A reação conservadora como suplício e morte do corpo do outro

Por Cristiane Faustino*

Escrevo tomada pelo sentimento e pela indignação frente ao extermínio de minhas gentes. Um extermínio físico, emocional, psicológico, simbólico.

Que me desculpem os otimistas, mas não há exageros; apenas olhos que vêem e sofrem. Às vezes, na luta e na resistência, é preciso não nos vitimizarmos para legitimar nossas forças: braços, pernas e cabeças que nos fazem andar e ir adiante, ainda que sobre pedras e espinhos. Mas momentos há em que parece que somos mais vítimas do que antes. E não explicitar isso com toda a sensibilidade é correr o risco de não perceber o suficiente as ameaças que nos rondam, de sequer saber o quanto temos que nos preocupar em proteger nossos corpos, lugar que possibilita nossa existência.

Nos últimos dias, uma velha e dolorosa sensação de violência, medo e impotência persegue nossos sonhos, principalmente os de quem, por lucidez e loucura, ousa sonhar e buscar fazer por onde o mundo se torne um bom lugar de se viver. Parece que estamos cercados por um “ethos” tão humanamente antiético que se faz no sangrar das injustiças, da maldade e da perversidade. Um tipo de nazifacismo toma conta das consciências ao nosso redor: o desespero diante de possíveis perdas de privilégios leva uns a trucidar os outros, sem piedade nem remorso.

Ante qualquer pequeno passo ou meros gestos de possibilidades de avanço nos direitos – até mesmo as poucas e insuficientes políticas públicas conquistadas a duras penas -, uma reação conservadora nos ataca e nos violenta;  ameaça, com sangue e dor, antecipar nosso fim. Lembro o “vigiar e punir” de Michel Foucault, que nos conta de um tempo em que as punições eram marcadas pelo suplício do corpo, como método de limpeza e exemplo.

No nosso tempo, parece acertado pensar que o suplício cotidiano se acirra e se evidencia na vida dos rejeitados, pelo autoritarismo burguês, mediante a exposição da dor e do sofrimento do corpo e da degeneração de sua humanidade. Algo no ar nos diz: “Estejam presos! Sofram! Por que ainda estão vivos? Por que deixamos viver até hoje esses degenerados, que são os pobres, os pretos, os índios, os nordestinos, as mulheres, os homossexuais?” Vivemos em tempos de suplício, de máscaras e correntes de ferro garroteando os negros; de agressão, humilhação e morte às mulheres e homossexuais.

E assim, nesse sopro de vingança contra as nossas existências, é que tenho me visto morrer a mim, em mim e nos outros e outras como eu. É assim quando penso nos moradores de ruas, talvez o alvo mais frágil dessa cadeia de ódio e vingança que aflora nos espíritos da convicta, fanática e arrogante “pureza”. Quando penso nas mulheres perseguidas, caçadas como bruxas, cruelmente assassinadas pela violência do machismo, na persistência dos velhos sistemas de subordinação e dores. Quando penso nos homossexuais, que no simples ato de andar pela rua podem morrer ou ser alvejados por lâmpadas e tudo o quanto é sorte de objetos e palavras, capazes de ferir e matar o corpo e a alma. Quando penso nos povos negros e indígenas sendo exterminados em nome do “bem” de tod@s! Quando penso nos nordestinos humilhados, nos pobres e miseráveis que causam “nojo” no senso comum. Quando penso na ânsia de matar o outro, de exterminá-lo mediante chacinas, só porque o outro é outro

Não se pode dizer que a onda conservadora que tem varrido de sangue as ruas do Brasil resulta somente do enorme desserviço e crueldade da campanha de José Serra e dos anseios dos seus iguais, como a grande mídia e os setores mais reacionários do cristianismo, das grandes e tradicionais instituições. Mas uma coisa me parece certa: na ânsia de garantir o poder, a campanha presidencial de José Serra ajudou, e muito, a nos impor escancaradamente e na mais cruel nudez o terror de nossos sistemas sociais: a violência, a tortura e morte dos corpos como métodos abertos e desanuviados.

Impressiona a falta de pudor – e até mesmo o discurso de uma suposta boa fé -, contra qualquer possibilidade de avanços nos direitos e na forma de tratar as diversidades. Em tal discurso, toma-se como instrumentos de alcances das subjetividades dominadas pelos ideais burgueses, racistas, patriarcais e homofóbicos, as noções de Maternidade, de Fraternidade, de Fé em Deus, de Família, de Igreja, da Segurança Pública, do Bem Comum, do Amor e, até, de Igualdade e Liberdade, dentre outras concepções contaminadas por um moralismo puritano e fanático.

O que vem sendo a todo custo forjado pelas lutas sociais nos espaços de institucionalidade e nas próprias contradições das políticas, como a defesa dos direitos humanos e da diversidade, é sem dúvida distorcido pelas bocas e instituições das elites, e fez emergir, como  vingança e ameaça,  a face mais cruel, porém mais verdadeira, daquilo que os movimentos em defesa dos direitos humanos e contra toda forma de discriminação denunciam todo dia sobre a política, as instituições e a vida cotidiana: suas injustiças e sua violência.

Sinto que estamos experimentando, pelo lado mais sanguinário, a força de uma sociedade desigual, sombria, perversa e assassina, que cria métodos e instrumentos de “limpeza” e que ergue revólveres e facas, pedras e lâmpadas, palavras, atos e gestos contra os que “enfeiam” o higienismo simétrico e psicopata dos sistemas de privilégios.

* Militante feminista e representante do Instituto Terramar na Coordenação Colegiada do GT Combate ao Racismo Ambiental.

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