiros sem distinção social ao império da Lei e desmontar da cadeia de corrupção que mantém a economia do tráfico. Precisamos sair de círculo em que Estado enquanto “força” é intensamente presente na nossa vida social, mas em como império da Lei continua escasso e pontual e somente punindo e invadindo os territórios e corpos de pretos, pobres, periféricos e despossuídos de poder social e político.

* Historiador e professor de História do Campus Nova Andradina/IFMS

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.